M. Corrêa oos Santos

P40ELAH1A, TYPOORAPHIA E ENCAOERNAÇAO

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TELEPHONS 3350 10. RUA DA PRATA, 16

LISBOA

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Figuras do Passado

Figuras

DO

Passado

POR

PEDRO EURICO

J

Composto e impresso na Typo-

graphia Editora JOSÉ BASTOS

Rua da Alegria, 100 Lisboa

1915

CT

Unn EXPLICAÇÃO

Um pseudonymo é um disfarce. E' a mascara, muitas Vezes tão transparente e diaphana, que não occulta o rosto do que a usa.

Mas, inda assim, mascara conveniente! Mascara res- peitosa e necessária!

E' o nosso caso.

O que isto escreve presou, acima de tudo, a sua pro- fissão e o seu nome de magistrado.

Zelou este como devia a si e á sua classe.

Quando, por distracção e desenfado do seu espirito, como remédio morai para intimas dores, se entreteve com bugigangas litterarias, não quiz assigná-las com o mesmo nome com que assignava as graves decisões de um tribunal respeitável.

Assignou-as com o pseudonymo de Pedro Eurico.

O pseudonymo de novo apparece agora.

Porquê?

Porque se chega a alturas da vida e a situações n'ella,. em que não são permittidas cavaliarias e extravagâncias, nem mesmo litterarias!

O coração nunca envelhece: poderia allegar. Mas quantos, por formas bem diversas, repelliriam a m.axima?

O auctor nunca ambicionou, nem podia ambicionar, o titulo de homem de letras. Simples curioso d'ellas o foi pelas necessidades do espirito.

As suas faculdades exerceram-se em um campo, cujo cultivo esterilizava todo o pendor litterario.

VI

Amando o Bcllo, teVe por obrigação legal e por Índole de cultivar o Bem!

Lenibrou-se sempre d'aquelle conselho, que Jiiles Le- maitre tão bellamente exprimiu dizendo:

«Uma boa acção moral é a única obra de arte que pode "fazer quem não é artista*.

Mas, ás vezes, da pedra bruta salta uma faisca de luz!

Voltando agora de novo aos devaneios litterarios, de novo retoma o pseudonymo, porque, além do que fica dito, elle tem ainda outra utilidade.

E' como que o bordão de quem, sentindo-se pouco seguro de si, receando a queda, a elle se ampara para que essa queda seja menos desastrosa e menos promova o riso do publico.

Quer dizer : se a critica tiver de ser severa e de mal- tratar o livro e o auctor, que tenha a caridade de o fazer contra o nome litterario e não contra o verdadeiro e authentico.

Presa este e desdenha aquelle.

Á MEMORIA

DE

Amélia Coutinho Filgueiras Osório

Não pode .profanar-se com a publicidade o que é- sagrado e intimo !

Mas n'este livro, em que revivem tantas memorias queridas, pertence não pode deixar de pertencer a primeira pagina d'elle á que me é mais querida de todas l A que mais tem vivido em mim!

Á da pessoa, que mais influiu nos destinos da minha vida!

Á d'aquella, a quem estive ligado pelos laços da Igreja; e, antes, pelo parentesco do sangue e muito mais do que por este —pelo parentesco das almas!

Á da formosa e valente rapariga, que tudo tudo! sacrificou por mim... morrendo em Africa... aos vinte e cinco annos. . . com dois de casada. . . depois de haver sido mãe!

E, n'esses breves dias, elia não foi o ser idola- trado, a companheira de coração de seu marido! Foi também, pela cultura do seu espirito, um companheiro- nas letras e um auxiliar dos seus trabalhos officiaes!

Nobre e santa amiga!

Pertence-te este humilde livro, porque n'elle se presta

VIII

homenagem a affectos e sentimentos, que também foram teus!

Ensineí-te a amar João de Deus e os seus versos, os quaes, quando eu os publicava, tu os coligias, ainda antes da nossa união, na casa que foi dos nossos Avós, onde nasceu miniia Mãe e onde nasceste tu!

Os que agora ahi apparecem saiiiram da mesma pasta de veliudo a minha pasta de estudante— onde foram coliocados pelas tuas mãos delicadas: as mãos que sabiam tirar do piano maravilhosas melodias!

No reverso do teu retrato a óleo, estão transcriptas de um d^aquelles livros que liamos em commum estas palavras de Lamartine, que contêm outro retrato, porque são o teu retrato moral:

«Cette jeune personne avait reçu de la nature un esprit délicat.

«Elle descendait, sans fausse honte, aux plus humbles fonctions du ménage; et elle se livrait aux lectures les plus solides et les plus elegantes de la Vie lettrée.»"

Sobre a pedra do teu jazigo puderam, com justiça, ser gravadas copiando-as de um livro de tristes memo- rias — estas palavras : Quando a mulher alia ás virtudes da alma os dotes da intelligencia, é o ideal do bel lo e também o ideal do bem. '

vão tantos annos! Tem-me sido longa, áspera, por vezes tempestuosa, a jornada caminhando para ti!

Mas me não demoro... approxima-se o momento do encontro das nossas almas !

* Bulhão Pato, Sob os Cyprestes, pag. 128.

o Ultimo Marquez de Ponte de Lima

(Esboço biográphico e histórico)

O ultimo Marquez de Ponte de Lima foi uma figura originalíssima, que deveria apparecer-nos naquelia galeria de typos de raridade humana, que Champfleury celebri- sou no seu interessante livro Les Excentriques.

Esboçada a sua phisionomia moral pela penna elegante do escriptor francez que foi um dos iniciadores do rea- lismo—ficaria o seu retrato como de um dos mais sym- pathicos e de mais formosa alma !

Ao lado do illustre portuguez Gama Machado, ficaria bem este outro portuguez, por tantos titulos mais illus- tre ainda!

No Marquez verificava-se aquella regra formulada, para os excêntricos, por um celebre observador: Uhomme ex- térieur est moulé sur Vhomme intérieur!

É que á originalidade de proceder e de pensar corres- pondia a originalidade do trajar e vestir!

Sempre de sobrecasaca comprida de briche, ou de ca- saca preta; e, raras vezes, no inverno, um capote, á antiga, do mesmo panno nacional da sobrecasaca! Um inalterável chapéu de feltro de copa baixa e abas largas. Bengalão de

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canna da índia! Era assim que o Marquez percorria as ruas e ia tomar assento na Camará dos Pares, de que foi secretario, e a cujas sessões, durante certo período, com- parecia com assiduidade.

Nascido em berço de oiro, no meio da opulência; se- nhor de uma grande fortuna herdada e de um herdado poderio, fidalgo por nascimento, e da mais antiga e authen- tica linhagem histórica, ninguém foi mais despido do amor das grandezas e mais alheio ás vaidades humanas !

Democrata pelo coração e instincto, foi um fiel obser- vante dos mais rigorosos e radicaes preceitos da fraterni- dade e egualdade humanas!

Cidadão integro, coração bondosíssimo, alma cândida, foi o amigo dos pequenos, dos pobres, dos humildes, com os quaes de preferencia vivia e se irmanava!

II

D. José Xavier de Lima Vasconcellos de Brito No- gueira Telles da Silva, que este foi o seu nome, nasceu na Praça de Almeida em 12 de novembro de 1807.

Pertencia á mais antiga nobreza do reino. Na lingua- gem heráldica era azulissimo o seu sangue. Girava-lhe nas veias o de .Affonso de .Albuquerque, o do chronista João de Barros, e era descendente e directo representante de Pe- dro Alvares Cabral, o descobridor do Brazil (1). Seu pae, D. Thomaz José Xavier de Lima, fallecido aos 45 annos, militou com o posto de coronel na legião extrangeira, que,

(1) Veja-se no fim a nota \.

em 1808, foi para França, distinguindo-se em alguns com- bates. Sendo ajudante do Duque de Ragusa, quando as tropas francezas vinham invadir Portugal, patrioticamente desertou e foi apresentar-se ao Duque de Wellington para combater pela pátria.

Tinha o 3.° Marquez de Ponte de Lima a mais illustre ascendência por armas e letras.

O titulo de Visconde foi o primeiro, que houve em Portugal, concedido ao seu ascendente D. Leonel de Lima, a quem, no século xv, o Rei Affonso V fez Visconde de. Villa-NoVa da Cerveira e Alcaide-Mór de Ponte de Lima (1).

O titulo de Marquez d'esta villa foi concedido a seu Vis-avô, quando primeiro ministro da Rainha D. Maria I. Succedeu n'elle a seu pae em 1822.

Era o 17.'' Visconde de Villa NoVa da Cerveira; o 5.*' Marquez de Ponte do Lima; o 21.° senhor do mor- gadio de Soalhaes, no Minho; o 20.*' do de S. Lourenço, em Lisboa; e senhor também dos morgadios da Casa de Mafra. Disfructava os bens da commenda de Santa Maria de Borba e de Santa Maria de Satam (Vide B. de S. Cle- mente, tomo 4.° pags. 448 e 450).

Outhorgada a Carta Constitucional em 29 de abril de 1826, logo, no dia seguinte, escolhidos os membros da nobreza que haviam de constituir a Camará dos Pares, foi, apesar da sua menoridade, nomeado par do Reino. Apresentada a carta regia da sua nomeação na respectiva Camará, em 7 de dezembro, não tomou posse, n'essa legislatura, por falta de edade (2).

(1) Veja-se a nota B.

(2) Diz assim a Carta Regia :

Honrado Marquez de Ponte de Lima, amigo. Eu EI-Rei vos envio muito saudar, como aquelle que muito amo.

Attendendo aos vossos merecimentos e qualidades, hei por bem nomear-vos par do reino. O que me pareceu communicar-vos para vosso conhecimento.

Escripta no Palácio do Rio de Janeiro, a 30 de abril de 1826. Rei com. guarda.

Assim reunia á nobreza herdada a nobreza própria e legal de novo regimen constitucional.

4-

Pois este Grande do Reino, este fidalgo de raça. este nobre de uma fidalguia, que era até principesca, e mais que quatro vezes secular, praticou mais a democracia e foi mais apaixonado observante dos preceitos da egualdade de que uns certos plebeus do nosso tempo, que, pelos acasos da fortuna ou da politica, adquiriram posições, que os fazem arrotar, por toda a parte e por todas as for- mas, a sua importância, olhando-nos, impertinentes e impertigados. d'alto, por cima do hombro, e como que intimando toda a gente a reconhecer-lhes a sua pretenciosa superioridade!

II

Espalhadas em Portugal, no primeiro quartel do sé- culo XIX, as ideas liberaes, commungou n'ellas.

Dotado de viva intelligencia, seguia, aos dezenove annos, os estudos litterarios, próprios da sua cathegoria social, quando, depois de jurada a Carta Constitucional, na regência da infanta D. Izabel Maria, se levantou a insurreição absolutista do Marquez de Chaves e outros caudilhos anti-liberaes.

Immediatamente o joven Marquez, interrompendo os

seus estudos, foi tomar logar entre os defensores da nova ordem de cousas, alistando-se, como cadete, no regimento de cavallaria n.° 4.

Pelo seu nascimento e senhor de uma grande e opu- lenta casa, á qual andavam inherentes extraordinários pri- vilégios; estando, além d'isso. nomeado par do reino, podra, desde logo, ser-lhe dado o posto de official. Mas não! Foi como cadete, isto é, como simples soldado com algumas distincções, que se alistou.

N'essa obscura e humilde qualidade fez toda a campa- nha de 1826 a 1827, nas provincias do Minho e Traz-os- Montes, sujeitando-se a todos os perigos e duros trabalhos da guerra, como qualquer outra praça de pret sem diffe- rença alguma.

Tomou parte nos combates da Ponte do Prado e da Ponte da Barca, e seguiu a sorte dos seus companheiros de armas, que, sob o commando do Conde de Villa-Flôr, perseguiram os absolutistas até Melgaço, obrigando-os a transpor a fronteira do território portuguez.

Quando o seu regimento entrou em Villa Nova da Cer- veira, a Camará, sabendo que estava dentro dos muros da villa o titular d'ella, o representante dos seus nobres solarengos, resolveu ir, em corporação, cumprimentá-lo. Um dos Vereadores preparou-se para lhe lêr uma alocução de boas-vindas.

Procurando-o no quartel, onde estava instalado o seu regimento, indicaram-lho. Os vereadores ficaram atónitos! CustaVa-lhes a acreditar que fosse quem lhes indicavam o personagem, que procuravam !

E' que foram encontrar o Marquez, em mangas de camisa, a limpar o seu cavallo ! Foi assim, de ferro em uma das mãos, e de brossa na outra, que recebeu os representantes do município! Agradeceu os cumprimen-

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tos, que lhe dirigiam; fez-lhes uma cortezia e continuou na limpeza do animal.

Para elle as obrigações de soldado eram todas egual- mente dignas! (1)

Rechaçados os absolutistas, obrigados a passar a fron- teira e a internarem-se em Hespanha, despiu a farda de soldado e voltou para a sua casa de Lisboa.

Mas, logo no anno seguinte, em 1828, proclamado o absolutismo de D. Miguel, correu de novo ás armas, ainda como soldado cadete do mesmo regimento de cava- laria 4.

N^esta qualidade fez parte das tropas liberaes, que, depois dos combates do Vouga, da Ega e da Cruz de Morouços, tiveram de retirar sobre o Porto e em seguida emigraram atravez da Galliza, sob o comando do briga- deiro Joaquim de Sousa Quevedo Pizarro e do heróico Bernardo de Nogueira, então notável por feitos illustres e que tão gloriosamente figura depois na historia com os nomes de Visconde e Marquez de da Ban- deira.

Assim soffreu todos os duros transes, privações e maus tractos desse triste êxodo, que são descriptos por todos os historiadores. Embarcou depois para Inglaterra com os seus 2.Ò80 companheiros de armas, que a tantos ficaram reduzidos os 5.000, que, antes de passar a fron- teira, se reuniram na Portela do Homem.

(1) Foi narrado este facto e outros respectivos á vida do Marquez de Ponte de Lima, por ocasião da sua morte, no jornal A Democra- cia, de que era redactor, com Elias Garcia, o meu muito talentoso amigo Alberto Osório de Vasconcellos, de illustradissima e preclara memoria. Creio não me enganar julgando ser narrador ou informador daquelles interessantes factos um distincto e muito instruído official de enge- nharia, camarada e amigo de Osório de Vasconcellos, e que com elle vivia muito em contacto.

Por vezes escrevia no jornal curiosas narrativas do passado sob o pseudonymo de Velho Democrata. Era o coronel, depois general e ministro da guerra, Francisco Pereira Sanches de Castro, natural de Villa Nova da Cerveira, e que ali tinha casa e família.

Por despacho do governo miguelista de 20 de agosto de 1828 lhe foram mandados sequestrar todos os bens com o fundamento de haver sahido do reino sem li- cença (1).

Quem era senhor de tão opulenta fortuna achou- se assim reduzido á pobresa de qualquer outro emi- grado!

Em 1851 partiu de Inglaterra para a Ilha Terceira,

nini^MRií

Restos do Paço do Marquês, em Ponte de Lima

onde se congregavam os defensores da liberdade que para ella pretendiam conquistar a pátria.

Tomou parte nos combates dos Açores e foi um dos 7500. que desembarcaram no Mindelo e entraram no Porto.

(1) Carta do Marquez de Palmela, datada de Londres, em 5 de setembro e dirigida a D. Pedro 4.°. Vid. Barão de S. Clemente, Vol. 5.° pag. 247.

Durante o cerco, fez serviço em artilharia com o posta de alferes, destinguindo-se pela certesa dos seus tiros.

O regente D. Pedro, attendendo á alta hierarchia social do Marquez de Ponte de Lima e á sua valentia de soldado, quiz promovê-lo a mais elevado posto. Quiz fazê-lo seu ajudante de campo. Pediu escusa e nào acceitou (1). Quiz também fazê-lo seu camarista. Não acceitou ainda !

Somente lhe acceitou o presente de um fardamento nôvo e a condecoração da Torre e Espada (2).

Esta e a commenda de Christo, que lhe pertencia por successão de seus maiores, foram as únicas condecora- ções, que teve e de que fêz uso.

Facto digno de registo é que, quer na campanha de 1826 a 1827, quer na de 1828, quer na emigração (onde tantas paixões e luctas se levantaram!), quer depois no Porto, o titular, o marquez, o grande senhor, com privilé- gios quasi realengos, desapparece ! Ninguém o ! Nunca se salienta ! se conta com elle como um soldado obs- curo, firme, disciplinado, prompto e fiel cumpridor das ordens dos seus chefes !

IV

Terminada a guerra civil, restaurada a Carta, não alar- deou serviços, nem pediu recompensas. Sem se ligar a partidos, limitou sua acção politica ao exercicio das func-

(1) Democracia cit.

(2) Idem.

ções legislativas, como membro da Camará dos Pares, da qual, como fica dicto, foi secretario. O seu voto, livre sempre de compromissos partidários, era dado com a mais rara isenção e independência !

Por Vezes ficava isolado e único ! obedecia á sua convicção.

Era dos que nada lucravam e pessoalmente tudo per- diam com o novo regimen ! Acceitou-o porém com todas as suas consequências, por mais contrarias que ellas lhe fossem !

Donatário da Coroa, dahi lhe provinha uma grande parte das suas rendas. Tinha o privilegio de nomear tabelliães de notas em alguns concelhos.

Era também padroeiro exercendo o direito de apresen- tação de parochos em numerosas freguezias (1).

Estas grandes regalias regeitou ! A todos os enormissi- mos privilégios da sua casa, voluntária e abnegadamente renunciou !

Ha esse respeito um facto, que o caracterisa.

O decreto de 15 de agosto de 1832, chamado dos foraes e doações regias, foi uma das benéficas providen- cias de Mousinho da Silveira, que mais clamores levantou.

Foram-lhe feitas acerbas criticas e soffreu, durante muitos annos, uma grande impugnação dentro e fora do parlamento (2).

iMuito especialmente a soffreu nas discussões, que pre- cederam a approvação da carta de lei de 22 de junho de 1846 para o explicar e esclarecer.

Era a camará dos pares, onde principalmente se encon-

(1) Veja-se a nota C.

(2) Veja-se o livro —Repertório Comentado sobre Foraes e Doa- ções Regias por Francisco António Fernandes da Silva Ferrão, 1848.

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travam os privilegiados feridos, o ponto em que estavam concentrados os elementos que pretendiam destrui-lo !

Uma Vez porém, que o espirito do decreto foi posto em discussão, ou^^iu-se uma voz mais vibrante e mais alta dizer Approvo /. . .

Era a Voz do Marquez de Ponte de Lima !

Pois a medida legislativa, que o Marquez assim applau- dia, extinguia onerosos privilégios, aliviava a terra, favo- recia o povo, mas deixava-o sem uma grande parte dos rendimentos, que elle e os seus ascendentes haviam uso- fruído!(l).

Um raro altruista! Um espartano! Um estóico, que merece a admiração da posteridade !

V

A sua antiga nobresa chamaVa-o à corte. Mas o ultimo Marquez de Ponte de Lima não tinha feitio para cortesão, nem pulmões para respirar entre aulicos.

Viveu sempre afastado dos paços reaes, e não por despeitos, ou ambições insatisfeitas, pois excepcionalisi- mamente, se julgava dever comparecer, comparecia.

Quando, ha poucos annos, falleceu a ultima filha da Rainha D. Maria 2.''^, a que foi a formosa infanta D. An- tónia, relembrou a imprensa a pomposa solemnidade do seu casamento com o príncipe Leopoldo de Hohenzollern ; e n'essa descripção figura o Marquez de Ponte de Lima,

(1) Veja-se a nota D.

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como um dos dignatarios da corte, a quem, na solemnidade religiosa, coube uma das principaes funcções.

Afastava-se da corte, como das reuniões da aristocracia pela força dos seus instinctos e dos seus iiabitos.

Comprazia-se em viver antes de preferencia com os modestos e os humildes.

Celibatário, Viveu sempre na terna e doce companhia de seus dous irmãos, D. José Xavier de Lima e D. Anna de Lima, simples e bondosos como elle.

Residiam todos três n'esse grande palácio de S. Lou- renço (não longe do qual estou escrevendo), que passou depois para sua sobrinha, a Marqueza de Castello Melhor, D. Helena de Vasconcellos e Sousa.

A capella do palácio é tão vasta que serve hoje de egreja parochial á freguesia.

Faz o palácio frente para o Largo da Rosa e occupa a maior parte da rua, que actualmemte se chama de Mar- quez de Ponte de Lima.

A ruína dessa grande e fidalga habitação era tal que o Marquez, diz-se, por vezes, tinha de abrir um guarda-chuva' para passear nos seus salões!

Na mesma ruína cahiu uma parte desse nobre edifício, de grande e sumptuosa fabrica, que, em Ponte de Lima, se chamava o Paço do Marquez, e de que hoje exis- tem uns deturpados restos, que serão a quinta parte do que ainda conhecemos.

O Paço de Giela, nos subúrbios da vila dos Arcos de Vai de Vez, é que ainda formosamente se ostenta, mos- trando o que foi (1).

Mas, n'esse arruinado palácio de S. Lourenço, abri-

(1) O Paço de Giela, com metade do termo dos Arcos e outras terras, foi doado pelo Rei D. João 1.° a Fernão Annes de Lima por se haver passado da Qalliza quando elle conquistou Tuy. Esse fidalgo veiu a ser o tronco da familia dos Viscondes de Villa Nova da Cerveira, que depois muito augmentou o edificio e a matta.

(Chorografia Portuguesa pelo Padre António de Carvalho da Cos- ta, tomo 1.°. pag. 223; Pinho Leal, Porto Ant. e Moder.

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gava quantos pobres lhe pediam albergue e que elle podia albergar.

Pouco tempo antes da sua morte, seguindo os costu- mes antigos, ceava, uma noite, com seus irmãos, quando sentiram um extraordinário barulho no tecto, e delle viram cahir. . . uma grande cobra (1).

Paço de Giela, em Arcos de Vai de Vez. Primitiio solar da família

Determinaram-se então a ir fazer uma exploração e pesquisa aos altos do palácio.

Foram e ali encontraram um individuo deitado em cama bem preparada a lêr um jornal !

Interrogado, respondeu-Ihes que era um operário hon- rado, que, em uma noite, não tendo onde pernoitar, viera para ali, e, não havendo sido por ninguém incommodado, comprara aquella cama e mobilia e ali se instalara : que ali estava . . . havia três meses ! »

O Marquez riu-se e pediu-lhe desculpa de o haver in- commodado (2).

(1) Democracia, cit.

(2) Idem.

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Não tinha um inimigo, nem mesmo um adversário! Apesar do seu feitio original, era, pela sua bondade, em toda a parte onde apparecia saudado e respeitosamente tractado.

Um anno resolveu perdoar metade das rendas a todos os inquilinos pobres.

No dia do pagamento, disse a todos: «ganhamos a meias; «vocês ficam com uma metade e eu com outra. >

Por vezes diz-se se sujeitou a grandes privações e as fêz soffrer á sua virtuosa familia, porque dava aos pobres o que era indispensável para si e para os seus!

Facto característico da sua despretenciosa e despren- dida originalidade é o seguinte :

Estava em um estabelecimento de trens de aluguer, quando ali foram procurar uma carruagem, para ir bus- car um medico reclamado para um doente em perigo de vida.

Procurou-se o cocheiro, mas estava ausente. Por mais que se buscasse, nào appareceu. Havia trens mas faltava cocheiro.

Então o Marquez promptificou-se a substitui-lo ! Prepa- rado o trem, saltou para a boleia, foi buscar o medico, levou-o ao doente e voltou a conduzir o trem para o esta- belecimento (1).

(1) Idem.

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VI

Como explicar o extraordinário modo de sentir e Viver, os hábitos adoptados por fidalgo tão opulento e tão illus- tre?

E' porque era baixo ou grosseiro de espirito e senti- mentos ?

Não ! Era intelligente ! Tinha uma distincta apresenta- ção! Era uma alma nobre e delicada!

E' que elle era o producto de uma lei sociológica, de uma lei talvez providencial !

Era a sociedade antiga, que desapparecia, e a moderna que surgia na mesma pessoa!

Era um dos mais altos representantes dos privilégios e das desegualdades sociaes, que se tornava o represen- tante da egualdade civil, da egualdade politica e da egual- dade christã !

O principio da fraternidade humana encarnou n'elle I Tomou todo o seu sêr !

Havia no coração desse opulentissimo fidalgo a paixão da egualdade ; o desdém e o aborrecimento enjoativo pelas grandesas e vaidades humanas !

Repetiam-se n'elle, mas com maior serenidade, os sen- timentos daquelles membros da aristocracia franceza os Noailles, os Châtelet, os Virieu, os Blacons que na noite celebre de 4 de agosto (chamada na historia a Saint- Barthelemy dos abusos) renunciaram aos lucrativos privi- légios e excepcionaes prerogativas seculares, que lhes pertenciam !

Nenhum porém o fez como o iMarquez de Ponte de

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Lima, sem alarde politico, sem segundas vistas, sem o amor ou especulação da popularidade.

Se nunca foi, nem quiz ser cortezão dos reis, também não quiz nunca ser cortezão do povo, este novo soberano, ao qual não faltam nem cortezãos nem especuladores a lisonjea-lo.

Elle, que se humilhava com os humildes, que tratava de egual para egual os pequenos, sabia elevar-se a toda a altura da sua hierarchia social e da dignidade da sua posi- ção com os pretenciosamente Vaidosos!

Anda narrado um caso, que bem pinta essa sua feição moral.

Deparou-se-lhe um doestes fidalgotes de província, que espremidamente se dizem primos de todos os authenticos fidalgos e parentes de algum grande sancto da christan- dade ! Typos, cuja prosápia heráldica está na razão inversa da pobreza de miolos e até, muitas vezes, compensando-a por essa forma, com a de bens de fortuna.

Dirigindo-se ao Marquez, que o recebeu com a sua natural bonhomia, deu-lhe o tratamento á^ primo, que elle acceitou. Mas, no proseguimento da conversa, empregou o Marquez o tratamento de senhoria, a qual, posto que andasse pelo preço dos tremóços, como diz um soneto do satyrico Paulino Cabral, era comtudo o tratamento geral, porque a excellencia então ainda era dada aos que legal e rigorosamente tinham direito a ella !

O provinciano, que, como primo, se julgava de fidal- guia não menor, deu também senhoria ao Marquez, o qual mudou immediatamente dando e.icellencia ao seu interlocutor.

Este, lambendo-se com a elevação, emendou a lingua e passou a dar também excellencia ao Marquez. Mas logo Voltou este á senhoria! E sempre assim, no decorrer d^essa, ou de outra conversação !

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Até que o desmiolado e vaidoso, interrompendo, disse que nào sabia como queria que o tractasse, pois que tinha notado a variação do tractamento.

«Como quizer, como quizer replicou é indifferente; mas o mesmo tratamento é que nós não podemos ter!»

Assim espirituosamente amarrotou o vaidoso, que era da laia de outros, que snobicamente por ahi se exhibem e abundam, com sapinhos nojentos em tarde chuvosa de maio !

VII

Estava-se no fim do anno de 1877.

Apesar da robusta saúde, que sempre tinha gozado, a morte approximava-se.

A missão do 3.° Marquez de Ponte de Lima estava cumprida. Tinha findado o seu bem extraordinário papel no mundo. Os seus dois irmãos e companheiros queridos iam soffrer um golpe, que os lançaria na mais profunda consternação.

Os pobres, perdendo um grande amigo, iam também derramar sinceras lagrimas!

Na fria manhã do dia 21 de dezembro, na simplicidade e despretenção dos seus hábitos, entreteve-se, ainda muito cedo, olhando de uma das janellas do seu palácio para um pateo interior a ver chamuscar um porco.

Depois, recolhendo-se, sentou-se junto de uma meza, e conversou com seu irmão. Reclinou a cabeça e serena- mente, para sempre, adormeceu no Senhor!

A sua alma pura acolheu-se ao seio de Deus'.

NOTA A

(Pag. 2)

Na Memoria Apresentada á Academia Real das Sciencias pelo Visconde de Sanches de Baêna sobre o Descobridor do Brazil, Pedro Alvares Cabral e no artigo do sr. Júlio Mardel, no «numero extraor- dinário» da revista Brazil-Portugal , destinado á commemoração do 4.° centenário do Descobrimento do Brazil, encontra-se a seguinte linha genealógica descendente do grande navegador :

VI Pedro Alvares Cabral, ou de Gouveia, Descobridor do Bra- zil, casou com D. Izabel de Castro, 5.^ neta de El-Rei D. Fernando de Portugal e de El-Rei D. Henrique de Castella, filha de D. Fer- nando de Noronha e de sua mulher D. Constança, de Castro, que era irmã do grande Affonso d'Albuquerque e que foi camareira-mór da infanta D. Maria.

Jazem em Santarém na Igreja da Graça.

VII Fernão Alvares Cabral, teve varias mercês, foi moço fidalgo, etc. . . Foi grande valido de D. João III. Morreu n'um nau- frágio no Cabo da Boa Esperança; casou com D. Margarida de Castro, filha do commendador d'Arruda, alcaide-mór da mesma villa, e de sua mulher D. Brites de Castro, filha de Ayres da Silva, 5.° Senhor de Vagos.

Tiveram entre outros filhos :

VIII João Gomes Cabral, que foi Capitão das Guardas dos Reis D. João III e D. Sebastião. Morreu em Alcacer-Quibir. Foi cazado com D. Brites de Barros, neta do chronista João de Barros.

Houveram entre outros herdeiros :

IX Fernão Alvares Cabral, que casou com D. Joanna Carva- lhosa da Maya, filha herdeira de Ruy Gomes Carvalhosa, thesoureiro- raór do reino, senhor do morgadio de Palhavã, e de sua mulher D. Maria de Maya de Lemos. D'este casamento nasceram duas filhas e herdou a casa de seus pães a primogénita.

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X D. Maria Cabral de Noronha, senhora da grande casa de seus pães e avós. Casou pelo anno de 1622, com o senhor da casa de Mafra, da Enxara dos Cavalleiros e dos Concelhos de Aregos e Soalhães, alcaide-mór de Castello-Bom, governador e capitào-general de Mazagào, D. João Luiz de Vasconcellos e Meneses, que morreu em 15 de maio de 1648.

Foi sua herdeira :

XI D. Joanna Cabral de Vasconcellos e Menezes, que além- dos senhorios da casa de seus pães, teve o senhorio da ilha do Fogo.

Esta senhora foi primeiro casada com o infeliz Conde de Arma- mar, decapitado com o Duque de Caminha e Marquez de Villa-Real, na Praça do Rocio, em Lisboa, e a segunda vez com o 9." Visconde de Villa-Nova da Cerveira, D. Diogo de Lima Brito Nogueira, nas- cido em 1615.

Foi do Conselho de Estado e do da Guerra, governador das Armas de Entre Douro e Minho, estribeiro-mór de El-Rei D. Af- fonso VI, senhor de varias alcaidarias-móres, commendador de Chris- to. Morreu no seu Palácio da Rosa em 24 de Abril de 1665 e sua mulher havia morrido no seu solar de Ponte de Lima em o anno de 1653.

Um filho d'este matrimonio, o primogénito, morreu afogado no Tejo, quando em companhia de El-Rei D. Affonso VI, navegavam em frente de S. José de Ribamar. Parece que este teve, em vida de seu pae, o titulo de Visconde, porque seu irmão João, que lhe suc- cedeu, era o 11.° Visconde e seu pae fora o 9." na ordem numérica dos Viscondes.

XII D. João Fernandes de Lima Vasconcellos Brito Nogueira,,

11.° Visconde de Villa Nova da Cerveira, nasceu em Ponte de Lima, a 12 de outubro de 1655. Casou com a Condessa de Athouguia, D. Victoria de Bourbon, viuva do Conde D. Manuel Lima de Athaide. Do casamento com o Visconde houve, entre outros herdeiros :

XIII D. Thomaz de Lima Vasconcellos de Brito Nogueira, 12.° Visconde de Villa Nova da Cerveira, que morreu em 26 de abril de 1674. Casou com a princêza Maria de Hohenloe, filha de Luis Gus- tavo, Conde de Hohenloe e Príncipe do Sacro Romano Império, etc, etc. (Vid. Os Grandes de Portugal, por D. António Caetano de Sousa). Tiveram: D. João de Lima, que morreu menino, e a filha que lhes succedeu.

XIV D. Maria Xavier de Lima Hohenloe. Foi 13. ^ Viscondessa de Villa Nova da Cerveira. Nasceu no 1." de Dezembro de 1697, e casou em 28 de Outubro de 1720 com Thomaz da Silva Telles, filha dos 2.°* Marquezes de Alegrete; morreu a 5 de julho de 1730.

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D'este casamento nasceram vários filhos, seguindo a linha com o primogénito.

XV D. Thomaz Xavier de Lima Nogueira Vasconcellos Telles da Silva, nascido em Ponte de Lima a 12 de outubro de 1727, foi 14.° Visconde de Villa Nova da Cerveira, Marquez de Ponte de Lima, 1." ministro de D. Maria 1." e seu mordomo-mór. Foi soba sua gerência que Diogo Ignacio de Pina Manique fundou a Casa Pia. Casou em 4 de julho de 1745 com D. Eugenia Maria Josefa de Bra- gança, nascida em 1725, filha dos Marquezes de Alegrete e neta materna dos Duques de Cadaval. Marido e mulher morreram em 1780. D'este enlace nasceu, entre outros, o filho primogénito.

XVI D. Thomaz Xavier de Lima, 15.° Visconde de Villa Nova da Cerveira, que morreu em vida de seu pae em 1780, tendo casado com D. Maria José de Assis Mascarenhas, em 1777, filha dos 5.°^ Condes de Óbidos.

Teve d'este casamento um filho, com o qual segue a linha,

XVII D. Thomaz José Xavier de Lima Vasconcellos de Brito Nogueira Telles da Silva, nascido a 12 de dezembro de 1779, e f oi 16." Visconde de Villa Nova da Cerveira e Marquez de Ponte de Lima. Casou em 1807 com D. Helena José de Assis Mascarenhas, que nasceu a 21 de fevereiro de 1784, sendo filho dos 4.°* Condes de Óbidos. D'este casamento nasceu

XVIII D. José Xavier de Lima Vasconcellos Brito Nogueira Telles da Silva, 17.° Visconde de Villa Nova da Cerveira e 5." Mar- quez de Ponte de Lima.

Este foi o ultimo Marquez d'este titulo, de que nos occupâmos.

20 NOTA B

(Pag. 3)

No Almanach de «O Commercio de Lima^ , de 1909, o sr. Dr. Manoel de Oliveira, distinctissimo medico municipal em Ponte de Lima, deputado e senador ao Congresso da Republica, iilustre pelos dotes da sua intei- ligencia e variada iliustração, escreveu um artigo, a que devemos fazer honrosa referencia, e seria graVe falta não a fazer n'este nosso estudo.

Nesse artigo, que tem por titulo Pro Veritate, se o seguinte:

«Os municipios na Edade Média, revoltando-se contra «as exigências legaes dos senhores de Juro e herdade, «evidenciavam essa força mysteriosa de vida e revolução, «mais por instinto do que por consciência nitida de seus «direitos, mais em defeza natural de seus interesses do «que em ódio a seus senhores.

«A critica parcelar da Historia, baseada nessas luctas «titânicas do município de Ponte de Lima, aponta D. Leo- «nel, o visconde, e seus descendentes mais próximos, «como tyranos desta nossa terra, tão encantadora e tão «linda. Quem assim a ouvir julgará que esses homens «de extorsões viviam, ignorando os enormes serviços que «prestavam á Pátria e que se elles exigiam tributos, estes «lhes eram facultados pelas leis e costumes da Edade-Me- «dia, nas doações de juro e herdade que lhes faziam os «monarchas, como paga de seus trabalhos nas conquistas «e descobertas marítimas. ^

A estes períodos, acrescentou o distincto escriptor uma erudita nota histórica, que julgamos dever transcre- ver na integra.

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E' a seguinte:

De um códice dos fins do século xvi vamos transcrever o sum- mario dos principaes serviços prestados á Pátria por D. Leonel de Lima e seus descendentes immediatos. É o duplicado d'um requeri- mento feito por D. Luiz de Brito Nogueira ao cardeal rei, pedindo- Ihe para, a despeito da lei mental, ser encorporada na sua casa, a de seu sogro D. Francisco de Lima, que foi o ultimo representante va- ronil no ramo direito da sua linhagem.

-. . .Lionel de Lima foi na tomada de Ceita, he em tempo d'el Rey Dom Duarte foi cos Iffantes a Tamgere com muita gente he alguns de seus filhos co elle. He sendo hum dia a guarda do palan- que sua, elle cos seus sosteve não ser emtrado aquelle dia, onde ganharão muita honra.

He foi mais he alguns de seus filhos co elle, he com muita gente com el Rey dom Afonsso o quinto na tomada Dalcaçere.

He foi na tomada de Tamgere he na Darzilla, em que levava seiscentos de pé, he sesenta de cavallo, he os seiscentos erão bes- teiros, lanceiros he escudados, he muitos navios, he mantimentos.

He se achou em todas as guerras de Castella. que o mesmo Rey teve onde fez muitos e valiosos serviços.

He foi muito estimado de quatro Reys que sérvio, por que todos sérvio sempre co a lança na mão, he foi o capitão que mais vitorias teve na fronteira de galiza, onde estava, he que mais terras tomou por que emtrou por galiza até o Padrão seis legoas de Santiago, he tomou he destruhio muitas villas he lugares, he os trouxe á obediên- cia dei Rey de Portugal.

He foi mandado por embaixador a Castella por mandado dei Rey Dom Afonsso o quinto no tempo dei Rey dom João o segundo de Castella. He na batalha Dulmedo que El Rey teve cos Iffantes seus cunhados pelejou elle tam valerosamente, he fez taes cousas que lhe fez o dito Rey de Castella mercê de duzentos mil reis decostamento.

He em tempo dei Rey Dom João o segundo se fez prestes para o socorro Da graciosa com perto de mil homens de pé, antre escu- deiros e peães, he muitos navios que mandou á sua custa fretar a galiza; he sendo muito velho, he co huma espingarda por uma perna que lhe derão nas guerras de Castella, de que nunca foi são, lhe não safreo o coração ficar n'este Reyno, he mandou levar uma tumba cuberta de veludo preto, em que o enterrassem se morresse. He este foi o primeiro Bisconde.

Dom João de lima seu filho, herdeiro de sua casa he Titollo, foi guarda mor dei Rey Dom João o segundo; foi em vida de seu pae cos Iffantes a Tamgere, he co el Rey Dom Afonsso o quinto na tomada Dalcaçere, he assi se achou na tomada de Tamgere, he na tomada Darzilla, he em todallas guerras de Castella, he na entrada da ponte de Samora foi muito mal ferido dhuma espinguardada.

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Dom francisco de lima seu filho herdou sua casa he Titollo, mandou-ho el Rey Dom Manoel Azamor quando foi o Duque de Bar- guança que levasse trezentos homens: e assi o mandou Arzilla co sessenta de he oito de cavallo. He assi foi ao cerco Darzijla co cento e çimcoenta de he corenta de cavallo, onde esteve hum anno e se achou com o Conde de Borba em todas as emtradas que fez. He em huma foi por Capitão coa sua gente he co corenta de cavallo que lhe o Conde deu, he nella tomou e çaqueou algumas aldeãs de que trouxe muito grande preza sem perda de nenhum dos seus.

Dom João de Lima seu filho herdou sua casa he Titollo, foi por mandado d'el Rey Dom João o terceiro, quando mandou os morgados a Ceita co muita gente, he navios he mantimentos co muito gasto de sua fazenda, e assi sérvio sempre em todas as mais cousas que socederão he que o mandarão . . .-

A muitos d'estes factos summariados por D. Luiz de Brito no seu memorial, referem-se, e por vezes largamente, os nossos velhos chronistas. A seguinte resenha bibliographica servirá de roteiro aos estudiosos e de justificação ás palavras acima transcriptas:

D. Leonel de Lima:

Expedição a Ceuta: Chronica de D. Duarte, por Nunes de Leão, cap. VIII, pag. 23. Chronica de Duarte, de Ruy de Pina, cap. xv. Africa Portugueza, por Faria e Souza, cap. iii, pags. 37 e 41.

Expedição de Tangere e guarda do palanque : Chronica de D. Duarte, por Nunes de Leão, caps. xi e xii ; Chronica de D. Duarte, de Ruy de Pina, caps. xxvii e xxx.

Embaixada de Castella em 1443 : Europa Portugueza, por Faria e Souza, tom. ii, part. iii cap. iii, pag. 370.

Leonel de Lima foi uma das principaes personagens que figura- raram no pomposo baptisado de D. João II (vide Europa Portu- gueza, cap. IV, pag. 428), e foi uma das mais notáveis da corte de D. Affonso V (vide Historia Genealógica da Casa Real, tom. iii. pag. 8). Alguns dos filhos segundos de Leonel de Lima praticaram também actos de bravura na Africa. Lembraremos Pedro de Lima, em Alcácer (Chronica de D. Duarte de Menezes, pag. 227) e Álvaro de Lima, que foi captivo na expedição de Tangere em 1464 (Africa Portugueza, cap. vi, pag. 59) e foi na entrada de Merida em 1476 (Europa Portugueza, tom. ii, part. iii, cap. iii, pag. 420). A res- peito 4e D. Leonel de Lima, veja-se ainda : Chronica da Conceição, tom. II, cap. II e seguintes. Escola da Penitencia, cap. xxiv, pag. 395.

D. João de Lima, o ii visconde:

Jornada de Alcácer: Chronica de D. Duarte de Menezes, por Azurara, pag. 170.

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Tomada de Tangere, o velho: idem, idem, pag. 242.

Entrada da Ponte de Çamora; Chronica de D. Affonso V, de Ruy de Pina, cap. 184; Chronica dei Rey Affonso V, por Nunes de Leão, cap. iv; Chronica do Principe D.João, por Dameào de Qoes, cap. Lxviii; Europa Portugueza, tom. ii, part. iii, cap. iii, pag. 402.

D. Francisco de Lima, o iii visconde :

Sobre a ida a Arziila e as entradas nas fronteiras mouriscas, veja-se Chronica de D. Manuel, por Dameão de Góes, ò.^ parte, caps, VIII e XI. Sobre esta aparatosa expedição, veja-se também a interessantíssima noticia dada pelo sr. dr. Figueiredo da Guerra, no seu notável Archioo Viannense, pag. 75, noticia extrahida do Memo- rial de Calheiros. Ha na apreciação dos factos certa divergência entre Góes e o auctor do Memorial. Vide ainda Africa Portugueza, por Faria e Souza, pag. 90.

D. João de Lima, o iv visconde:

Ia por capitão á índia em 1518, quando lhe sobreveio um desas- tre no navio próximo do Cabo da Boa Esperança, estando a ponto de perder-se e tendo por isso de regressar a Portugal. Ásia Portu- gueza, tom. I, cap. II), pag. 185. Voltou á índia como capitão, em companhia de Diogo Lima, em 1522. i4s/a Portugueza, tomo i, cap. VII, pag. 217. Foi governador de Calecut, onde praticou actos de subido grande valor. Ásia Portugueza, tom. i, cap. ix, pag. 236 e seguintes. Chronica de D. João III, por Francisco de Andrade, 1.^ parte, cap. 57, 70 a 75, 78 a 84, 88 a 91, etc.

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NOTA C

(Pag. 9)

Da Chorografia Portugueza do Padre Carvalho, vê-se que os Viscondes de Villa-Nova da Cerveira tinham a prerogativa realenga do direito de apresentação de muitos parochos e da nomeação de officiaes de justiça.

No concelho de Arcos de Vai de Vez apresentavam os parochos das seguintes freguezias :

Sancta Comba de Guilhafonce.

S. Jorge.

Nossa Senhora do Valle.

Sancta Maria da Oliveira.

Sancta Eulália de Gondariz.

S. Cosmêde.

S. Salvador de Cabreiro.

Sancta Maria de Mei.

Sancto André da Portela.

Nossa Senhora das Neves de Padrôso.

Sancta Comba de Eiras.

Sancto Estevão de Aboim.

S. Salvador de Sabadin.

Sancta Vaia de Rio de Moinhos.

Sancta Maria de Prozêlo.

S. Bartholomeu de Monte-Redondo.

Sancta Maria de Távora.

S. Paio de Jolda.

S. João de Villar do Monte,

No concelho de Coura :

Sancta .Maria de Paredes. S. Pedro de Castanheira. S. João de Bico. S. Miguel de Christelo. Sancta .Marinha de Padornêllo. S. Pedro de Formariz.

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S. Paio de Aguas Longas. S. Pedro de Ruivães.

No concelho de Famalicão :

S. Salvador de Ruivães.

Mais:

Sancta Cruz do Douro, no concelho de Baião.

S. Martinho de Soalhaes (no concelho d'este nome).

Sancto André ds Portel.

Priorado de Alemquer.

S. Lourenço, em Lisboa.

S. Miguel de Barrio (em Ponte de Lima).

Apresentavam os Viscondes de Villa Nova da Cerveira seis íabel- liães e um alcaide, no concelho de Arcos de Vai de Vez ; e pagavam- Ihe pensão os seis tabelliães do concelho de Ponte de Lima.

Tinham o senhorio da villa dos Arcos de Vai de Vez; o (dos então concelhos) de Santo Estevão de Facha e de Geraz do Lima, o do concelho de Coura, o das terras do Beiral do Lima e Couto de Nogueira, em Villa Nova da Cerveira, que era a cabeça do Viscon- dado. Era donatário e Capitão-general da ilha do Fogo (Vid. Carva- lho, cit. e a Resenha das Fam. Titul. e Grandes de Portugal por Albano da Silveira e Sanches de Baêna, Tomo 2.°) fora as diversas commendas, como a de Sancta Maria de Passos, de Valongo, S. Mi- guel da Foz de Arouce (Cron. cit.) e as de Sancta Maria de Borba e Sancta Maria de Satam, como dissemos no texto.

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NOTA D O decreto de 13 de agosto e as rendas que elle aboliu.

(Pag. lOj

No citado artigo Pro Veritate—áo Dr. Manoel de Oliveira que diz possuir parte dos papeis do archivo dos antigos donatários de Ponte de Lima, os quaes pas- saram para o adquirente do grandioso edificio d^aquella villa e lhe foram cedidos pelas senhoras, representantes e herdeiras d'aquelle adquirente, indica o distincto es- criptor qual a importância das rendas, que cobravam os Marquezes naquella qualidade de donatários.

Em face de taes documentos, pôde dizer o seguinte :

cRecebiam o quinto de todo o trigo, centeio, cevada, milho, «painço, aveia, vinho e linho produzidos dentro dos limites marcados «pelo foral de D. Thereza confirmado por D. Manoel e verificados «em 1626 e 1640. Alem d'estes direitos recebiam tributos em dinheiro «de todas as casas de Ponte de Lima, excepto das privilegiadas.

«Em 1814, a avença do quinto rendia para o donatário 330$250 réis «em metal e 150 alqueires de pão.>^

Vamos para aqui transcrever o texto dos principaes artigos do decreto que aboliu todas essas onerosas ren- das e excepcionaes alcavallas, e que o Marquez, que as perdeu, foi um dos primeiros a applaudir. Tem 18 arti- gos. Copiaremos os artigos desde 2 a 9, que são os que mais interessam ao nosso intento :

Art. 2.° Os bens da nação, tomada collectivamente, são os bens do uso geral, e commum dos habitantes, como portos, canaes, rios navegáveis, estradas geraes, e pontes n'ellas construídas, cães, e edifícios destinados para a residência do rei, ou para as sessões

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das camarás, secretarias, tribunaes, aquartelamentos, estaleiros, arsenaes, e outros semelhantes. Os bens da nação, adquiridos por títulos de successâo, e execução fiscal, e não destinados ao uso geral, e commum, serão regulados pelas leis da fazenda, e formarão parte do thesouro publico disponível : a nenhuma d'estas espécies de bens he applicavel a jurisprudência dos bens chamados da coroa—: a natureza d'estes bens fica extincta, bem como todas as leis relativas a elles, e á sucessão d'elles.

Art. 5." As doações feitas pelos reis d'estes reinos de bens chamados da coroa; de bens da fazenda publica; de direitos cha- mados— direitos reaes— ; do gozo exclusivo de bens destinados ao uso geral, e commum dos habitantes; os foraes daáos ás terras do reino, ou pelos reis, ou pelos donatários; e os foros, pensões, quo- tas, rações certas, e incertas, laudemios, luctuosas, e mais direitos, e prestações de qualquer denominação que sejão, impostas pelos reis, ou pelos donatários em virtude de suas respectivaas doações, ou pelos foraes, ainda que estejão reduzidos a emprazamentos, ou sub-emprazamentos, ou a censos, são por sua natureza revogáveis.

Art. 4." -As contribuições, e tributos pagos pelos povos, sendo essencialmente destinados para as despezas publicas, não podem fazer o património de alguma corporação, ou individuo de qualquer hierarchia que seja : as contribuições e tributos serão de sua natu- reza geraes, e devem ser repartidas entre todos os habitantes da monarchia, segundo as leis geraes. Os direitos, foros, pensões, e mais prestações enumeradas no art. 3.", e impostos pelos donatários, ou pelos foraes, são verdadeiros tributos e contribuições, que nem todos pagavão, nem de todas as terras, e não podem continuar a subsistir.

Art. 5.°— Ficão por conseguinte cassadas e revogadas todas as doações de quaesquer dos bens enumerados no art. 3.°, feitas pelos reis a qualquer corporação, ou individuo de qualquer hierarchia que seja ; e extinctos todos os foraes dados ás differentes terras do reino, ou fossem dados pelos reis, ou pelos donatários da coroa.

Art. 6.° Ficão extinctos todos os foros, pensões, quotas, cen- sos, rações certas e incertas, jugadas, teigas de Abrahão, laudemios, luctuosas e mais direitos e prestações de qualquer denominação que sejão, impostos nos bens enumerados no art. 3.", ou pelos reis, ou pelos donatários, ou por contractos, de emprazamento, ou sub-empra- zamento, ou de censo, fundados, em doações regias, ou em foraes, ou em sentenças, ou posses, ainda que sejam immemoraveis, ou por outro qualquer titulo, posto que não especificado.

Art. 7." Ficão extinctos os prazos da coroa, os relegos, os reguengos, os senhorios das terras, e as Alcaidarias mores, salva a conservação puramente honorária dos titulos.

Art. 8."— As terras e os edifícios, e demais bens enumerados no art. 3 °, em que estavão impostos os tributos e prestações e mais

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direitos extinctos, pelos arts. 6." e 7.°, ficão livres e allodiaes em poder de quem pagava esses tributos, prestações e mais direitos extinctos, para poder dispor delies como quizer em todo, ou por par- tes, ou transmitti-los a seu* herdeiros e successores e dividi-los por elles como seus próprios, ou os houvesse dos reis, ou dos donatários, ou d'aquelles, que os tivessem havido dos reis, ou dos donatários.

Art. 9.°— Ficào revogados, a beneficio dos gravados, todos os impostos cobertos com os nomes de emprazamento, ou sub-empraza- mento, ou de censo, ou de retro aberto, ou de outra qualquer deno- minação, feitos sobre os bens especificados no art. 3.°, ou fossem feitos pelos reis, ou pelos donatários, ou por os que d'elles obtiverão esses bens ou por qualquer titulo.

Art. 10."— Fica revogada a lei mental e todas as leis que regu- lavào a successão dos bens da coroa.

Paço na cidade do Porto, 13 de agosto de 1852.

D. Pedro, Duque de Brag.\nça. José Xavier Mousinho da Silveir.^.

António Corrêa Caldeira

(Esboço biográphico)

O Conselheiro António Corrêa Caldeira (António José Marques Corrêa Caldeira, nos registos universitários), doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, lente substituto ordinário da mesma Faculdade, secretario do governo civil de Lisboa, secretario do Con- selho de Estado, deputado em muitas e successivas legis- laturas, conselheiro do Tribunal de Contas, vice-presidente da Camará dos deputados nas sessões legislativas de 1872, 1875 e 1874, Par do Reino, nasceu na villa de Ponte de Lima em 13 de outubro de 1815 e ali passou os primeiros annos da sua mocidade.

Foi um homem illustre por talento e virtudes, tendo uma grande notoriedade e consideração politica desde 1842 até 1876, em que falleceu.

Era filho de José Marques Caldeira, official do exer- cito, oriundo de uma familia das proximidades de Coim- bra, o qual morreu no posto de general de brigada, e da Senhora D. Anna Ephigenia Rita Corrêa, dama limiense, sobrinha de Frei Francisco de S. Luiz.

Pertencia assim, por sua mãe, o nosso biographado á

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familia do glorioso monge benedictino, que patrioticamente abandonou o recolhimento e obscuridade do claustro, bem como os estudos, em que nelle tanto se comprazia, para se pôr á frente da revolução de 1820!

O sábio, que foi escolhido para redigir o manifesto ás

Igreja Matriz, onde foi baptizado

nações, explicando as causas d'esse grande movimento nacional, tornando-se a voz da revolução! O varão insigne, que foi um dos membros do governo superior do reino na ausência do rei! O patriota, que presidiu, com Manoel

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Fernandes Thomaz, ás cortes constituintes de 1822 e depois á legislatura de 1827!

Frade liberal e frade catholico e virtuosíssimo, que veio a ser Bispo-Conde de Coimbra, ministro de Estado, rei- tor da Universidade, Patriarcha de Lisboa e Cardeal da Sancta Igreja Romana !

Tendo, pelas exigências da Vida militar, sabido seus pães da villa de Ponte de Lima, ficou o filho entregue aos cuidados de suas tias, irmãs do futuro cardeal, D. Joanna e D. Marcelina Saraiva, que o crearam e educaram como seu filho predilecto e estremecido.

Frequentou a aula de latim na casa situada no Largo do Adro da Matriz, que faz esquina para a Rua do Souto

Caza onde foi a aula de latim

(hoje de Vieira Lisboa), a qual é actualmente habitada pelo bondoso homem e honrado negociante, o Sr. Manoel Faria.

N'ella ensinava a lingua de Virgílio e Horácio o pro-

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fessor Falcão, um d'estes mestres de ríspido focinho na phrase de Tolentino— , dos quaes tanto abundava a épocha.

Pode dizer-se que madrugaram no nosso biografado as scintillações de uma intelligencia, que, mais tarde, tanto havia de preluzir !

Sendo dos mais novos era o primeiro e mais distincto dos aiumnos!

Não obstava porém isso a que o professor, odiento e fanático absolutista, o maltractasse e lhe dirigisse chufas e motejos, allusivos ao tio, o respeitável e virtuoso Bispo resignatario de Coimbra, cujo liberalismo havia concitado os ódios de todos os retrógrados da épocha!

Teve por isso que abandonar a aula, onde não tinha que aprender e que frequentava, porque as angustio- sas circumstancias da familia lhe não permittiam ir cursar os estudos superiores, para os quaes o estavam impellindo as aptidões, que se evidenciavam n'elle.

II

Cedo lhe começou a vida do trabalho.

Acabada a guerra civil, estabelecida a ordem legal, chamado até á gerência da pasta do reino o Bispo-Conde resignatario, seu tio, obteve um pequeno logar na perfei- tura do Minho, donde passou para a de Coimbra e depois para a secretaria do respectivo governo civil.

Foi assim que pôde seguir os estudos universitários, matriculando-se na Faculdade de Direito, em novembro de 1856 e concluindo a formatura em 1841.

Estudante, que desde logo se revelou muito distincto,

oo

obteve o primeiro premio pecuniário no 4.° e 5.° anno do -seu curso. Nos annos anteriores, por virtude dos aconte- cimentos políticos, não houve classificações pecuniárias ,nem honorificas.

Frequentou o 6.° anno e recebeu o capello com o •grau de doutor em 24 de Julho de 1842.

depois do exercício dos cargos officiaes e das funcções legislativas, a que vamos referir-nos, conquis- tou, em brilhante concurso, o logar de lente substituto extraordinário da faculdade em que se doutorou (1854) ■e foi ainda promovido a lente substituto ordinário (1855).

As seducções da politica e da vida da capital, afasta- ram-n'o de Coimbra e do professorado universitário.

Em 1844 havia sido nomeado secretario geral do go- verno civil de Lisboa, e conservou esse cargo até 1851. N'elle foi como se diz vulgarmente o braço direito do governador civil, Marquez de Fronteira, honrado soldado da liberdade, fidalgo de antiga linhagem, neto daquella encantadora mulher e gloriosa poetisa, que se chamou D. Leonor de Almeida, Condessa de Oeyhansen e de Assumar, Marqueza de Alorna, e que teVe, no mundo da elegância e das lettras, o nome de formosa Alcipe!

De 1845 a 1846 foi governador civil interino, conser- vando o logar de secretario, que depois voltou a exercer.

Demittiu-se deste cargo, quando, triumphante a revo- lução do Duque de Saldanha, em 1851, se inaugurou o governo chamado da regeneração, ao qual, como depu- tado, fez intransigente opposição.

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Em 1856 foi nomeado secretario do ConseFho de Es- tado, que então reunia também as attribuições, que hoje pertencem ao Supremo Tribunal Administrativo. Exerceu esse logar até 1859, em que foi nomeado conseliíeiro do Tribunal de Contas, cargo que desempenhou até ao seu fallecimento.

Era extremamente cuidadoso no desempenho das suas funcções officiaes. Considerava uma deshonestidade o- recebimento dos ordenados sem o correspondente traba- lho. Detestava os parasitas do orçamento, que sempre lhe repugnaram. Professando estes sentimentos, exerceu os seus cargos com o maior cuidado e brio.

IV

Posto fosse assim funcionário muito distincto e que^ como tal, conquistasse nome honroso pela sua inteligên- cia, illustração e integridade, foi comtudo o parlamento o campo onde mais se manifestaram as altas qualidades do seu espirito e o brilho do seu talento.

Entrando pela primeira vez na Camará, em 1848, foi successivamente eleito deputado em onze legislaturas, desde a daquelle anno até á de 1871 a 1874, em que, sendo vice-presidente, foi nomeado par do reino.

Desde que, pela primeira vez, tomou a palavra, em 1848, marcou distinctamente o seu logar no parlamento portuguez.

A sua estreia, precedendo poucos dias a de Luiz Au-

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gusto Rebello da Silva que foi um dos principes da elo- quência parlamentar nos tempos áureos d'ella, foi de maiores effeitos politicos do que a deste, como consta dos jornaes da épocha.

E mais augmentou depois o prestigio da sua palavra e a auctoridade d'ella.

A um dos seus companheiros de parlamento, grande e insuspeita auctoridade para o apreciar, o sr. José Luciano de Castro, ouvi dizer o seguinte:

«Tinha um grande valor parlamentar; falava com grande facilidade e correcção.»

Foi nas legislaturas de 1852 e de 1855 a 1856, como deputado da opposição, que mais se salientou a sua figura de orador.

Em um opúsculo d'essa épocha, que se intitula Apon- tamentos sobre os oradores parlamentares de 1853 por um deputado, apparece o seu perfil.

Posto não traga esse opúsculo o nome do auctor, sa- be-se que o foi o Dr. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, erudito homem de letras, então bibliothecario da Biblio- theca de Évora, e depois secretario geral do governo da índia. Apparece até, mais tarde, esse opúsculo enumerado entre as suas obras (1).

Cunha Rivara era deputado da maioria e Corrêa Cal- deira da mais intransigente opposição.

Apezar de escripto por adversário politico, o perfil tem alguns traços verdadeiros, e por isso o vamos transcrever:

(1) É opúsculo raríssimo e muito difficil de encontrar. Tendo-o lido na longiqua colónia, onde Cunha Rivara muitos annos viveu, podemos obter uma copia manuscripta da parte consagrada a Corrêa Caldeira por obsequioso favor do nosso erudito amigo dos tempos de Coimbra, o sr. António Francisco Barata, antigo conservador da Bi- bliotheca de Évora, fallecido pouco depois de nos ter feito esse favor.

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Diz:

«O sr. Corrêa Caldeira não tem quarenta annos. Tem phisionomia agradável, que todavia obscurece e carrega pelo uso de óculos muito escuros, que lhe encobrem com- pletamente a expressão dos olhos.

«Parece, quando ora, que tem o rosto coberto com uma mascara, posta de propósito para amedrontar o adver- sário.

«Tem sido Varias vezes deputado, mas é agora a pri- meira Vez que se encontra collocado na opposição.

«Fala com desembaraço e argumenta menos mal. Tem Voz soffrivel e é ouvido com attenção. De ordi- nário offende os seus adversários com a aspereza e desabrimento das suas palavras. Interpelador infantiga- vel, persegue os ministros nos seus últimos entrincheira- mentos.

«É longo em seus discursos, d'onde vem que ás vezes cae em frouxidão e suscita uma tal ou qual impaciência na assembleia, mas nunca a ponto de lhe negar attenção.»

Cumpre registar que nunca lhe era negada attenção em uma camará onde se sentavam oradores, como, José Estevão, Passos Manuel, Rebello da Silva, Avilla, Vicente Ferrer, Cunha Souto Maior, Mendes Leal, Carlos Bento, Casal Ribeiro e outros; e estando na bancada do governo Rodrigo da Fonseca Magalhães, Garrett, António Luiz de Seabra e Fontes Pereira de Mello.

Mas Vejamos! Corrêa Caldeira era, n'aquelles tempos, considerado orador aggressivo e Violento !

O que seria justo dizer é que elle era um orador vehe- mente por ser homem de arreigadas e profundas convic- ções. Obedecia apaixonadamente a estas!

Mas as paixões disse Garrett são a poesia da po- litica. São matéria d'ella o amor da pátria, da justiça e

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da liberdade, que com ardor costumam ser amadas! Fácil é que esse ardor aqueça e incendeie os ânimos.

Ser apaixonado não é ser baixo, nem grosseiro na lucta dos partidos !

Não foi, nem podia ser Corrêa Caldeira um declama- dor de facécias, nem um insultador parlamentar.

Não podia sê-lo, porque tinha, no mais alto grau, um sentimento necessário em todas as situações da vida. Nunca o abondonava. Era o respeito por si próprio!

Era este sentimento que lhe dava uma grande nobreza de porte e uma aristocracia de maneiras, que se manifes- tavam em todos os seus actos, em todas as suas relações sociaes.

Bondoso, afável, delicadissimo, não facilitava familiari- dades. A sua mesma primorosa delicadeza, que dulcifi- cava o aprumado do seu trato, distanciava.

Mas é que era um vaidoso? Um fátuo?

Não ! Largamente demonstrou o seu desdém pelas fúteis e estéreis Vaidades humanas.

Nunca quiz ser ministro. Por mais de uma vez rejeitou sê-lo.

Com grandes dotes de parlamento, experiência de ne- gócios e perfeito conhecimento dos serviços públicos, era geralmente indicado para a gerência das pastas da justiça ou do reino.

Convidado pelo duque da Terceira, em 1859, para fazer parte do ministério, a que o honrado general presi- dia, recusou-se ; e, por mais de uma vez, oppôz inven- cível resistência aos convites, que lhe fez, para aquellas pastas, o Conde, depois Duque de Ávila, com quem cons- tantemente manteve estreitas relações politicas e mais ainda pessoaes.

Sempre declinou esses oíferecimentos.

As miragens do poder não o seduziam. Homem de arreigadas convicções, não as sacrificava.

Julgava não poder servi-las, nem servir utilmente o paiz, nas situações em que lhe offereciam aquelles altos cargos.

D'ahi o seu irreducíivel retrahimento.

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Mas voltemos á sua acção parlamentar nas legislaturas de 1852 e 1855.

Dia a dia traVaVa lucta com Rodrigo da Fonseca Ma- galhães, que foi uma das grandes figuras do nosso parla- mento, «para quem (diz Latino Coelho) a tribuna foi a sua «predilecção e a sua gloria, e, dispondo de uma palavra «solemne e persuasiva, foi um grande e exemplarissimo «orador.» (1)

Rodrigo da Fonseca respeitava-o e temia-o. Para lhe desviar os golpes, por vezes, recorreu aos expedientes e habilidades, em que era fecundo o seu engenho e que lhe mereceram o epitheto de Raposa politica.

Uma Vez em que, antes da ordem do dia, sobre graVe assumpto, Corrêa Caldeira havia pedido a palavra, Rodrigo da Fonseca, antecipando-se-lhe, aproveitou a occasião para, sobre um pretexto qualquer, fazer o mais caloroso elogio do Cardeal Saraiva, D. Francisco de S. Luiz.

Tocando-lhe nos seus mais queridos affectos, Corrêa Caldeira commoveu-se, e. sob essa comoção, levantou-se para falar, tendo de principiar por agradecer ao Ministro. O seu ataque foi mais frouxo n'esse dia.

Foi ainda com o mesmo illustre deputado opposicio- nista que se passou o conhecido episodio da quebra dos óculos (2).

(1) Elogio histórico de Rodrigo da Fonseca Magalhães por J. M. Latino Coelho.

(2) Biographia de Rodrigo da Fonseca, na Revisto Contemporâ- nea de Portugal e Brasil, tom. 3.° por J. M. Andrade Ferreira.

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Corrêa Caldeira atacou violentamente os actos de uma auctoridade administrativa, de que o governo não podia, ou não queria separar-se.

Rodrigo da Fonseca defendeu-a, e, para destruir com- pletamente as arguições do seu adversário, prometteu tra- zer á camará documentos, que comprovavam as suas affir- mações.

Na sessão seguinte, Corrêa Caldeira foi mais vehe- mente ainda e convidou o ministro a destruir os factos •com os documentos, a que tinha feito referencia.

O ministro, levantando-se, passou a dar resposta ás accusações do deputado; e, como era seu costume quando a lucta era mais viva, tirou os óculos, que collocou deante <Je si.

Os documentos tinha-os ali e ia lê-los.

Falando com calor e alargando o gesto das occasiões solemnes, acompanhava as suas palavras com alguns murros na carteira.

Um d'elles apanhou os óculos e partiu-os. Quando •chegou a occasião, em que devia tirar os papeis da pasta e lê-los, pegou nos óculos.. . inutilisados!

Lastimou-se do desastre. Mostrou-se contristado. Di- versos deputados lhe offereceram os seus óculos, que Rodrigo, grande actor, experimentava!

Não lhe serviam ! Não via por elles.

Mas, voltando-se para a opposiçào, disse o que conti- nham os documentos e perguntou quem é que ali duvi- dava da sua palavra.

Os seus parciaes applaudiram. Estava levantada a ques- tão pessoal entre um deputado e um membro do governo, que era a verdadeira alma d'elle; e a maioria prompta a •cobrir o ministro.

Corrêa Caldeira mantinha-se no seu logar com a gra- vidade e aprumo, que lhe eram habituaes.

Era incapaz de promover ou tomar parte em scenas do parlamento, em que falam os pés!

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Uma das honras, que mais ambicionou na sua vida, foi* ser eleito deputado pela sua terra natal.

Conseguiu sê-lo duas vezes.

Promulgada a lei de 25 de novembro de 1859, que, pela primeira vez, estabeleceu círculos uninominaes, ficou' o concelho de Ponte de Lima constituindo, por si, um circulo eleitoral. TornaVa-o assim aquella lei independente dos outros concelhos do districto, a que até ali tinha andado eleitoralmente ligado e que supplantavam os votos- dos seus eleitores.

Veiu logo á geral lembrança escolher para representar o circulo eleitoral o filho do concelho, que mais se havia assignalado nas luctas da representação nacional.

Todos os politicos cahiram de accôrdo. Todos tiveram' essa opinião. Nem mesmo d'ella discordaram os partidá- rios, ainda importantes, do velho regimen.

Nunca eleição alguma ali suscitou maior enthusiasmo! O prestigioso candidato não teve concorrente.

Chegado o dia da eleição, de 1551 eleitores, que con- correram ás assembléas primarias, obteve 1558 votos. treze votos discordantes!

Philarmonicas á noite percorreram as ruas! O fogue- torio e vivorio atroaram os ares!

Mas o enthusiasmo não se limitou a isso. Quizeram mais. Um grande banquete, por subscripção, devia coroar e solemnisar a obra da fraternidade eleitoral.

Teve de realisar-se ao ar livre, porque não havia casa que pudesse conter os convivas.

Effectuou-se na matta dos extinctos frades, ainda então- povoada de grandes arvores.

Reinou a alegria. O enthusiasmo electrisava os espí- ritos! Todos se sentiam por elle dominados!

Chegada a altura própria, começaram os brindes. Fo- ram innumeros!

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Brindou-se primeiro, se sabe, peio ilJustre deputado eleito: peio filiio mais distincto da formosa terra! Pelo que mais a honrava e ia eleva-la e brilhantemente repre- senta-la.

Brindou-se pela independência e authonomia eleitoral do concelho.

Brindou-se pela harmonia e união das vontades para os progressos locaes.

Brindou-se por cada um dos chefes, influentes e ma- gnates, que mais tinham concorrido para tão feliz resul- tado eleitoral!

E quando não havia a quem brindar; quando o enthusiasmo, como fogo que nào tem combustível, se ia apagando, um conviva bateu as palmas para chamar a attenção, e, de copo na mão, pediu mais um ultimo e der- radeiro brinde:

Brindou pelo deputado perpetuo pelo circulo de Ponte de Lima! .. .

Una você calorosamente todos o applaudiram, e assim o proclamaram! O enthusiasmo redobrou. Os copos mais retiniram.

Assim terminou a festa.

Corrêa Caldeira podia julgar-se satisfeito e saturado com as honras alcançadas e conferidas pelos seus patrí- cios!

Reunida a camará dos deputados, tomou assento n'ella em janeiro de 1860.

Volvidos porém alguns mezes, em julho d'esse anno, o ministério, que se havia organisado sob a presidência do Duque da Terceira, e que, depois da morte d'este illustre general, passou a ser presidido por Joaquim António de Aguiar, foi substituído por outro, que tinha por chefe o Marquez de Loulé.

Corrêa Caldeira enfileirou logo na opposição.

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Foi dissolvida a camará dos deputados por decreto de 27 de março de 1861.

As novas eleições fizeram-se em 28 de abril desse armo.

Apresentado candidato novamente pelo circulo da sua naturalidade, os eleitores, seus patrícios, ainda se lhe mostraram firmes e fieis!

De 1526 listas, que entraram nas urnas das assmbleas primarias, 1525 continham o seu nome! uma lista dis- cordante (Diário, n.° 125, de 5 de junho)!

Incrivel !

Até parece que houve eleição fingida e actas pin- tadas! Mas não! Parece que ainda se não usava disso! Houve realmente eleição, e as philarmonicas e o foguetorio ainda, desta vêz, perturbaram a tranquilidade dos ares! Banquete é que não houve !

Nenhuma significação porém tinha essa falta de liba- ção pelas taças da amisade!

Devia julgar-se cimentada em solidas bases uma duradoura solidariedade eleitoral entre os eleitores e o eleito!

Erro ! Illusão!

Nunca mais foi eleito! Nunca mais pôde lembrar-se de o sêr!

Os eleitores retrahiram-se. Na eleição seguinte de 1864 ficou fora da camará. Nunca isso lhe havia succedido desde que nella entrou pela primeira vêz!

Como se explica?

Ora . . . como se explica ! . . . Explica-se reflectindo que a popularidade politica é uma dama, sem virtudes, que tanto beija como atraiçoa e repele aquelles a quem uma vêz concedeu os seus favores !

E' sempre aquella volúvel dona, de quem se canta no Ri golét O.- La donna è mobile, Qual pluma ai viento, Muda d'assiento E di pensieri !

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E' que durante a larga legislatura de 1861 a 1864, manteve-se na opposição e elle não era homem que se -dobrasse a pedir favores a adversários.

E assim não pôde fazer abbades, nem satisfazer com •despachos a emprego-mania ! Nem, ao menos, arranjar dinheiro para algumas estradas com que a sciencia e amor de arte das engenharias d'este paiz entortassem e des- ieiassem as entradas da villa ! Nem emfim para alguns d'es- tes melhoramentos, que nada melhoraram, mas que cons- pícuas pessoas da terra dizem serem bellos e utillissimos, ■e desde logo passa a ser acto de estupidez e o que é peor de falta de patriotismo dizer que o não são !

Podiam, para attenuante, levar-lhe em conta que o dinheiro não era então preciso para os rasgos do progresso material da villa, pois que, por essa épocha, —pouco mais ou menos foram derruídas as duas torres, que comple- tavam a harmonia architectonica da monumental e famosa ponte sobre o Lima, que o nome e o brazão á villa.

Bastaram para isso os recursos do município e a ini- ciativa de dois vereadores, pessoas respeitabillissimas e homens ricos, mas castrados do sentimento do bello e do amor das tradições.

Assim estava escripto no livro dos destinos!

Assim o quizeram os fados, que ainda hão-de comple- tar aquela obra vandalica ! admira que ainda não tenham conseguido levá-la a effeito! (1)

(1) Aqui vou fazer uma denuncia e que me perdoe o denunciado pela intenção com que a faço.

O meu illustre amigo, Dr. António Feijó, poeta consagrado, honra da iitteratura nacional e gloria authentica da terra em que nasceu, disse-me um dia, com indignação e tristeza, que, contra os que tal effectuassem, elle havia de escrever um artigo tão violento que se- riam obrigados a chamal-o aos tribunaes e a mettêl-o na cadeia, pois

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Mas foi o que fica dito a razão do desagrado ?

Diga-se em abono da verdade, —não!

Corrêa Caldeira não tinha feitio para a cultura da vinha eleitoral ! Não respondia a todos que lhe escreviam ! Não se prestava a quantos pedidos lhe faziam ! Era um austero !

Ponte sobre o rio Lima

Antes de fazer qualquer pedido, queria" sempre examinar se era justo. É este um dos traços do seu caracter.

Mais :

A sua palavra havia emudecido, e não lh'o levaram a bem os seus eleitores.

Queriam que falasse para, ao menos, se falar na terra, diziam !

Mas elle não era d'aquelles que falasse para falar!

que assim se julgaria quite, em tal caso, da sua divida para com a querida terra natalícia ! Por tal forma quiz exprimir a sua repro- vação pelo apregoado projecto do alargamento da ponte com cachor- ros de pedra e varandas de ferro !

Non in solo pane vioit homo, direi eu !

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Via que o meio politico não lhe permittia a realização das suas ideas, e que o luctar por ellas era deslocado. A leal- dade politica levara-o para as bancadas da opposição, mas sentia que qualquer outro governo não seria melhor de que o ministério Loulé-Avila, e governaria e administraria pela mesma forma que esse.

Assim falar era inútil. Nenhuma consideração humana o levaria a desempenhar o papel de actor ou de realejo parlamentar!

D'ahi a perda da popularidade e a incompatibilisação com o circulo.

V

Occupou muito o seu espirito com a publicação das •obras, algumas inéditas, do Cardeal Saraiva, que levou ^té o decimo volume.

Em 1860 casou com uma distincta e virtuosa senhora, felizmente ainda viva, a Senhora D. Maria José Deslandes Corrêa Caldeira. Desse casamento existem duas filhas e um filho, o sr. Dr. Venâncio Jacintho Deslandes Corrêa Caldeira, secretario geral do districto de Beja-

De uns seus românticos amores da mocidada havia nascido, em Coimbra, a Senhora D. Amélia Janny, recen- temente fallecida, a qual, herdando de seu tio, o malo- grado poeta das Flores da Bíblia, o dom privilegiado da poesia, foi continuadora dos talentos litterarios de sua família e legitima e autentica gloria d'ella.

Homem de inexcedivel lealdade nas suas relações pes- soaes, modelo no lar domestico, a vida publica doeste nllustre limiense foi espelho da sua vida particular.

Falleceu repentinamente no dia 2 de novembro de 1876.

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Pinheiro Chagas, no Correio da Manhã, do dia se- guinte, escreveu um sentido artigo, em que honra a me- moria do homem publico, que diz ter sido «distinctissimo, «leal, honrado, de uma tempera austera e nobre, respei- «tado até pelos adversários pela inquebrantável firmeza «do seu caracter e das suas convicções.»

Nesse artigo encontra-se também o seguinte periodo:

«Seu irmão mais novo, Luiz Corrêa Caldeira, poeta; ^<de um raro talento, morrera de uma meningite, na flor «da vida, e essa morte causou tão viva impressão no- «animo affectuoso de seu irmão, que, ainda ha pouco- «tempo, lembrando-a, lhe vimos os olhos rasos de agua e: ío aspecto profundamente comovido.»

Haviam decorrido dezasete annos!

Foi um cidadão illustre, um politico honesto, um ho- mem de distincto mérito e um homemi de bem,!

NOTA

Por obsequioso e benevolente favor do distinto professor e actual Reitor da Universidade de Coimbra, sr. dr. José Alberto dos Reis, aqui se pode publicar uma copia da certidão do assento de baptismo, que foi juncta ao requerimento de António Corrêa Caldeira, para a sua matricula no primeiro anno da faculdade de di- reito.

CERTIDÃO

João Bento de Medeiros, Parocho da Collegiada Matriz de Santa Maria dos Anjos da Villa de Ponte de Lima, e Arcipreste d'este Julgado, etc.

Certifico que revendo hum dos Livros dos Baptisados d'esta Villa, nelle a pags. 157 achei o assento do theor seguinte: António, filho legitimo de José Marques Caldeira e D. Anna Efigenia Rita Corrêa, da rua do Carrerido d'esta Villa de Ponte de Lima; neto paterno de José Marques Caldeira e de sua mulher D. Joaquina Thereza de Macedo, da Cidade de Coimbra; materno de José Ro- drigues Lima, e sua mulher D. Marianna Thereza de Jesus, desta Villa. Nasceu aos 19 dias do mez de Outubro de 1815; e aos 26 dias do dito mez foi solemnemente Baptisado na Pia Baptismal da Colle- giada Matriz d'esta Villa por mim, e lhe administrei os Santos Óleos: sendo padrinhos António Lobo Teixeira de Barros e Barbosa, te- nente-Coronel do Batalhão de Caçadores e D. Henriqueta Malheiro, desta Villa ambos. Em do que fiz este Assento. O Coadjutor e Beneficiado Manuel José d'Araujo. E não contêm mais o dito as- sento, que aqui copiei fielmente, a cujo Livro me reporto. Passo na verdade, por me ser pedida. Ponte de Lima, 2 de Novembro de 1836. (a) O Parocho Arcipreste, João Bento de Medeiros.

RECONHECIMENTO

Reconheço a letra e assignatura supra por verdadeira de que dou fé. Ponte de Lima, 2 de Novembro de 1836. Em testemunho de Verdade (logar do Signal Publico). O Tabellião, Francisco José Moutinho.

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Diz o assento de baptismo que os pães moravam na Rua do Carre- rido. Tal nome era o da torta rua, que hoje tem o nome de Rua do Cardeal Saraiva, porque n'ella moraram, durante muitos annos, na casa bem conhecida e apontada, as irmãs do ilUistre sábio.

Creio que por isso se pode concluir, com a maior probabilidade, <]ue na mesma casa nasceu António Corrêa Caldeira, isto é, na casa de suas tias, D. Joanna e D. Marcellina.

Na mesma casa, por vezes, habitou D. Francisco de S. Luiz, durante o tempo, (que por certo seria curto), em que se afastava dos conventos da sua ordem, onde o prendiam não os votos monás- ticos, mas a predilecção dos estudos, a que constantemente trazia preso o seu espirito. Mais tempo por ali se demoraria seu irmão. Frei Luiz Saraiva, ou Frei Luiz dos Seraphins, que a pessoa querida da minha familia ouvi dizer que, sendo também muito inteligente, era «m espirito mais alegre e mais mundano do que o irmão.

Não resisto a dizer aqui que, quando António Caldeira se bapti- zou a frontaria do famoso templo, cuja gravura publicámos, era bem mais bella e harmónica!

Mas, passados bastantes annos, a torre ameaçou ruína. Teve de reedificar-se, e o amor das commodidades ou a preoccupação d'ellas, que na terra supplanta sempre o culto do bom gosto, resolveu que •a torre se elevasse mais para . . . melhor se ouvirem as horas!

Assim ficou o que se vê! Escapou esta deturpação a Ramalho Ortigão, que nas Farpas escreveu o seguinte:

«Em Ponte do Lima a ponte que deu o nome á villa é um dos mais antigos monumentos do seu género em Portugal. Assenta em vinte e quatro arcos, dos quaes dezeseis em ogiva.

«Foi reconstruída primeiramente por D. Pedro \, talvez sobre a ponte romana da épocha, da via militar de Braga a Astorga, e depois por D. Manuel. Era entestada por duas bellas torres, uma do lado -de Arcozello, outra do lado da villa, a que dava entrada por uma

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porta ogival. As guardas da ponte assim como as duas torres eram guarnecidas d'ameias.

«Com essa forma se conservou este curioso monumento até 1S34. Depois, com o regimen liberal, Veio uma vereação que mandou arra- sar as duas torres; e outra vereação, não querendo ficar atraz da primeira, mandou serrar as ameias que coroavam as guardas! (1) O •cinto de muralhas, com as suas cinco portas, as suas torres e as suas barbacans, com que D. Pedro I fortificou a villa reedificada no século XIV, não cahiu também inteiramente de per si, foram ainda as vereações municipaes que successivamente se encarregaram de o fazer desapparecer.

«O poder central em sua alta e suprema indiferença pelos mais estúpidos attentados de que são objecto os monumentos mais vene- ráveis da arte e da historia nacional, approvou uma por uma todas as marradas de preto capoeira com que á municipalidade de Ponte de Lima approuve derribar e destruir os mais bellos vestígios archite- ctonicos da gloriosa historia da antiga villa e o próprio sentido herál- dico das suas armas, nas quaes em escudo de prata figura uma ponte •entre duas torres;>.

Occupa-se depois de outras mutilações.

(1) Foi o inverso: primeiro as ameias e depois as torres.

João de Deus

Historia de duas satyras suas (1)

Atravessando a grande nave sombria do famoso templo manuelino, por vezes tenho ido, em piedosa romagem, até junto da grade da ca- pella dos Jeronymos, onde está collocado o ataúde, que contém os restos mortaes de João de Deus.

Parece-me sempre que aquelle féretro e o de Garrett, cober- tos de panos negros com algum e flores sêccas, estão ali pro- visoriamente, desde a Véspera, á espera como os de quaesquer outros mortaes do canto-chão de uns pa- dres e dos braços de uns lagoias, que vão transportá-los para sepulturasdefinitivas!

Sepulturas, que eu quizera que fossem em estrophes de alvejante jaspe, cober- tas pela cúpula azul dos céus, no meio de muitas flores.

João de Deur, 1860

(1) Excerptos de um livro, que não chegou a ser publicado.

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que atrahissem o cântico das aves, musicas da natureza, sons que seriam menos harmoniosos, menos sublimes do que os seus versos!

Tendo de falar de João de Deus, faço invocação á sua sombra venerada e querida, para que escreva o que seja digno d'elle!

Em uma das vezes, que me encontrei em face do seu ataúde, me acudiram á memoria os versos sublimes de Roque Bareia, consagrados a Camões, que bem posso applicar ao lyrico genial, que é também o auctor da Carti- lha Maternal e dizendo com o poeta hespanhol:

Tremulo llego a ti, vate sagrado ! Ayúdame a decir lo que tu fias sido, Tu que á la tierra lusitana has dado Lo que nunca le ha dado hombre nacido !

Párate, sombra : ci mi razoa oscura Suspender deja un formidable velo, Y déja me alentar en esta altura Donde parece que nos mira el cielo.

Sepulcro colosal, mundo ignorado, Dime como decir lo que tu has sido Tii que á la tierra lusitana has dado Lo que nunca le ha dado hombre nacido.

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A Deputação

A deputação, satyra infelizmente perdida, e de que apenas andam publicados alguns poucos versos, teve por origem a denegação do indulto ao estudante José Car- doso Vieira de Castro, quando, pela segunda vez, foi ris- cado da Universidade. r

Elle havia sido expulso, por dois annos, em 1856, por causa da falada investida da Saía dos Capellos. Voltou á Universidade no anno lectivo de 1859-1860, matriculan- do-se no 5.° anno juridico.

Voltava com o prestigio, que lhe daVa a sua nobre independência, o seu ostracismo académico e também o seu indisputável talento e grandes dotes de orador.

Basilio Alberto de Souza Pinto que, como professor, tinha adquirido créditos de abalisado criminalista, havia, mezes antes, sido nomeado reitor.

N'essa qualidade, encarnava todas as velharias dos rigorismos universitários com os estudantes.

Por um edital, afixado logo no começo d'aquelle anno lectivo, determinou o rigor dos trajes, isto é, a batina completamente abotoada, o sapato e meia, o cabeção e volta.

Nada de gravata^ de cores; nada de botas ou calças cabidas sobre ellas, o que tudo, durante o doce regimen do vice-reitor, José Ernesto de Carvalho e Rego, havia sido tolerado e permittido.

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Prohibiçào completa! Mudança rápida de costumes!

Mas Vieira de Castro, com a ousadia que lhe era pró- pria, apresentou-se um dia na Universidade, com a calça cabida sobre botas de elásticos com gáspeas de Verniz! . . .

Escândalo de lesa disciplina!

O guarda-mór, Basilio José Ferreira, em termos mais ou menos inconvenientes, admoestou Vieira de Castro. Este replicou-lhe logo com a palavra que é attribuida a Cambrone, e cuja verdade histórica muito tem sido dis- cutida.

O guarda-mór intimou-o a ir á presença do Reitor.

Vieira de Castro recusou-se.

D'ahi um conflicto, cujas proporções pode calcular quem conheceu o génio violentíssimo do ardente man- cebo, que depois veio a ser um grande infeliz!

Formado processo académico, foi, como reincidente, expulso pela segunda Vez, e riscado perpetuamente! Pena de morte académica, dizíamos nós!. . .

Tal condemnação, nas circumstancias em que foi pro- ferida, e pelos precedentes do estudante expulso, desper- tou as mais acerbas criticas dentro e fora da Academia.

O estudante do 5.° anno jurídico, Bernardo de Albu- querque e Amaral (o respeitabilissimo lente jubilado, ainda hoje felizmente vivo) escreveu, no jornal académico Estreia Litteraria de que era redactor, um vehemente artigo, criticando o accordão do Conselho dos Decanos, demonstrando ao antigo professor de direito penal, presi- sidente d'elles, os erros jurídicos da decisão; e concluindo que, não se verificando as condições da reincidência, a pena applicada era manifestamente illegal.

Não foram precisas reuniões.

Amigos de Vieira de Castro formularam logo um elo- quente appello ao poder moderador, pedindo o indulto e readmissão do talentoso estudante, cuja esperançosa car- reira assim era, com tanta dureza, cortada.

Toda a Academia foi espontaneamente assignar a peti- ção.

Também a assignaram os estudantinhos do Lyceu; e

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foi esse o único acto, durante toda a nossa vida acadé- mica, em que os caloiros do Paieo, como então se dizia, foram chamados a compartilhar em um acto dos estudan- tes da Universidade.

Mas a representação ao Rei, que era D. Pedro V, não foi assignada em Coimbra! Resolveram perfilhá-la e assigná-la muitos homens de letras e jornalistas de Lis- boa. Tudo quanto havia de mais notável, n'este paiz, a assignou!

N'ella pozeram os seus nomes illustres: Alexandre Herculano, António Feliciano de Castilho, Luiz Augusto Rebello da Silva, José da Silva Mendes Leal, Raymundo .António Bulhão Pato, António da Silva Tullio, António Rodrigues Sampaio, LeVy Maria Jordão e muitos outros.

Mas o indulto foi negado! Tantas esperanças foram malogradas!

A representação da Academia e dos homens de letras e jornalistas foi indeferida!

O desgosto foi grande na Academia- Os resentimentos profundos e duradoiros!

Manifestaram-se ainda no anno seguinte, quando D. Pe- dro Ve seus irmãos, os infantes D. Luiz e D. João, foram a Coimbra de passagem para o Porto. Foi a derradeira vez, que ali foi.

Ao approximar-se a visita do Rei, alguns rapazes viram ]i'ella a seductora perspectiva d'alguns feriados.

Hão-de ser sempre assim! . . .

Mas para obter os feriados era preciso ir cumprimen- tar o Rei. Prompto! É convocada uma assembléa geral, no saudoso salão do Theatro Académico, para nomear a commissão dos cumprimentos.

Reunida a assembléa geral, logo Vários oradores pedi- ram a palavra.

Nenhum contestou que devesse ir cumprimentar-se o Rei. Nenhum soltou para com elle qualquer phrase gros- seira ou offensiva. Somente os oradores falavam em todos os assumptos, menos n'aquelle para que havia sido convo- cada a reunião.

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Um falava no Velho e no Novo Testamento; outro» fazia o elogio das tricanas de Coimbra; outro nos grandes homens da Grécia e Roma; outro nos preços dos géneros do mercado, acompanhados sempre os oradores por um coro de gargalhadas.

Se algum tentava falar no assumpto para que fora convocada a assembléa, era logo coberto de apoiadissi- mos, cortado de interrupções, impedido de falar.

Um dos oradores, que mais se distinguiu, interrom- pendo e promovendo a troça, foi Fausto de Queiroz Guedes, que depois veio a ser o benemérito e generosís- simo Visconde de Valmôr.

Reuniu-se segunda assembléa no dia seguinte. Repeti- ram-se exactamente as mesmas scenas da véspera. Grande bulha, grande risota !

Passaram-se alguns dias. A chegada do Rei aproxima- va-se e conVocou-se então terceira assembléa, não para o salão, mas para o theatro da Academia.

Apresentou-se no palco e foi indicado para presidi-la o estudante do 6." anno, Bernardo de Albuquerque e Ama- ral, o mesmo que tão distincta attitude tinha tomado quando foi riscado Vieira de Castro.

Esta circumstancia, a geral consideração e sympathia de que gosava, pelo seu talento e seriedade de caracter, e também algumas nobres e felizes palavras, que proferiu, ao assumir a presidência, aplacaram os ânimos e impuze- ram socego.

A assembléa correu plácida.

Decidiu-se nomear a commissão, mas não para fazer cumprimentos. DeViamos usar do direito de petição, que era uma das garantias que nos estava consignada no que então se chamava o sagrado paládio das nossas liberdades.

Não era indigno ! Era o uso dum direito ! Por isso a commissão devia pedir :

1.° A abolição da capa e batina, que era traje jesuí- tico.

2."— A abolição do foro académico e concessão das garantias do foro commum.

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Os rapazes tiveram sempre a mania de querer ser jul- gados pelas infracções de policia académica, que consti- tuem contravenções, pela mesma forma, e no mesmo tri- bunal, em que se julgam os vadios, os gatunos e os ladrões de profissão !

Mas o caso é que aquellas deliberações foram tomadas.

João de Deus, que assistia á reunião em um camarote de 1.''* ordem (ainda deve haver quem se lembre), por uma das distracções, que lhe eram tão habituaes, pediu a pala- vra, quando tudo estava votado !

Ovação a João de Deus !

Viva João de Deus ! Viva o nosso João !

Acciamação geral ao grande poeta !

Mas vamo-nos embora, clamavam também ! Tudo está decidido ! a commissão e venham os feriados, que é o que toda aquella bulha queria dizer !

João de Deus, com a notável veia satyrica que pos- suía e espontaneidade genial, disse, nessa mesma noite, em verso, o que queria dizer como orador. Escreveu a sat>Ya A Deputação, jóia litteraria infelizmente perdida.

Delia se conservam apenas alguns versos publicados pelo dr. Rodrigo Velloso, reproduzidos depois na penúl- tima edição do Campo de Flores, os quaes quem escreve estas linhas conservou de memoria.

Começava assim :

Ouvi, infância epidemica, As tristes vozes do bardo, Que resolve em papel pardo Gritar contra a pepineira !

Teve logar a terceira

Das assembléas geraes,

E ouça o Mondego os meus ais,

Porque, em verdade, oh vergonha

Pois em quanto na Gasconha Se estão nivelando os thronos. Quer esta sucia de monos Preparar real bexiga !

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E, em verdade, que o diga O Albuquerque, que é fino, (1) P'ra pedir ao deus-menino A reforma da cadeia !

Mas, oh mancebos ! que ideia Não farão de nós fora, Ao saber que isso agora Não é ao rei que pertence.

Para o que bastará Da Carta do pae-avô. Artigo 13 que diz : «Julgar pertence ao juiz «E legislar á nação

CondemnaVa depois que se fizessem pedidos ao Rei. quando elle nos tinlia indeferido um pedido santo e justo ! Dizia :

«E não Íamos nós sós !

< Pois em nossa companhia

< Ia quanto era poesia

«E quanto era prosa também !

«Ia o pae d'aquelia pequena «Que metteu frade o Eurico (2) «E o que na Ilha do Pico (3) «Ensinava agricultura !

«Ia, em summa, quanta figura «Quiz entrar nessa comedia ! «Quando nós, na face nédia «D'este pachá de Janina, «Quizemos Ver se a botina «Era lesa-magestade !

(1) Referencia a Bernardo de Albuquerque, presidente da 3.' assembléa geral.

(2) Refere-se a Alexandre Herculano, que creou a Hermengarda do romance Eurico.

(3) Refere-se a António Feliciano de Castilho, que escreveu nos Açores A Felicidade pela Agricultura.

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«E ninguém nos disse : «Volte o borrego ao rebanho, «E esse zagal d'arreganho, «Que ande, se quer, de sandálias.

<íO cothurno é das Italias ! «E com Veste roçagante, <'É além de mais galarite, «Mais decente que o chinello !

'Tão decente que o marmelo "Do Camões dizia : <'É assumpto, musa fria. «De cothurno e não de sócco.

«Mostrando n'isto em quão pouco «Tinha o clássico chinello «Destes pegas de capêllo, Cabeças de tapadoura.

Conheci esta satyra .4 Deputação —pov m"a haver mostrado Anthero de Quental. Copiei-a e restitui-a.

Tendo divulgado muitas das poesias de João de Deus, algumas inéditas, conservei essa comigo, durante largos annos, por uma espécie de avareza litteraria.

Tal era o apreço em que a tinha ! O arrependimento, que disso tenho tido, tem-me sido severo castigo.

Desappareceu-me em alguma das mudanças de terra, a que fui obrigado pelas exigências da vida official, ou no quasi naufrágio, que soffreram os meus papeis e livros. Transportados em um navio de vela, tal foi o temporal que este soffreu que chegou a ser abandonado pela tripu- lação, e foi a própria tempestade que o metteu dentro do porto ! Mas toda a carga ficou avariada !

Também me desappareceu a Lata, tal como primitiva- mente havia sido escripta. Foi também Anthero que m'a

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emprestou; e continha mais estrophes de que as que an- dam publicadas.

Julguei que podia readquirir a Deputação, visto que apenas tinha possuido uma copia. Foi-me impossível.

Recorrendo ao meu amigo muito querido, João de Sousa Vilhena —o integro e inquebrantável magistrado que falleceu juiz de uma vara eivei de Lisboa , companheiro dedicadíssimo e admirador apaixonado de João de Deus; recorrendo a José Sampaio e a Frederico Philemon, com- panheiros de Anthero e que, como eu, haviam tido a De- putação em suas mãos, não se lembravam !

Desesperando de a encontrar, dei a outro dedicado e bondosíssimo companheiro de mocidade, Rodrigo Velloso, cujo amor pelas boas lettras nunca se apagou até os seus últimos momentos, os Versos que sabia de cór.

Publicou-os elle na sua interessante Bibliotkeca da Aurora do Cavado; e d'ahi passaram para a penúltima edição do Campo de Flores, mas sem a historia que é indispensável para bem comprehender a engraçadissima composição.

Cabe-me fazê-la agora a mim, o ultimo e mais obscuro dos amigos e admiradores de João de Deus.

II

Os Pires de Marmelada

Fui copista e Vulgarisador dos Pires de Marmelada.

Ainda a famosa e formosa satyra não tinha acabado

de nascer, ainda não estava toda escripta, e eu conhe-

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cia a parte dada á luz e a copiava e decorava ! Com mais facilidade acreditem do que todas as cousas de álge- bra e geometria, com que andava atrapalhado para fazer o meu ultimo exame de caloiro e poder entrar na Uni- versidade.

Corre agora na edição do Campo de Flores, coorde- nada pelo Sr. Theophilo Braga, com variantes, que des- toam dos primitivos Versos, taes como ainda os conservo na minha memoria.

Parecem-me menos felizes essas variantes, como tan- tas outras dos versos do divino poeta, atrevo-me a dizer.

João de Deus era um pródigo das suas preciosíssimas jóias poéticas ! Anthero não era menos pródigo !

Um e outro, muitas vezes, logo em seguida á sua fei- tura, ou passado pouco tempo, rasgavam ou queimavam formosas producções do seu engenho, porque não satis- faziam ao seu ideal de belleza.

Outras vezes as abandonavam ou perdiam! Foram sal- vas muitas, porque quando elles as rasgavam, estavam copiadas.

João de Deus nem mesmo era muitas vezes quem escrevia seus versos; escreviam-nos os amigos a quem os recitava no calor e borbulhar de inspiração.

Foi assim, por esta forma, que foram escriptos por Gui- marães Fonseca um mimoso talento litterario, então revelado , em julho de 1860, os Pifes de Marmelada, em uma casa da Rua dos Militares, quasi em frente dos Lázaros, que, creio, é a terceira, a contar da que faz esquina para a Rua do Guedes, com entrada por esta rua, onde eu morava. Estreitas como são as intermediarias, podia falar-se de janella para janella !

Tinha aquella então o n." 42. E digo que tinha este numero, porque é com elle que vem designada, na pauta

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ou relação dos estudantes d'esse anno, a morada de Antó- nio Joaquim da Fonseca Pinto, meu condiscipulo no Lyceu, rapaz muito ligado a todos os amigos de João de Deus^ especialmente a Guimarães Fonseca, que n'essa epocha do anno, também ali morava.

João de Deus não tinha residido n'essa casa, mas para ella foi viver nas ultimas semanas d'esse anno lectivo.

Com amigos e admiradores, que disputavam a sua companhia, tinha Varias casas. Onde mais residiu n'esse anno, foi na Rua da Trindade, n.° 30, com João de Sousa Vilhena.

Também morou na Rua de S. Jeronymo, n.° 6, com outros rapazes, sendo um d'estes o estudante de theolo- gia, cujo R, que levou no acto do 1.° anno, motivou a satyra.

Tendo partido para férias todos os seus companheiros da Rua de S. Jeronymo, foi João de Deus para a casa da Rua dos Militares, onde chegou sob a impressão da injus- tiça feita ao seu amigo.

A satyra, como se sabe, teve por Victima o lente de theologia, antigo frade crusio, D. Victorino da Conceição Rebello, a quem os estudantes puzeram a alcunha de Besta Sagrada e também a do Marmelada!

Como ao Conde de Santa Maria eram-lhe attribuidas bernardices e necedades imaginarias !

Foi o caso que Jayme Cardoso de Gouveia Corte- Real, que era um dos rapazes que morava na Rua de S. Jeronymo, n.® 6 leVou um R (foi um R, e não repro- vação) no primeiro anno de theologia.

Attribuiram essa macula académica á ousadia de ir fa- zer acto, não de cara rapada cara ecclesiastica, então, mas com bigode, o que era contrario ás praxes dos que se dedicavam ás sagradas letras e se destinavam á Vida clerical.

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O bom do rapaz não queria segui-la. Frequentava theo- logia, porque faltando-lhe um exame, quiz gozar as hon- ras de estudante da Universidade.

Devia por isso estar bastante falho nas letras sagradas.

João de Deus, magoado com o que julgou uma injus- tiça e uma affronta ao seu companheiro e amigo (hoje não dão tanta importância a um simples R) compôz a satyra.

Compô-la, ora passeando, ora deitado na cama!

Guimarães Fonseca escrevia.

Era, como disse, em julho ! Julho tropical de Coim- bra! João de Deus nunca sahia de dia por causa do calor e parece que também pela pouca riqueza do seu guarda-roupa!

A sua batina que as leis académicas lhe não per- mittiam usar estava no estado em que, muitos mezes antes, apparece com a manga rasgada, no retrato que publicamos, tirado por José Alfredo da Camará Leme (que foi conservador em Vianna do Castello) em um pequeno quintal da primeira casa, que fica á esquerda, descendo a ladeira do Arco do Castello.

sahia á noite, ordinariamente em passeio até ao Penedo da Saudade, vestindo uma forte japona, uma ja- queta de pelles. . . em julho !

Guimarães Fonseca, por essa occasiào, nem de dia, nem de noite, punha os pés na rua! Vivia sob a ameaça do chicote de um outro estudante mais tarde muito res-^ peitavel e muito calvo desembargador, de quem tinha flagellado, em um folhetim do Purgatório, jornal por- tuense, umas infelizes primícias litterarias, as quaes o outro dizia e era verdade que se animou a publicar, instigado pelos louvores e auctoridade do Fonsequinha! Era assim que lhe chamávamos.

Timido e nervoso, se arriscava a ir até á minha casa, onde tinha amigos, depois de se annunciar da janella e de explorados os arredores, obtidas que fosse a segurança de estar longe o perigo do conflicto (1).

(1) Veja-se a nota no fim.

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Então sim! Elle ahi vinha, sorridente e triumphante, com os versos de João de Deus, como que ainda quentes do bafo da inspiração !

Por esta forma conheci e copiei a deh'ciosa satyra, quando ainda apenas estava composta a primeira parte até aos versos que dizem:

o propheta Abacuc! E Verás na passagem, D'este grande personagem, Se isto assim foi! Continuo:

Agora, na citada edição do Campo de Flores, a pala- vra passagem está substituida por linguagem; e a satyra não tinha a divisão de 1.° e 2.^ Pires, rimando a ultima palavra continuo com o verso seguinte:

Eu dava quanto possuo Por ter a fronte rasgada;

Veio logo depois toda a satyra. Toda vulgarizei por algumas copias e principalmente pela recitação, que a cada passo me era imposta.

G5

João de Deus e a Academia de seu tempo

Desde os meus primeiros tempos de Coimbra até que terminei o meu curso juridico, versos do divino poeta, que ■cahissem debaixo dos meus ollios, inéditos ou publicados, copiava-os ou fixava-os na memoria.

João de Deus e os seus Versos foram uma das maiores paixões da miniia mocidade.

Foi no Echo do Lima, logo depois da minha forma- tura, que, em 1866, abri o meu guarda-joias, começando a publicar estas! (1).

Além das especialmente indicadas, o Sr. Theophilo Braga, no Escorço Biographico de João de Deus, con- fere ao modesto jornal limiense a honra de n'elle haverem sido publicadas, pela primeira vez: A Pomba (que são, talvez, os primeiros versos do poeta), A. L. C, A visi- nha do andar, A. . ., Desanimo, De lacto e Sonho.

Publiquei o soneto, ainda inédito, que se encontra a paginas 163 da edição, referida, do Campo de Flores, com o titulo Num romance, e cujo primitivo titulo, se- gundo o meu velho caderno, era:

MARGARIDA (La dame aiix camélias)

(1) Veja-se a nota.

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Tinha antes, no n.^ 7 do saudoso jornal, publicado^ acompanhado de um folhetim, consagrado ãjoão de Deus^ a formosíssima poesia, ainda então inédita, chamada La-^ grima Celeste, a qual aqui vou reproduzir, porque se encontra no Campo de Flores com variantes em muitos Versos, que vão notados com o signal *, e com a omissão, de uma quadra, que vae em itálico:

Lagrima celeste, Pérola do mar, O que me fizeste Para me encantar ?

Quando o néctar chora Que se lhe introduz Ao romper da aurora, E ao nascer da luz I

Ah I se tu não fosses. Lagrima do céu ! Lagrimas tão doces Não chorara eu.

Por entre a folhagem Onde mal se vê, Como eu vejo a imagem- Da que eu adorei!

Se eu nunca te visse, Bonina do vai, Talvez não sentisse Nunca dôr egual.

Que esta Voz te enleve Que este adeus sôe Que o senhor te leve, Que Deus te abençoe-I

* Pomba extraviada, (') Que é dos filhos teus! Luz da madrugada, Luz dos olhos meus !

Que o Senhor te diga Se te adoro ou não. Minha doce amiga Do meu coração 1

Meu suspiro eterno, Meu eterno amor, D'um olhar mais terno Que o abrir da flor.

Se de ti me esqueço Se me esqueci, Se mais céu lhe peço Que o de ver-te a ti.

Cl) Pomba debandada está no Campo das Flores .' Náo posso> aplaudir esta variante !

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A ti que amo tanto E a campa o cypreste,

Como a flor a luz, E a rola o seu par.

Como a ave o canto. Lagrima celeste I

Jesus Christo a cruz 1 Pérola do mar !

Publicou depois o Echo do Lima muitas outras poe- sias do divino lyrico conhecidas dos leitores dos jor- naes litterarios de Coimbra.

O sr. Theophilo Braga, no citado Escorço Biogra- phico, que precede o notável livro, que se intitula— O Festival de João de Deus (pag. xvi, xxi, xxiii) por três vezes honra o jornal limiense e o ^eu obscuro redac- tor, mencionando o nome deste entre os dos maiores admiradores de João de Deus, e um dos seus coleccio- nadores e vulgarisadores !

Éramos muitos.

E' que João de Deus é e será sempre uma das maiores glorias da Academia conimbricense !

Ligado intimamente a ella. continuou sempre a perten- cer-lhe! Continuou a ser estudante quando não era estudante!

Formado no anno lectivo de 1858 a 1859, em 1861 é que desappareceu de Coimbra!

Confinou-se então na sua terra natalícia, ou nas pro- ximidades, lá para o sul.

Mas a sua alma continuou a viver na academia de Coimbra !

A sua lenda de poeta e de artista é que existia !

O facho luminoso do seu génio é que mais ardia e mais deslumbrava!

O seu novo lyrismo falava ao coração da mocidade!

Era neste que ficaram como que depositados os seus versos tão novos e tão sublimes!

Era ella, -a mocidade, que bem os entendia! Era essa mocidade que tinha de espaihá-los !

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Como Homero, João de Deus era um divino! E não era no génio que o lyrico português tinha de asseme- Ihar-se ao grande poeta grego.

itáefFiUoj^

Como os rapsodes ou homerides; como esses canto- res ambulantes, que foram os que tornaram conhecidos os versos do divino épico, levando-os a todas as ilhas e cida- des da Grécia, os contemporâneos de João de Deus, em

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Coimbra, foram também, na phrase de um escriptor illus- tre, as edições vivas que espalharam o seu novo lyrismo por todas as terras do paiz !

Essa luz, tão suave e tão intensa de poesia, irradia do centro !

Surge em Coimbra nos Prelúdios Litterarios, na £5- treia Litteraria, no Académico, no Atheneu e no Phos- foro.

Depois, de norte a sul, no Século 19 (de Penafiel), no Echo do Lima, no Bejense, na Folha do Sul.

E' por esses jornaes, publicados em províncias distan- tes, que o poeta recebe a consagração, que lhe era de- vida! Que adquire novos e apaixonados admiradores! E que os seus versos se tornam conhecidos.

E' pela reproducçào da publicidade da província que as suas principaes composições poéticas appareceram depois na capital do paiz !

Os laços que prenderam João de Deus a Coimbra e á sua Academia são imperecíveis!

Hão-de sempre existir !

E' o coração da mocidade, que lhe ha-de render eterno culto !

São os doutores e os capêllos das suas satyras !

São pessoas que lá' viveram e não existem, e cou- sas que sempre hão-de existir!

E' o Mondego, o Penedo da Saudade, a Fonte dos Amores e o Penedo da Meditação!

É a janella do Occidente, que tem tão melancholica referencia na sentidíssima elegia a Rachel Nazareth ! Ja- nella que fica a uma esquina da Rua da Sophia e se debruça sobre a travessa, que d'ella parte.

É o Convento de Santa The reza, ao qual anda ligada a lenda de uns amores, não sei se verdadeiros se phantasticos,

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a que foram attribuidos os formosíssimos Versos da Noite

de Amores:

Mimosa noite de ritnôres ! Mimoso leito de flores ! Mimosos, languidos ais!

A poetisa da Carta Anonyma julgou (e talvez tivesse motivo para julgar. . .) que os amores, a que os versos se referem, eram verdadeiros e que foi profanado o segredo d'elles! O poeta, em versos sublimes, veio affirmar que eram phantasticos !

Sempre ouvi dizer que a poetisa da Carta Anonyma era uma talentosa mulher, de uma família fidalga da Beira, D. Marianna Povoas, dotada de nobre coração e nobre caracter, segundo me disse, muitas vezes, um meu sau- doso amigo, que foi ornamento distinctissimo da magistra- tura do seu tempo, o qual a conheceu e com ella tratou !

Deve a litteratura a essa iilustre dama os Versos subli- mes da resposta de João de Deus, que se encontra a fl. 10 do Campo de Flores, sob o titulo:

Resposta á minha bella incógnita... censora

Primitivamente tinha este :

Resposta á minJia bella incógnita inimiga . . . Ech. e Narc.

Sim; deve-se á incógnita poetisa da Carta Anonyma o ter inspirado a mais linda quadra que os meus olhos le- ram na lingua portugueza :

Quando a mão de um innocente Pede a estrella que o seduz, (1) Ninguém ha tão inclemente, Que no ceu lhe apague a luz!

(1) No Campo de Flores, foi substituída no segundo verso a pala- vra Pede pela palavra Quer. Prefiro aquella!

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podia ser composta esta quadra no Penedo da Sau- 'dade olhando o poeta para o oiro e azul do firmamento !

É lá, é em Coimbra, que a João de Deus devia ser erigido o seu monumento !

Que mais?. . . Não sei dizer mais. . . Que me perdoe a alma gentil do divino vate e a sua immortal memoria este pobre tributo de uma admiração que nem o largo tracto prosaico dos negócios, nem o gelo dos annos poderam nunca arrefecer e extinguir!

NOTA 1." Francisco Guimarães Fonseca

A memoria deste pobre companheiro da mocidade, tão distincto- e tão infeliz, reclama algumas linhas !

Era natural de Guimarães. No anno lectivo de 1859 a 1860 havia frequentado o primeiro anno philosofico, mas na occasião em que ser- viu de secretario a João de Deus, na feitura dos Pires, preparava-se para fazer um exame, que lhe faltava para seguir o curso jurídico, em que, no anno seguinte e nos outros, até o fim do 4.° anno, fomos condiscípulos.

O estudante, que queria tirar atroz vingança da sua mordaz caus- ticidade litteraria era um nosso comprovinciano minhoto, de nome Acácio de Carvalho Fontes, que morreu juiz da Relação do Porto.

O folhetim do Purgatório, que era o corpo de delicio da malfei- toria do pobre Guimarães Fonseca, intitulava-se Acacius Robur.

Baixo, franzino, peito curvo, farta cabeleira annelada não escura, emquadrando uma larga testa e um alvo rosto, em que brilhavam olhos de um azul claro, com lábios finos, em que bailava o perenne sorriso da ironia, Guimarães Fonseca era, em todo o seu phisico, attraente, distincto e muito sympathico.

Interessantíssimo conversador, quando encolhia os hombros e inclinava a cabeça para um lado, como era gesto seu habitual, a oerve e a graça esfusiavam.

Tinha um mimoso talento litterario comprovado nos Prelúdios Litterarios, no Académico, no Phosforo, no Tira-Teimas, no Atti- la, e outros jornaes litterarios e políticos de Coimbra e de fora de Coimbra.

Uma grande espontaniedade no verso e a sua prosa era um encanto !

Bastará lêr um largo escripto, em prosa e verso, que denominou A Virtude de dous Anjos, e se encontra desde o n.° 3 até o n.° 14 d'aquelle ultimo jornal litterario.

Sendo muito inteligente, nunca foi capaz de disciplinar a sua vontade para o estudo de questões positivas, alheias á litteratura.

Não tendo podido conseguir approvação no 4.° anno, foi para o Brazil, onde se dedicou ao jornalismo. Não foi feliz. Regressando,

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obteve um logar de amanuense em una secretaria do Estado, e, durante um certo período, appareceu, nos principaes jornaes de Lis- boa, a sua brilhante colaboração litteraria.

Uma vida desordenada de bohemio apa'^ou-llie o espirito e des- pedaçou-lhe o corpo! Luctou com a doença e com a pobresa; e teria morrido ao abandono e na mais extrema penúria, se lhe não valesse a bondosa alma de um outro condiscípulo nosso, Luiz Jardim, Conde de Valenças.

Honra seja á sua memoria !

Parece que o destino caprichou em tornar negro o futuro de um rapaz que, pelo talento, se nos antolhava áureo e brilhante!

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NOTA 2.:'

O "Echo do Lima,, e António de Magalhães Barros

E pois que falei no saudoso jornal, onde foram divulgados muitos versos de Joào de Deus, vou consagrar-lhe algumas palavras.

Era bisemanal, tendo sahido o primeiro numero em 12 de agosto de 1866.

O Echo do Lima foi destinado a ser órgão dos interesses locaes e de um grupo de políticos do concelho, que eram adversários da politica de Fontes Pereira de Mello, então no poder.

Estes foram os seus intuitos ao crear-se.

Quanto á politica de princípios, os seus redactores que tinham por único estipendio o prazer de expor as suas convicções gozavam de toda a independência e liberdade.

Aqueile grupo local tinha por cabeça e alma um moço advogado, morto infelizmente em 1888, em pleno Vigor da vida, deixando uma perenne saudade no coração de todos que com elle trataram.

Era a individualidade, supe- riormente sympathica, de António de Magalhães Barros de Araújo Queiroz. Formado aos vinte e um annos, em 1859, teve por condis- cípulos João de Deus e José Dias Ferreira.

Por aquella épocha era advogado famoso pelo saber, pelo desprendimento de interesses, pela bondade angélica e inesgo- tável, com que a todos servia, com que zelava os direitos e in- teresses de todos, esquecendo-se somente dos seus I

Era homem para tudo na sua António de Magalhães Barros

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terra e amou-a tanto; tanto se prendeu aos negócios delia e dos seus amigos, que nunca de o deixaram sahir !

Depois de formado uma vez pôde ir ao Porto !

Pôde sempre dizer, como Thomaz Ribeiro, aquelle verso do- D. Jayme, que continha uma verdade, quando o poeta o escreveu :

Eu nunca vi Lisboa e tenho pena !

Era dotado de uma distincta intelligencia, de uma feliz e rara memoria, mas tinha um coração ainda maior!

Fui dos que mais o amaram ! Entrando pela sua mão em Coim- bra pela primeira vez, fui como que a pedra de toque dos raros qui-^ lates da sua bondade !

Teve o Echo do Lima por seus redactores, quando se fundou, o Dr. Francisco Roberto de Magalhães Barros, actualmente juiz de 2.* instancia aposentado, irmão d'aquelle nosso querido amigo e quem escreve estas linhas, formados no anno anterior, e ligados por fra- ternal amisade desde os seus primeiros annos.

Temperamentos differentes, completavam-se um pelo outro.

Se um tinha a intelligencia, a frieza e o bom senso, tinha o outro a paixão e a impetuosidade.

Era correspondente do jornal, em Lisboa, escrevendo em todos os números uma carta cartas politicas no fundo e litterarias na forma - - o Dr. Alberto Telles de Utra Machado (hoje chefe de repar- tição no Ministério da Justiça) distincto homem de letras, e, desde a Universidade, amigo dos seus redactores.

Alves Matheus, o glorioso orador sagrado, e Manuel Penha For- tuna, amigo e condiscípulo de António de Magalhães, quizeram ma- nifestar a sua sympathia pelo incipiente jornal e pela sua redacção, mandando para elle alguns artigos.

José Caldas, hoje grande escriptor pelo talento e pela erudição, e então primoroso e promettedor cultor das boas letras, nossa amigo e companheiro de mocidade, honrou o Echo com a sua coUa- boraçâo.

O jornal fez fortuna em popularidade e concorreu para con- quistar para o grupo valiosas adhesões.

Fez rude e intransigente opposição ao ministério, que governou desde setembro de 1865 a janeiro de 186S, de que era alma Fontes Pereira de Mello, e foi um dos que, no norte do paiz, preparou a opinião para o movimento pacifico do 1.° de janeiro de 186S.

Honra-se, ainda hoje, quem escreve estas linhas da pequena parte, que teve n'essa campanha !

Anthero de Quental

. . .agradeço como um dos muitos dilectos amigos do defuncto a homenagem posthuma que lhe conferem, e digo muitos, porque o numero d'elles conta-se pelo dos que no breve decurso da sua vida, sempre angus- tiada, tiveram a fortuna de conhecer de perto a candura quasi santa da sua alma, a nobreza extrema do seu sen- tir e a lucidez cristalina da sua ideia.

(Oliveira Martins, Officio á Camará de Ponta Delgada).

Do poeta e do pensador falam os seus versos e os seus escriptos:

Do homem, porém, é preciso que fale o coração dos seus amigos.

Luiz de Magalhães, In Mem.

Anthero Tarquinio de Quental, que este é o seu nome nos registos universitários, nasceu na cidade de Ponta Delgada em 18 de abril de 1842.

Era filho de Fernando de Quental, que deixou fama de homem muito intelligente e espirituosíssimo, o qual, aos 17 annos, se alistou soldado-cadete na expedição liberal, que da sua terra se dirigia ao Porto e foi um dos 7500 soldados d'ella; e era neto do celebre morgado André Ponte de Quental da Camará e Souza, poeta e homem de letras, amigo e companheiro de Bocage, que, nas cortes constituintes, que se seguiram á revolução de 1820, foi de- putado pela ilha de S. Miguel.

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Por sua màe, D. Anna Guilhermina Maia, procedia de uma distincta familia de Thomar, em que houve magis- trados iilustres, sendo neto do respeitadíssimo desem- bardor Anthero José de Maia e Silva, do qual herdou o nome.

Provinha, pelo lado paterno, de uma das mais nobres e antigas famílias açorianas e de uma fidalga familia da ilha da Madeira, á qual pertencia sua avó.

Tinha também na sua familia a nobreza intellectual de Frei Simão de Novaes, fundador do Convento da Praia, na Ilha Terceira; e de Frei Bartholomeu de Quental, fun- dador da Congregação do Oratório, primoroso escriptor místico e grande orador sagrado, pregador da Casa e Ca- pella Real, que o sr. Joaquim de Vasconcellos, fundado em Barbosa Machado e outros, diz que, por seus talentos e virtudes, não teve menor importância que o padre An tonio Vieira. (1)

Vindo muito novo para um collegío de Lisboa, matri- culou-se, em outubro de 1858, tendo desaseis annos, no primeiro anno jurídico.

Sem me aproximar d'elle, porque o não permittia a minha humildade de estudante recentemente chegado, pela

(1) Veja-se, no In Memoriam, o Esboço Genealógico por Ernesto do Canto e o artigo do Visconde de Faria e Maia.

O illustre genealogista, o sr. José de Azevedo e Menezes, escre- veu o seguinte:

«A familia de Anthero é de origem francesa, e o primeiro portu- «guez que usou o appelido de Quental foi Francisco Botelho de No- «vaes, pae de D. Maria de Novaes Quental, dama da rainha D. Isabel, «mulher de D. Affonso V.

'D. Maria casou com Ambrósio Alvares Homem de Vasconcellos, «muito illustre por nascimento e pae de quatro filhos, que o fizeram «feliz. Um d'elles Simão de Novaes, foi frade franciscano e fundador «do Convento da Praia, na Ilha Terceira. (In Memoriam, Apêndices).

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primeira vez, a Coimbra, iembro-me bem da sua figura d'essa épocha.

Com os seus cabelios de ouro e um colete verde a

Anthero de Quental, 1864

querer fugir-lhe da batina negra pelo pescoço e pelo peito, alegre, inquieto, Vivo como uma travessa creança!

Mas porque é que ainda hoje dirão não conservas o acanhamento de outr'ora, e ousas pôr mão profana em.

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assumpto tão delicado e sagrado, qual o da memoria do altissimo poeta e profundo pensador, que foi Anthero de Quental?

Não ouso, não!

Quero apenas trazer aos seus admiradores uma pe- quena contribuição de factos ignorados ou esquecidos

Quero offerecer-lhes algumas lembranças, que o cora- ção, mais que a memoria, guardou.

Não é um artigo que escrevo, é um depoimento de factos pessoaes ou presenciaes.

Sou como que um rude e bem fraco operário, que traz nos braços uma pequena pedra tosca para o gran- dioso edificio, que ha a levantar á sua memoria !

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Os companheiros e amigos de Anthero

Elle tinha em Coimbra um tio paterno, personalidade muito distincta e bondosa, que, quando Anthero se matri- culou no primeiro anno jurídico, frequentava o 5.^ anno de medicina e foi depois professor d'essa faculdade.

Era Filippe de Quental. nos primeiros annos viveu em casa do tio. Ahi continuou sempre a ser a sua morada para os registos e effeitos académicos. Mas onde elle ti- nha quarto, cama e meza era na casa onde moravam José e Alberto da Cunha Sampaio.

Não sei bem desde quando este facto começou a exis- tir. Parece-me que foi desde o anno lectivo de 1861 a .1862, em que José da Cunha Sampaio, que havia sido ris

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cado por causa de uma desordem com caloiros, voltou á Universidade entrando no meu curso.

Estávamos no segundo anno d^elie. Eram também com- panheiros na mesma casa, Frederico Philemon da Silva Avelino, de Lisboa, e Eduardo de Andrade, de Foscôa.

Mas porque é que Anthero deixou a com- panhia do tio e foi para a d'aquelles rapazes?

Foi por azedume ou dissentimentos, que os separassem?

Não. Eram incom- patíveis com a tole- rante bondade e reci- proca affectuosidade de ambos.

Nenhuma nuvem tol- dou nunca a pureza do affecto entre elles.

E' que Filippe era tio e os dois Sampaios eram os seus irmãos !

Elle e Alberto Sam- paio e Germano Mey-

relles eram como aquelles gémeos siamezes, que não po- diam separar-se e o que um sentia era o que sentia e sof- fria o outro.

Posto não vivesse na mesma casa com Germano, constantemente se viam juntos, de dia e de noite.

Alberto Sampaio era o seu companheiro e confidente nas letras; era bem o seu irmão pela capacidade intele- ctual, pelo caracter e pela bondade de coração.

então se entregava a sérios estudos económicos e se revelava o futuro erudito escriptor da Portugália e o auctor do notabilissimo livro, que se intitula As Villas do Norte de Portugal. Nunca teve por familia senão o irmão e os filhos de seu irmão! Um sábio e um santo!

6

meKTOSMStji, í\.

Alberto Sampaio

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Germano Meyrelles, intelligencia superior, talento vi- víssimo, era, em todo o seu ser, originalíssimo!

Baixo, magro, olhos viVos, beiços finos, cara peque- nina, sem barba e povoada de um ligeiro velo claro, grande mobilidade de physionomia, havia n'elle alguma cousa que fazia lembrar um pequenino rato!

Aleijado dos pés, que tinha como que amputados e voltados para traz, o que o fazia caminhar com difficui- dade, ondeante, vivia como que em guerra com a natu- reza, que havia tido com elle aquella enorme crueldade!

Era azedo, desdenhoso, sarcástico!

Um sarcasmo vivo e em pé! Palavra fácil, vibrante, ousadíssima, como a sua penna! Secco no trato, não tinha a communicativa bondade de Anthero e Alberto Sampaio.

José da Cunha Sampaio, que era o mais velho, era o chefe. Chefe de Alberto, de Anthero e dos outros compa- nheiros de casa. E não era d'elles.

A outros estendia o seu ascendente de irmão mais Ve- lho, muito querido e respeitado.

Esse José Sampaio, de olhar melancholico, testa alva e altíssima, donde sabiam abundantes cabellos de ébano, com o rosto ornado de fina e formosa barba negra, typo de homem com linhas de raça árabe, era dotado de uma clara intelligencia e de um espirito muito ponderado.

Era uma das mais sympathicas figuras da academia. A sua alma tinha ainda maior nobresa do que o seu corpo.

Era então e foi, durante a sua vida, um espelho mo- ral a que podiam compôr-se os que quizessem ser dignos.

Estes eram como que a familia de Anthero.

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Mas muitos outros frequentavam a casa, e viviam liga- dos a eile pela communhão das letras, ou peia amisade.

Eram: José Falcão, António de Azevedo Castello- Branco, Santos Valente, Anselmo de Andrade, Francisco Machado de Faria e Maia, Alberto Telles de Utra-Ma- chado, Florido Telles de Vasconcelios, Marianno Machado de Faria e Maia, Philomeno da Camará, João de Sousa Vilhena, João Lobo de Moura, Guimarães Fonseca, Theofilo Braga, João Machado de Faria e Maia, Fer- nando Rocha, Manoel de Arriaga, José Leite Monteiro, José Ber- nardino de Abreu Gouveia e Raymundo Capella, que são os que agora me lembro.

As relações com Guilherme de Vascon- celios Abreu, então militar e estudante de mathematica, e com Eça de Queiroz, começaram mais tar- de e em épocha a que ainda me referirei.

Além daquelles, cujos nomes citei, ha- via a plebe dos admiradores, os que nos diziamos solda- dos do seu ideal de Justiça, e que lhe não votávamos um menos quente affecto.

José da Cunha Sampaio, IS65

Anthero tinha também então admiradores nas outras escolas do paiz.

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Quando, em 1864, arrastados pela sua palavra, por occasião da Rolinada, fomos em êxodo para o Porto, viveu sempre rodeado dos mais distinctos estudantes portuenses.

Alexandre da Conceição, Custodio Duarte e Manoel Duarte de Almeida viam-se sempre juncto d'elle.

Entào conheci, de vista, os dois primeiros, dos quaes depois fui amigo.

Os irmãos, Custodio Duarte e Manoel Duarte, seques- traram-no, levando-o e a António de Azevedo Castello- Branco, que estavam hospedados na Hospedaria Esta- nislauy na Batalha, para a casa em que viviam.

II

Anthero e Filippe de Quental. Uma grave doença.

Foi no inverno do anno lectivo de 1863 a 1864 pa- rece-me que em dezembro ou janeiro que tive occasião de conhecer a affectuosa ternura, que ligava os dois.

Marco aquelles dois meses desse anno, porque na pri- meira epocha d'elle, Alberto Sampaio, pela atracção pelo irmão e por Anthero, ainda esteve em Coimbra sob pre- texto de frequentar uma cadeira do curso administrativo; e, quando se passou o que vou contar, não estava.

Chamado pela mãe, tinha ido para junto d'ella. Não tive a honra de conhecer essa senhora, mas ella devia ter as Virtudes da mãe dos Gracchos.

Ausente de Coimbra, Alberto achava-se na honrada casa de Boamcnce, em S. Christovào de Cabeçudos (Fa-

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malicào), onde nasceu José, e onde depois quando residia em Villa do Conde, Anthero tinha um quarto, que a elie pertencia e sempre preparado para recebê-lo. (Alberto nasceu em Guimarães).

Viviam, n'esse anno, Anthero e seus companheiros na rua da Trindade n." 16.

E' a chamada casa da ilha, porque fica isolada, sendo cortada pela rua dos Militares e pelo prolongamento da rua do Borralho.

Anthero sentiu-se doente e teVe de recolher-se á cama. Julgaram os companheiros que seria uma grande consti- pação, filha de resfriamento e proveniente este da falta de cuidados, que tinha com a saúde.

Inda assim, foi participado o seu estado a Filippe de Quental. Este veiu, como medico, vêr o enfermo.

Assisti á visita. Foi no começo da noite, depois do toque da cabra.

O tratamento, que entre si se daVam era o de uma intimidade de irmãos, ou, melhor ainda, de entre pae e filho com muita ternura e desusada confiança.

Anthero com a sua doce voz que nunca mais esque- ceu a quem se acostumou a ouVi-la chamava-lhe /^^^ Filippe ; e este tratava-o por compadre Anthero. Nenhum d'elles teve filhos.

Chegando o medico, entrou no quarto do doente, tomou-lhe o pulso, e, com o seu ar bonacheirão, disse : não é nada, compadre Anthero, não é nada!

Receitou e foi para o quarto de José Sampaio conver- sar. Para fomos todos.

Digno tio de Anthero na intelligencia e na bondade, physicamente era um typo inteiramente diverso : alto, cheio, bojudo, suissas e cabellos negros, e usando óculos escuros.

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Muito iliustrado e possuindo a livraria do pae, onde Anthero muito' se instruiu! Muito relacionado com polí- ticos e litteratos.

Havia sido no Theatro Académico, um actor cómico de distincío mérito, e ninguém contava com mais espirito uma anedocta, sublinhando-a apenas com um ligeiro e especial tremer dos lábios.

N'essa primeira noite da doença de Anthero, elle teve todas as honras do cavaco.

Anedoctas ; casos da academia anteriores á nossa épocha. de que era chronica viva ; casos picarescos da sua primeira mocidade, na ilha de S. Miguel ; aventuras galantes d"esse tempo, tudo salgado com a sua graça, para ali trouxe o bom Filippe.

Voltou na noite seguinte e repetiram-se as mesmas scenas.

Anthero tinha febre, mas conversava. Ao terceiro dia porém o doente peorou muito, k febre era muito alta.

Chegou Filippe com a sua alegria costumada.

Tomou o pulso ao doente. Examinou-o muito demorada e cuidadosamente.

De repente a phisionomia transtornou-se-lhe! O tremer dos seus lábios não era o que tinha quando contava casos alegres!

Sahiu do quarto e desceu as escadas, porque isto se passava no andar superior.

Em Vez de se dirigir para o quarto de José Sampaio, dirigiu-se para a porta da sabida.

Levantou a gola do sobretudo como para esconder o rosto. Falando baixo a José Sampaio, as lagrimas salta- ram-lhe dos olhos. O medico exprimentado sentiu-se sem serenidade para o combate, que havia a travar com a doença.

Muito enfiado, ouvimos dizer-lhe : eu mando o Lourenço.

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N'essa mesma noite, tomou conta do enfermo o dis- tincto professor, grande e sympathico clinico, Dr. Lou- renço de Almeida Aze- vedo.

Anthero tinha um perigosíssimo ataque de bexigas !

Os frequentadores da casa offerecêmo- nos para auxiliar os companheiros em to- dos os serviços, de que precisasse o doente.

Em uma noite, que passei junto delle com Frederico Phile- mon, o enfermo deli- rava.

Conversava com os grandes poetas : com Camões, com o Dante, com o Petrarcha, que por essa occasiào lia.

Interrogava-os. Exigia-lhes que lhe respondessem!

De repente teve um ataque de choro. Quiz levantar-se para procura-la dizia!... porque a tinha perdido... e não podia viver sem ella. . . a Consciência!

E chorava muito... porque a não encontrava, a Consciência!

Frederico Philemon

Vieram as melhoras depois de poucos dias. O perigo passou.

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Lembrando-nos do que elle depois produziu; do papel moral e litterario, que desempenhou; da influencia que teve sobre tantos espíritos, é que bem pôde apreciar-se a perda enorme, se elle então tivesse succumbido.

IV

Anthero aprendiz de dansa

Anthero tinha por vezes simplicidades de creança.

Elle, que era um triste, tinha também alegrias sinceras como as dos annos infantis! Parece próprio da maldicta doença, que lhe amargurou a vida e afinal o Victimou!

Ouviu-nos falar, uma Vez -a mim e a Philemon em umas dansas, em que, com outros rapazes, nos andá- vamos a exercitar em casa de um nosso condiscípulo, que deve ter ido desta vida para outra em passo de dansa! Era insigne dansador, e morava á Velha, na casa da esquina vindo da rua da Ilha. Anthero disse-nos logo que também queria ir; que era uma prenda que lhe faltava e queria completar-se!

foi duas noites para entrar no regimen constitucio- nal da dansa, que era como elle chamava ás quadrilhas e lanceiros.

Mas, como elle esteve alegre, n'essa noites! Como brincou e riu ! . . .

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No anno de 1862-1863

É este, quanto a mim, o mais feliz anno da vida de Anthero, em Coimbra.

É o anno do seu maior calor pelas cousas da acade- mia. É o da sua mais radiante gloria e predomínio moral.

É o anno da e Esperança no futuro !

Morava com os seus companheiros aos Palácios Con- fusos, ou antes na travessa, que d'ali segue para a Cou- raça de Lisboa, perto da casa, onde tantos annos viveu e morreu a pobre Amélia Janny.

É o anno, em que se revela a existência da Sociedade do Raio, fundada no anno anterior, e de que era um dos chefes com José Sampaio e José Falcão.

Os sócios não se conheciam. Reuniam por decurias em casa dos chefes destas, e, como dez estudantes, em casa de um outro estudante, não causavam reparo, mante- ve-se o segredo. depois de 8 de dezembro é que houve a reunião, a que se refere Marianno Machado, no seu interessante artigo do In Memoriam, escripto com a probidade moral e litteraria, que sempre o distinguio. Muito interessantes as surpresas, a que este se refere! Nessa reunião, effectuada na casa que fica ao fundo da rua dos Loyos, e presidida por Anthero, este revelou o extraordinário poder de sugestão da sua palavra.

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Logo no começo do anno lectivo, em 21 de outubro, pelas 6 horas da tarde, entrou em Coimbra o príncipe real de Itália, que depois foi Rei Humberto. Consta das noticias da sua viagem, publicadas no Diário do Governo, n."^ 262. Dirigia-se ao Porto a visitar os logares, onde passou os seus últimos dias e onde morreu seu avô, o Rei Carlos Alberto.

A unificação da Itália e as épicas façanhas de Gari- baldi, desde os annos anteriores que despertavam o maior enthusiasmo na mocidade de Coimbra.

Reuniu-se uma assembléa geral, no Theatro Académico, para ser nomeada a commissão, que havia de ir cumpri- mentar o príncipe italiano em nome da Academia.

Contra a praxe de escolher ursos (estudantes pre- miados) para essas commissôes, conseguimos, pelas dis- posições que tomámos, calor e energia com que gritámos, eleger Anthero e, na quasi totalidade, rapazes do seu grupo.

Vou pôr aqui a felicitação, escripta por Anthero, e copiada por mim antes de assignada, transcripta, prosa única, no meu caderno de Versos de João de Deus, onde Vou buscal-a. Não tinha as reticencias e parenthesis, que lhe pozeram no livro consagrado á memoria de Anthero, como hão-de reconhecer não era próprio, nem deli- cado.

Dizia assim :

Príncipe :

Os estudantes da Universidade de Coimbra, filhos e netos dos heróicos defensores do Porto, saúdam, em nome da fraternidade de dois povos irmãos, o neto de Carlos Alberto : a mocidade liberal por- tugueza saúda, em nome da liberdade do mundo catholico, o filho de Victor Manuel.

Á mocidade portugueza não lhe soffre o coração, que não recorde com saudade a memoria do heroe infeliz, que, escolhendo por ultimo

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leito uma terra de hoir.ens livres, prestou, ainda na morte, homena- gem á liberdade ; não lhe soffre o espirito impaciente, ainda que oppresso por um phantasma do passado, que não vire os olhos para as bandas da luz, aonde, no meio dos combates, se enlaça o braço do rei com o braço do povo.

Não é ao representante da casa de Sabóia, que vimos prestar homenagem : é ao filho do primeiro soldado da independência italiana, esse, de quem os reis da Europa aprendem como, neste século ainda, se pode ser popular sendo-se rei ; de quem a Itália espera resurreição completa : de quem espera a Igreja Christã uma nova época de verda- deira grandeza e de liberdade verdadeira.

Aos votos da Europa intelligente : aos votos da Europa popular ; aos votos dos que trabalham pela santa causa dos povos, unimos os nossos, sinceros como a nossa edade, e como ella cheios de muita fé, para que a pátria de Garibaldi possa rehaver o sagrado património da sua nacionalidade ; e para que o coração da Itália, que o é também do mundo christào, pulse com egual energia pela liberdade politica e pela liberdade religiosa.

Pela forma, que ah! fica, sem discrepância alguma, foi publicada, logo depois, no n. ' 915 do Conimbricense e no n.° 247 do Commcrcio do Porto, do dia 25 de outubro de 1S62. Verifiquei agora.

.■\ commissào académica, que apresentou esta saudação ao príncipe italiano, era composta dos seguintes estudan- tes: Anthero de Quental (presidente), José' Falcão, José da Cunha Sampaio, José de Coutinho, António Ber- nardino Cerqueira Lobo, Henrique de Macedo Pereira Coutinho, Marianno Machado de Faria e Maia e Eduardo David e Cunha. (1)

(1) Entre esses nobres rapazes, signatários da mensagem ao príncipe italiano, havia um que não não estava filiado na Socie- dade do Raio, mas quasi se podia considerar o chefe do grupo, que lhe era hostil, tendo sido até, segundo as minhas impressões e lem- branças, quem deu origem ao nome d'ella. Era António Bernardino Cerqueira Lobo, estudante muito distincto, segundo premiado do seu curso.

Foi elle que, em virtude de umas exclamações, attribuidas a An- thero e Germano, em tarde de trovoada, começou a chamar-lhes

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Os cumprimentos ao príncipe foram-liie apresentados no dia 22.

Á noite, houve recita de gala no The atro Académico, sendo estudantes todos os actores.

O enthusimo foi delirante quando um dos actores, o estudante do 5.*^ anno jurídico António Filho Machado, recitou a formosa poesia de Anthero, escripta para essa recita, e que se intitula Itália e Portugal. Começa

assim

Itália e Portugal ! que duas pátrias ! Ambas tão bellas, tão amadas ambas ! Uma a pátria do berço ; outra a das almas Uma a das artes ; outra a dos combates !

os do Raio e aos rapazes que conviviam com elles a sociedade do Raio ! Perfilhou-se a denominação.

D'aquelle grupo proveiu, mais tarde, outra denominação. Passa- ram a chamar-nos o grupo dos Traças, isto é, pequeninos bichos de destruição.

Como tiniiamos a lingua prompta, démos-lhes, alludindo ao seu conservantismo, o nome de Os Sopas.

Estas divergências e denominações, que diga-se em honra de todos, nunca chegaram á quebra das relações pessoaes, apparece- ram na imprensa académica, como pode ver-se no Attila.

*

*

Dos membros da commissão, que com tanta galhardia, falou ao príncipe estrangeiro, vive um que era então rapaz muito sympa- thico e estudante muito laureado e é e tem sido engenheiro distinctis- simo.

Marianno Machado de Faria e Maia ! Permitia Deus que a sua vida se prolongue para continuar a honrar a geração académica, a que pertenceu.

93^

Tinha versos como estes:

Quem derruba, sobranceiro, Altos colossos por terra? Quem é que faz d'uma guerra A festa do mundo inteiro? Um homem?

Não!

A Justiça? Deus! o único juiz Dos povos na grande liça!

Anthero e Fialho Machado foram depois ao camarote do principe, que lhes agradeceu e apertou muito a mão.

Foi em novembro, e não em uma noite de maio ou junho, o que collocaria o acontecimento no anno lectivo anterior (como inexactamente se diz a pag. 151 do In Me- moriam) que se realizou a primeira manifestação da socie- dade do Raio; e não a propósito da volta de Lisboa do deputado Bernardo de Albuquerque, como também com esquecimento se diz. Não foi este que chegou de Lisboa, mas a noticia da sua nomeação de professor da Universi- dade, que tem a data de 27 de novembro de 1862, como consta do Diário do Governo e do Anmiarío da Univer- sidade de 1901 a 1902 (1).

E' que, com verdade ou sem ella, tinha corrido que o reitor era hostil a este candidato e que desejara que elle

(1) Veja-se a nota 4.'''.

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fosse preterido no concurso, filiando-se essas animosi- dades na critica por elie feita á decisão dos decanos, que impoz a pena de expulsão perpetua a Vieira de Castro.

Por isso os dirigentes da sociedade resolveram que fossemos, em grande manifestação, felicitar o noVo pro- fessor pela sua nomeação.

Passou-se isto nos últimos dias de novembro. Era um ensaio. Pouco mais de uma semana depois se realizou o grande acto, em 8 de dezembro.

Esse acto consistiu na assistência, com todo o socego e compostura, á solemnidade da distribuição dos prémios na Sa/a dos Capellos, sendo ouvido, com fingida atten- ção, o longo discurso do decano; mas voltando as costas e sahindo da sala, logo que o reitor, Basilio Alberto, começou a falar lendo o discurso preparado para a occasião.

O caso fez ruido e teve diversas apreciações.

O manifesto ao paiz, explicando-o, e tomando a res- ponsabilidade do acto, de que Anthero foi auctor e pri- meiro signatário, é um documento notabilissimo, que ainda hoje, apezar da fria velhice, me honraria de tornar a assi- gnar, feitas algumas poucas restricções, que uma maior experiência e uma menor ignorância me levariam a fazer.

Este movimento de espíritos foi iniciado, no anno an- terior, por aquelles bellos versos, que Fialho Machado, em maio de 1862 também recitava, nos quaes o actor Si- mões era apenas o pretexto para esse verdadeiro hymno do nosso sentir.

95 Qual de nós, d'esse tempo, se não lembra d'elles

O sol do bello a todos alumia ! Sua aureola cinge cada fronte. Bem como o rei do dia, mal desponte, luz egual a todo o ser creado! Esse baptismo sancto envolve e lava Todos na mesma onda inspiradora! Queima com a mesma chamma abrazadora. Orvalha em egual pranto derramado ! Juntas as almas, que o sentir enlaça, Commungam, como irmãs, na mesma taça.

São da mesma épocha a Beaticc e o Fiat Lux. E ainda aquelles versos de tão delicado lyrismo, que tanto enthusiasmo produziam, quando a elegante actriz, a quem foram dedicados, os cantava no Thcatro de D. Luiz.

Quem é que, n'esse tempo, não trazia nos ouvidos a mu- sica d'estes versos :

O beijo

Pudesse eu nesses teus lábios, Filha! dar-te beijos mil! Dar-te a morbidez do afago A esse teu collo gentil, Pudesse, estrella dourada, Arrancar-te ao ceu de anil ! Roubar-te, cordeira branca, E trazer-te ao meu redil.

Eu tenho a luz dos meus olhos No brilho do teu olhar! Gemma! Pérola! Espelho! Onde me estou a mirar ! Tenho tudo isso, tenho! Não me posso contentar ! Meu sonhado paraíso Era essa bocca beijar !

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Que trovoada de palmas quando a actriz, que tinha uma agradável voz e um collo gentil, como dizem os ver- sos,—t'o//o de garça como a linda Ignez, acabava de cantar!

Falieceu. ligada a familia illustre, ainda não ha muito, rica e avó !

Sic transiu gloria mundi!

VI

Sua piedade pela mulher

Anthero tinha uma grande piedade pela mulher. Não menor do que a de Michelet, que elle tanto admirava. Era muito apreciado por elle o La Femme do grande es- criptor francez.

Essa piedade era acompanhada de um sentimento cava- lheiresco de defesa e protecção pelo ser fraco e delicado, que, como diz Oliveira Martins, elle considerava o sym- bolo da própria Vida.

Esse culto pela mulher manifesta-se logo nos seus pri- meiros annos de escriptor.

Sinto não poder transcrever aqui alguns trechos de dois bellos artigos seus: um publicado nos Prelúdios Lit- t erários e outro na Estreia LU ter ária.

Intitula-se o primeiro A educação da mulher e o se- gundo A influencia da mulher na civilisação, reprodu- zidos ambos na Bibliotheca da Aurora do Cavado.

Contarei um facto presencial. Acompanhava-o, uma noite, por uma rua de Coimbra. Em certa casa habitada

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por casal, que nos era inteiramente desconhecido, senti- mos ralhar e depois o choro de uma mulher.

Suppozemos que o homem a maltratava. Anthero com- moveu-se logo extraordinariamente! Quiz intervir! Quiz bater á porta! Queria entrar, queria proteger a mulher, que ali chorava! Tremia! Custou-me a contel-o! Era uma desconhecida ! Se fora uma sua irmã, que ali estivesse sendo victima, não ficaria mais agitado! Não lhe desper- taria maior sensibilidade!

Era Um^-^Jgar contenda entre esposos de certa es- phera, que logo se apasiguou. Restabeleceu-se o silencio. Mas, passado algum tempo, depois de bem assegu- rado de que uma mulher não estava ali sendo victima de maus tratos, é que consegui arrancal-o daquelle logar.

Contarei um outro caso, que fez ruído no meio aca- démico. A elle se faz uma escura referencia no In Memo- riam, e merece ser conhecido em todas as suas circums- tancias.

Esse caso deu origem a uns formosíssimos Versos bastante desconhecidos. Foram depois publicados nas Primaveras Românticas, livro muito difficil de encontrar, e estão disfarçados com o titulo Une femme qui tombe, que não era o primitivo. Este era Ermelinda. Para bem apreciar essa formosíssima poesia é preciso conhecer-lhe toda a historia.

Vou contal-a:

Anthero foi sempre como com verdade escreveu Vasconcellos Abreu uma alma pura e, em toda a sua Vida, um idealista.

Posso unir o meu testemunho aos invocados por Souza Martins para confirmar a apreciação de que elle não amava com interesse da posse; amava divinisando a mulher.

7

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Uma tarde, dois amigos obrigaram-no a uma apresen- tação a uma infeliz rapariga, recentemente chegada a uma casa da Couraça dos Apóstolos. Não era essa infeliz destituida de dotes de beileza. Chamava-se Ermelinda.

Antfiero, mantendo-se tímido, conservou para com a des- venturada toda a innocente delicadesa da sua alma de poeta.

Entrementes ahi appareceu Vieira de Castro, que tinha temperamento e hábitos muito differentes. Fez e disse-lhe cousas Varias. A desgraçadinha ainda não tinha perdido inteiramente o pudor de mulher. Saltaram-lhe as lagrimas 1 Anthero commoveu-se e fugiu logo d'aquella casa!

Na mesma noute escreveu os versos, que poucos dias depois appareceram no Attila, jornal litterario de Rodrigo Velloso, com o titulo Ermelinda e uma carta dirigida ao redactor d'esse jornal.

Para aqui transcrevo a carta e os Versos, taes como foram publicados :

Sr. Redactor (1)

Peço-lhe a publicação dos versos que seguem. É a poesia mais sancta que jamais escrevi, porque se chama consolação, e segura- mente a mais bella, porque é uma boa acção.

Não sei, nem agora espero sabê-lo, para que bandas do hori- sonte fica o ceu, que Deus nos guarda. Mas deante da fatalidade que a terra prende á barra do vestido de certas mulheres, como um lodo pesadíssimo, que as puxa para baixo a cada hora e as calca n'estes chafurdes da vida; deante d'esse mysterio, a alma claro, dentro em si, o que os olhos da cara não alcançam ; e no escuro brilha uma luz.

(1) Tem nota no fim.

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como nenhum ceu de primavera a teve jamais, a luz da primavera das almas, chamada esperança!

No meio da impotência dos systemas dos philosophos e das reli- giões dos theologos, a immortalidade aparece, como uma aurora infi- nita, em uma pequena gotta de agua, n'uma lagrima de mulher!

Chega-se á crença pelo soffrimento. porque elle nos pode dar a impressão profunda da necessidade de uma compensação, o senti- mento da justiça. É isto exactamente o que os systemas não dão. Se Christo tivesse philosophado á maneira de Hegel, em face das dores do seu povo, não passaria o seu nome, hoje, de um d'esses muitos que lemos, ou antes não lemos, nos in-folios que tratam de archivar as ar- gucias do espirito humano para riso das pessoas das gerações futuras.

Chorou, sentiu, soffreu com os mais tristes e os mais mesqui- nhos; é por isso que foi Christo.

Ha-de parecer-lhe extranho, sr. Redactor, que seja eu (que ha tanto tempo perdi o nome de christão) que venha falar destas cousas em terra onde ha tantos e tão bons I

Que quer? este século é um paradoxo, e até na minha fraca pessoa quer ter mais uma prova d'este espirito de contradicção.

Depois, sr. Redactor, nós outros, os excommungados, quando nos expulsam da Igreja, temos a consolação de encontrar á porta o christianismo, o que nos abre o seio para n'elle escondermos a cabeça carregada de duvidas, magoada de incertezas e dores sem conta. Fi- cam-se os sacerdotes e os eleitos da com os seus templos, os seus altares, a sua consideração e as suas prebendas, nós com Jesus Christo. Não tendo direito de vêr e amar a Deus na pedra das aras, na lettra gothica dos missaes, ou na penumbra dos confissiona- rios, soletramos o Evangelho nos olhos dos tristes; e palpamos o vasto coração do Nazareno dentro dos peitos que as tristezas da terra encheram das infinitas esperanças do ceu.

Isto traz-me ao assumpto d'estas linhas.

Eu ouvi uma manhã d'estas falar (1) do Christianismo, como um douctor da Igreja (ou, ao menos, como um doutor da Universidade) a um homem, cuja certidão de felicidade lhe anda estampada, desde as faces ao ventre, na sanguínea redondesa de uma personalidade de Imperador Romano de outros tempos, ou deputado de hoje, o que julgo ser tudo um.

Fêz-me pasmar aquillo! Admirei, na minha humildade, o século em que os apóstolos do Christo, sellada emfim a paz entre o corpo e o espirito, podem crear ventre e faces floridas de Pangloss, sem que com isso nada percam da sua seraphica sublimidade.

A' noite, esse mesmo apostolo fazia corar uma mulher publica

(1) Refere-se a umma licção dada em uma aula.

100

com a irritante descripção de certos refinados prazeres, que nada deixariam a invejar aos da Roma de Juvenal, se não fossem infinita- mente menos grandes e infinitamente mais porcos.

Comprehendi então o Christianismo d'estes martyres barrigudos! E, como disse, é forçoso que em tudo apareça o paradoxo do sé- culo, entendi eu. emfim, que era á minha impiedade que competia ensinar a estes christamões que as azas com que se vôa ao ceu, tanto as podem ter hombros vestidos de setim, como com vestidos de chita de pataco ; que fazer chorar os que um destino mau curva até o chão é, alem de dureza, cobardia excessiva; e que, emfim, o respeito de- vido á mulher tem de se medir na proporção da infelicidade d'ella, e nunca na da desconsideração que lhe possa dar este estúpido mun- do, onde em trevas vamos expiando não sei quaes escuras culpas de outro passado mysteriosissimo.

Não querem dizer outra cousa os versos que se seguem.

Coimbra, 6 de fevereiro de 1864.

Anthiíro de Quental.

Ermelinda

. . .tinefemme qui tombe! V. H.

Ao meu amigo J. F. {})

Quem te deitou, innocente. Tremendo de frio e dôr. Sobre o monturo da vida. Como cousa sem valor ;

E essa face dolorida Te fez empallidecer Com o olhado da miséria Com o beijo do soffrer ;

Pôde gelar-te esses membros, Encher-te de palidez ; Furtar-te o chão da existência. Cada hora de sob os pés ;

(1) José Falcão.

101

Mas o que essa mão não pôde, Com a gelada pressão, Foi tirar-te o dom das lagrimas Foi seccar-te o coração !

Chora, pois ! Deus as almas ! O mais é cousa mortal ! Vê-as só, quer os ais saiam Do palácio ou do hospital !

Sua mão, se faz estrellas, É de almas que anda a colher ! Se, pois, o espirito sobe, Bem pode o corpo descer !

Que importa onde os pés se firmem, Se é porque o olhar se erga á luz ? Bem podre é o chão dos mortos E mais se hasteia a cruz !

Como aos poços mais sombrios Chega um raio de luar. Podem também nascer lyrios Á porta de um lupanar;

E os seios que o mundo compra, Em crapuloso leilão, A que preside a miséria. Podem ter um coração !

Temos todos Visto, ás vezes, Sahir uma luz ideal De cabeças que se encostam Na enxerga de um hospital !

Ah ! deixa correr teu pranto Sobre o chão do lupanar ! É sementeira de dores Que andas triste a semear !

Que passe o inverno por cima ! A primavera ha de vir ! As dores que tu semeias É no ceu que hão-de florir !

102

são contadas as lagrimas Que aqui se vão a chorar I Por baixo de nossos olhos Anda-as Deus sempre a aparar !

Eu creio na Providencia I O tronco sêcco da Cruz Rebenta no Paraiso. Para dar flores e luz I

As faces que empallidecem Ha-de Deus ainda corar Com o reflexo dos cyrios Que ardem no seu altar !

E, se os olhos se anuviam Escurecendo-se, Deus Faz dos escuros da terra A aurora eterna dos Céus I

Que sopro de espiritualismo religioso e de superiori- dade moral perpassa n'esses versos! Que sancta tolerân- cia! Que doce caridade!

Não seriam muito outras as palavras com que o su- blime Nazareno socegou o espirito perturbado da pe- cadora Maria de Magdala!

Vil

Espiritualista eram para elle abomináveis todas as abjecções do materialismo-.

A sua alma pairou sempre nas regiões sublimes da Fé, da Esperança e do Amor!

103

A mulher merecia-lhe culto como fonte do amor e da vida!

A cada passo se encontra este sentimento nos seus versos. teríamos difiiculdade na escolha.

Mas nào resistimos a trazer para aqui algumas das estrophes, tão sentimentaes e tão bellas, da Beatrice:

Bem como a gota d'agua ao pobre insecto inunda, Inundem-me d'amor teus olhos ceu e luz A quem pedimos nós que amor ao peito infunda? Ao seu symbolo ~ á cruz !

Abre-te, asylo santo, único, eterno abrigo, Ó seio virginal, ó seio de mulher! É mãe, e irman, e amante! é este o seio amigo! Eu quero inda viver!

O infinito! Ideal! Visão, que mal presinto! Transfigura-te aqui! deixa cahir teu Veu! Quero palpar e ver a Deus, n'isto que sinto! Quero antever o ceu!

Venham-me esta alma ungir palavras do teu lábio Que mestre ha hi que valha um lábio de mulher? Que livro folheou o Christo, o maior sábio? Quero a vida aprender!

Coração! coração! eia! resurge! vive! Ja pôde á voz do amor um morto resurgir . . . E tu não te has de erguer, ó coração que tive? Quero ainda sentir!

Afunde-me no mar da vida pelo affecto; Quero sentir-lhe a vaga em mim tumultuar: De vida o occeano é pae, de vida anda repleto O amor! que immenso mar!

Irman! dá-me do manto alvíssimo uma ponta. Onde me involva todo- um raio d'essa luz . . . Não é a cruz quem o dia mal desponta? Tu és a minha cruz.

104

Oh! vem! se ás maguas ando á muito affeito, Junctos podemos contra a dor luctar: Não podem maguas contra um peito amigo . . . Oh! Vem, que eu soffro! vem soffrer comigo . . .

E então meu peito,

Ha de acalmar!

Se soffres, soffro: quem não pisa abrolhos? Quem rosas colhe sem lhe a mão sangrar? Mas, quando a angústia me negar conforto D'um pranto, ao menos, a meu peito absorto

Volve teus olhos . . .

Hei de chorar !

Oh! vem! que eu soffro! vem trazer-me a calma, Que anhelo e busco no teu puro olhar! Se a minha estrella se apagar sumida, Oh, surge, surge, no meu ceu da vida . . .

E então minha alma . . .

Ha de exultar!

Sabendo-se que esse formosíssimo poemeto da Bea- trice foi uma das producções que elle quiz depois destruir e fazer desapparecer, pode calcular-se quantas preciosi- dades perdidas!

VIII

Ainda em Coimbra

Anthero, assim como o seu companlieiro Eduardo de Andrade, completaram a formatura no fim do anno lectivo de 1863—1864.

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Mas ainda no anno seguinte continuou a residir em Coimbra, na companhia de José Sampaio e Frederico Phi- lemon, morando na casa da rua do Borralho, que faz es- quina para a rua da Trindade, do lado superior, á direita, descendo.

E' n'essa casa que elle escreveu a Defeza da Car- ta Encyclica de sua Santidade Pio IX.

Sempre pensador e sempre poeta, é n'essa casa que escreve, ou burila muitos dos seus sonetos. Havia a edição de vinte, feita por Santos Valente em 1861, prece- dida de uma brilhante prosa de auctor d'elles. Foi apenas tirado um muito limitado numero de exemplares para dis- tribuir pelos amigos.

Anthero era um conversador de raro encanto ! Con- versando, a phantasia de poeta não lhe fazia perder a clara Visão das cousas ! Punha as questões com a mais perfeita e admirável clareza e nitidez. Dahi a irresistível seducção da sua palavra.

Aspirando a um mundo melhor, era um propheta, um vidente, um apostolo !

Parecem feitos para elle os bellos versos de Victor Hugo :

Le poete en des jours impies Vient préparer des jours meilleurs, II est rhomme des utiipies Les pieds ici, les yeux ailieurs. Cest lui qui sur toutes les têtes, En tous temps, pareil aux prophètes, Dans sa main, oii tout peut tenir, Doit, qu' on Tinsulte, ou qu'on le loue, Comme une torche qu'il secoue, Paire flamboyer Tavenir ! (1)

(1) Les Rayons et les Ombres, Function du Poete.

106

As suas máximas de probidade moral e probidade lit- teraria, que eram inseparáveis para elle, exprimia-as, no fim d'esse anno de 1865, pela forma seguinte:

«A condição da grandeza, da belieza, da bondade, a «primeira e indispensável condição não é o talento, nem «a sciencia, nem a experiência; é a elevação moral, «a virtude da altivez interior, a independência da alma, a «dignidade do caracter. Porque a intelligencia dos hábeis, «dos grandes, dos espertíssimos é muitas vezes cega em «lhe faltando uma coisa bem pequena, que se encontra «nos simples e humildes,— a boa fé.»

Isto escrevia n'aquella admirável caria Bom senso e Bom gosto, que é o Evangelho da dignidade litteraria, com que levantou a celebre Questão coimbrã.

No principio do anno lectivo de 1865 a 1866, em que ainda esteve em Coimbra, é por certo que morou na casa do Largo de S. João, a que se refere Eça de Queiroz, e na qual estreitou relações com este.

Os seus antigos companheiros, e quem escreve estas linhas, tinham terminado os seus estudos em julho anterior.

Durante todo esse largo período da sua vida de Coim- bra, elle não teve o brilho do seu talento genial. Res- plandeceu a luz da sua alta dignidade moral. Foi um paladino da honra! Pelas suas lições e exemplos teve uma grande influencia na educação do caracter de muitos homens da sua geração. Deveria continuar a tê-la!

E' também sobre este ponto de vista que merece uma grande homenagem a sua memoria!

107

X

Decorreram viníe e dois annos! Quantos trabalhos e luctas! Quantas illusões perdidas! Quantas aspirações, bem modestas e santtas, esmagadas! Quantas dores! Quantos mares percoridos: o Atlântico, o Mediterrâneo, o Mar Vermelho, o Oceano indico e o Mar da China !

Pude dizer!

Longe por esse azul dos vastos mares, Na soidão melancholica das aguas. Ouvi gemer a lamentosa alcyone, E com ella gemeu minha saudade ! (1)

Depois de vaguear pelos palmares onde ruge o tigre, recolhi á pátria; mas, quando julgava ter entrado no ambi- cionado porto amigo, foi ali que se me levantou uma des- caroavel tempestade! Fugindo-lhe, em busca de alguma paz para o meu espirito, torturado pela infernal doença que a crise moral provocou, fui acolher-me ás praias açorianas!

Cheguei a Ponta Delgada no dia 25 de julho de 1887. Passados dois ou três dias, fui a bordo do paquete Açor para me despedir de uns companheiros de hotel e dos ser- viços que professávamos, os quaes partiam para o conti- nente.

Entrando na camará do paquete, deparou-se-me ines-

(1) Garrett, Camões, canto V

108

peradamente Anthero de Quental, que conversava muito attentamente com o distincto professor e causidico michae- lense, o sr. dr. Aristides Motta, que, n'esses momentos, unicamente o acompanhava.

Olhando-me, reconheceu-me logo ! Apertámos as mãos. Dada a explicação da minha estada alli e ouvindo-lhe a de que ia regressar ao continente, afastei-me para que prose- guissem na conversação interrompida por minha causa.

Pouco depois, o paquete lavantaVa ferro e de novo apertámos as mãos.

No Verão de 1890, fui viver para o Porto.

Um amigo muito querido, que accidentalmente ali se encontrava, disse-me um dia que ia a Villa do Conde visi- tar um parente. Disse-lhe que o acompanhava para visitar Anthero de Quental.

Chegado lá, foi mostrar-me a casa do poeta e commigo entrou n'ella o digno juiz da comarca, antigo condiscípulo de Anthero, o sr. dr. Manoel Alves da Silva, hoje juiz de segunda instancia aposentado.

Recebeu-me com a sua grande e doce bondade. Fal- lando-lhe da sua encantadora ilha, disse-me que breve para iria e definitivamente.

«As minhas pupilas acrescentou completaram a •^sua educação; e por isso não tenho que fazer no «^^ continente. Julgo o meio da minha terra mais adequado «para ellas.»

Sancta alma ! As suas pupilas eram as duas filhas ille- gitimas de Germano Vieira Meyrellesl Nasceu uma depois de morto o pae.

Alberto Sampaio tratou de prover á subsistência da mãe e levou a menina, que era nascida, para a sua com- panhia. Mas Anthero disputou-lha. Não cedeu, e tomou conta de ambas! Creou-as, educou-as como suas filhas! Legou-lhes a maior parte dos seus modestos haveres!

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Que belleza moral a d'estes dois homens!

Morto o amigo, não disputam a successão dos seus bens, dos seus direitos ou interesses, como é commum e todos os dias se !

Disputam substituil-o nos onerosos encargos e obriga- ções de pae!

Disputam a entrega de duas pobres creanças, que teem por si uma mãe desvalida e sem nome, que elles protegem até á sua morte!

Que lealdade de affectos prolongada além da vida e até taes extremos!

Que raro exemplo moral d'essa lealdade dado a tanta gente, que engeita as obrigações do sangue; ou se serve dos laços doeste para melhor occultar a hypocrisia dos affe- ctos e perfidamente effectivar a traição d'elles e os abusos da boa-fé!

Sahindo de casa do poeta, poucos passos andados, encontrei-me com o amigo, que me tinha acompanhado do Porto a Villa do Conde, o qual era funccionario distinctis- simo em Ponta Delgada, com talento, coração e alma, que o tornavam um grande admirador de Anthero.

Ambos lastimámos a resolução d'este !

Mal pensávamos, inda assim, que, volvido pouco mais de um anno, os nossos tristes receios se haviam de cum- prir e que elle, com a sua palavra, elegante e sentida, seria um dos que, junto da sepultura aberta para receber o corpo inanimado de Anthero de Quental, em nome de tantos admiradores ausentes, lhe havia de dizer o ultimo adeus (1).

(1) Tem nota.

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E mal pensava eu então que esse amigo querido, mais breve do que eu podia suspeitar, havia também, não longe da sepultura do poeta, dormir o somno eterno n'esse triste cemitério de S. Joaquim !

Anthero de Quental, 1887

Para a campa de Anthero escreveu Joào Deus o único epitaphio, que era digno delle:

Aqui ... jaz po ; eu não ; eu sou quem fui Raio animado de uma luz celeste, Á qual a morte as almas restitue, Restituindo á terra o que as veste.

NOTA 1." Cartas de Alberto Sampaio e Anthero de Quental

/mo ^ X^ Uy^-^L^^ e,^,.^.cj^y^^^^j^ ^i^-^ '^'--^ t>-,-^^ y ít-»^ cx^£~ í>^-<- .

112

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113

NOTA 2.

Rodrigo Velloso

Este era o redactor do Attila, a quem Anthero dirigiu a carta de 6 de fevereiro de 1864 e pediu a publicação dos versos a Erme- linda.

Fundador e redactor do Phosphoro, do Tira-Teimas e do Attila, auctor de um livro, n'essa epocha publicado, que tem o titulo de Folhas ao Vento, Rodrigo Velloso era um rapaz de muito talento, illustração, graça e espirito, como revelou em todas essas publicações.

Nosso adversário nas questões académicas em que andamos empe- nhados, isso o afastava da nossa con- vivência, mas foi sempre e inalte- ravelmente um grande admirador de Anthero e um dos que depois mais fez pela gloria do seu nome, repro- duzindo-lhe os escriptos dos tempos académicos na sua interessante Bi- bliotheca da Aurora do Cavado.

Estudante, advogado, notário, nunca deixou de ser periodista!

Teve sempre um jornal seu! Em Coimbra fundou e redigiu aquelles três jornaes litterarios. Depois de sa- hir de Coimbra, e ainda vivendo em Lisboa, manteve sempre a Aurora do Cavado, de Barcellos, e o Boletim

Notarial e Forense, sustentados á custa de muitos sacrifícios, e que são repositório interessantíssimo da sua grande illustração e das suas qualidades affectivas.

Distinguindo-se por notáveis aptidões e por dotes de palavra, como orador forense, tinha, como máxima qualidade, a bondade!

Esta e a terrível doença de uma impenetrável surdez lhe causa- ram as maiores difficuldades da sua Vida, que não foi prospera e bri- lhante, como elle merecia por talento e virtudes.

Trabalhou e amou as lettras até á ultima hora da sua existência.

Teve a paixão dos livros! Sacrificava-lhes tudo: até a sua pró- pria subsistência e a da sua virtuosa família!

Rodrigo Velloso

114

A sua enorme livraria, ein que empregou muito mais de uma dezena de contos de réis ahi se tem vendido ao desbarato!

Ao que escreve estas linhas consagrou, desde os dias da moci- dade até aos últimos da sua Vida, a mais affectuosa e leal amisade!

Foi um bom, um trabalhador e um crente!

Todos os que o poderam conhecer prestam o merecido culto á sua nobre e honrada memoria!

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NOTA 3/

Júlio Pereira de Carvalho e Costa

Este era o amigo, que me acompanhou a Villa do Conde, e que, com a commoção, que em carta me traduziu, foi um dos que disse o ultimo adeus a Anthero de Quental, em nome de tantos amigos e admira- dores ausentes.

E ninguém tinlia mais qualidades para ser o interprete de todos nós!

Era homem de excepcionaes fa- culdades! Procurador régio juncto da Relação de Ponta Delgada, magis- trado integro e de grande illustra- ção; jurisconsulto; orador; jornalista; amante da poesia e da musica; cultor delicado da pintura; alma de artista, alma nobilissima; coração apaixonado do bem e do bello, e que não o po- dia haver melhor!

Tendo, por mais de uma vêz, per- corrido as pr inci pães cidades da Europa , tinha a lição dos livros e das viagens.

Natural de Aveiro, patricio de José Estevão, uma das suas pai- xões era o culto pela memoria do grande orador.

jaz, perto de Anthero, no mesmo cemitério de S. Joaquim !

Júlio Pereira de Carvalho e Costa

Là, tu reposes, toi ! meurt toute voix fausse. Chaque jour du levant an couchant, sur ta fosse,

Promenant son flambeau, L' impartial soleil, pareil à Tespérance, Dore des deux côtés, sans choix ni préférence,

La croix de ton tombeau! (1)

(1) Victor Huoo, Les Voix Iníérieures.

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NOTA 4:

Esta nota volta atraz ! Retrocede ! Mas eu não poderia antepor a sua matéria á das precedentes.

É-nie desagradável o que tenho a dizer n'ella. Mas, tendo tra- tado da vida de Antliero em Coimbra ; tendo falado do circulo de amigos, que a elle estiveram ligados por um reciproco e grande affecto, não me soffre o animo deixar em pé, e sem refutação, umas bem desastradas affirmaçòes, que se encontram em um artigo do In Memoriam (pag. 152 a pag. 155).

Tal artigo, a alguns repeitos, interessante e escripto por pessoa intelligente, talvez porque, no largo decurso dos annos, a phantasia toma, muitas vezes, na memoria o logar da verdade ; e também por- que o escriptor se deixou dominar por um pensamento de deprimir, em vêz de ferir aquelles a quem quiz visar, ferio a própria sagrada memoria do amigo illustre, que queria glorificar!

Que cousas tão extraordinariamente incríveis ahi se lêem !

Diz-se que a attitude de Anthero e as palavras por elle pro- feridas na assemblea geral da Academia, e que levaram esta, por occasião da Rolinada, a sahir de Coimbra e partir para o Porto, obedeceram a uma troça, combinada com o auctor do artigo, e a um premeditado desforço de Anthero contra os estudantes, contra os idiotas (diz que assim lhes chamou), que estavam apaixonadamente empenhados na questão levantada pelo indeferimento do pedido de perdão do acto em portaria do Duque de Loulé, que foi julgada grosseira e offensiva da dignidade e brios da mocidade academico- conimbricense d'essa epocha.

Diz-se ainda que Anthero, chegado do Bussaco, acompanhado de António de Azevedo Castello-Branco, Filomeno da Camará e do auctor do artigo, vendo Vieira de Castro a perorar a um grupo, no Arco de Almedina, se lembrou de fazer a partida (aos idiotas) e de pre- parar o guet-apens (que outra cousa não era) ! Que dirígindo-se ao orador do Arco de Almedina lhe dissera : «esqueçamos antigas inimi- sades; pode contar commigo, que ponho á sua disposição tresentos homens e outras tantas claoinas, o que fêz com que Vieira de Cas- tro, acreditando, lhe cahisse nos braços. >

E que, indo depois á reunião da Academia, os três viajantes do Bussaco fizeram produzir a deliberação do êxodo portuense!

Tanto teria de admirar-se a pacovice de Vieira de Castro como a

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falta de respeito por si próprio, em Anthero, depois da recente carta ao redactor do Attla, a que se cliama antigas inimisades ! Estava-se em fins de abril. A carta tem a data de 6 de fevereiro (pag. 100) ! Uma antiguidade de dois mezes e tanto ! !

Quem conheceu Anthero para logo repelle a phantasia ! Ninguém no mundo mais incapaz do papel, que lhe é attribuido !

Como é que aquelle (quero agora empregar as altas e nobres palavras de Eça de Queiroz) que foi refulgente espelho de sinceridade e rectidão ; como é que quem possuia aquella alma, de nascença toda límpida e branca, que quando Deus a recebeu, a encontrou tão lím- pida e tão branca como lh'a entregara; como é que quem tinha aquella lealdade magnifica, que resplandecia nos seus olhos claros como uma luz ás porias de um sacrário.. . podia, premeditadamente, traiçoeiramente, pelo prazer satânico de amesquinhar, 'querer Tevar a um despenhadeiro moral - perigosíssimo para o futuro d'elles tantos companheiros, que lhe consagravam a dedicação mais sincera e uma admiração incondicional e apaixonada?!

Não! Não é verdade!

Faz-se referencia, no logar citado, a António de Azevedo Cas- tello Branco !

Interroguei, ha annos, sobre essa referencia, este meu compa- nheiro de cinco annos nas mesmas aulas, este velho amigo, este poeta de bondoso coração e nobre caracter. Não a confirmou !

Poderia dispensar-me de nada mais dizer !

Mas, tratando-se de um passo tão importante na vida de Anthero, em Coimbra; e tendo, ha annos, escripto uns insignificantes artigos, em que procurei fazer a historia do êxodo académico da Rolinada, vou reproduzir aqui uma parte do que então escrevi :

«As tropas, que estavam em Coimbra, foram ainda julgadas insuf- ficientes. Vieram mais tropas de Vizeu. Para o edifício dos Loyos, sede do governo civil, além da guarda de infantaria, que estava, foram mandados vir não sei quantos soldados de cavallaria, o que ia motivando um conflicto com estudantes, que, se não se tornou gravís- simo, foi única e exclusivamente devido á prudência dos soldados.

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D'ahi a ira e o cumulo da indignação!

Coimbra tinha realmente tomado o aspecto d'um acampamento militar. Nova convocação da assembleia geral.

Era ao anoitecer. O que escreve estas linhas, um dos mais frios e indifferentes a esse movimento, assim como quasi todos os rapa- zes, com quem convivia, resolveu ir a essa assembleia como simples curioso. Não costumava perder taes espectáculos!

A uma das portas do Theatro Académico, onde a assembleia ia reunir-se. não á porta principal, mas á da entrada para os camarotes, encontrou-se com o seu querido condiscípulo José da Cunha Sampaio e com Anthero de Quental, (então no 5." anno de direito), que iam nas mesmas disposições de espirito.

Anthero era então um triste; era victima da doença, que lhe havia de dar tão desgraçada e trágica morte: e, por estas e outras razões, completamente alheio ao que se passava na Academia.

Approximava-se o momento de começar a reunião. A porta do theatro, que dava entrada para os camarotes, abriu-se.

Anthero seguiu com outros rapazes pelo corredor do lado direito, e foi tomar logar no camarote que ficava por cima da porta prin- cipal.

X"esse mesmo camarote, onde dois annos antes, isto é, em outu- bro de 1862, em uma noite memorável, havia entrado para receber um aperto de mão do Principe Humberto, depois Rei de Itália, felici- tando-o e agradecendo-lhe a sua bella poesia, distribuída e recitada n'essa noite.

José Sampaio e o que escreve estas linhas entramos n'um cama- rote próximo da porta, no que ficava ao lado direito do camarote do Conselho da Academia Dramática.

Falaram diversos oradores (1). A assembleia debatia-se em pro- testos contra a desfeita e a violência de accumular tropas em Coim- bra contra rapazes briosos e inermes.

Estávamos diziam, sob o regimen do terror e daoppressão! Sob a ameaça das baionetas !

Mas não se chegava a nenhuma conclusão! De pedir ao duque e ao governo que fizesse retirar as tropas, para nos ser agradável, ninguém se lembrava!

Também nenhuma cabeça douda apesar de haver muitas

(1) Vieira de Castro não faiou n'e3sa reunião. Tinha falado na que houve de manhã. Morando na cidade baixa, no Hotel do Mondego não teve decerto conhecimento d'ella, a tempo de poder assistir.

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alvitrou que fossemos atacar os quartéis e repeliir para fora da cidade as forças militares, que o Duque de Loulé tinha mandado vir para nos offender, para nos opprimir, talvez, diziam, para nos fuzilar!

Nenhuma solução!

De repente ouviu-se a voz de Anthero de Quental peàh a palavra.

José Sampaio estremeceu; e, tocando-me, disse: o que irá fazer o Anthero.'?

Anthero não era orador!

Mas o que elle era, incontestavelmente, era a águia de toda aquella reunião!

A Águia bateu as azas e ia soltar o grito estridente!

Soltou-o!

Aquella multidão de rapazes aqueceu-o! A sua impressionabili- dade de poeta commoveu-se!

Tomou-o !

Approximando-se da borda do camarote, estendendo o corpo, e, sacudindo a sua bella cabeça ornada de cabellos loiros, disse, com voz sonora, que resoou por todo o theatro, pouco mais ou menos,- o seguinte:

«Quem não fôr digno, quem se sentir com disposições para escra- «Vo, fica e vae ás aulas, sob a ameaça das bayonetas!

«Quem tiver no peito um coração de homem livre, volta as costas «ao militarismo e sae de Coimbra! E vae para onde? Para a terra, «que foi berço da liberdade portugueza; vae para o Porto!»

Toda a assembleia, como um homem, se levantou, gritando:

Ao Porto ! Ao Porto I

Amanhã para o Porto !

Na manhã do dia seguinte, das 6 para as 7 horas, uma parte da academia sahia de Coimbra, em comboio especial até Ovar.

De tarde seguiu o resto.

Fui um d'estes.

Os que estavam em Ovar e haviam acclamado por chefe a Fer- nando Rocha um rapaz açoriano muito talentoso e sympathico aguardavam anciosos a nossa chegada, incertos do numero que iria reunir-se-lhes.

Esse encontro foi commovente e delirante.

Pouco depois partíamos todos para o Porto, onde chegávamos de noite.

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Ainda mais duas linhas sobre o citado artigo do In Memoriam.

Diz-se que, depois da demissão do Reitor, Anthero, abandonando a direcção da Sociedade do Raio, <'esta, sob a influencia dos seus successores') se transformou em uma succursal da ^maçonaria portu- gueza», passando a servir de elemento eleitoral aos lentes da Uni- versidade (pag. 152)!

Não é verdade que a Sociedade do Raio subsistisse sem Anthero. Depois do acto de 8 de dezembro, da publicação do manifesto ao paiz e da demissão do reitor, a sociedade ficou sem objecto e dissolveu-se por si !

Quanto a servir de elemento eleitoral aos lentes, uma imagina- ção muito fértil podia descobrir o valor da nossa importância e influen- cia eleitoral, em Coimbra, n'essa epocha !

Não é preciso mais!

Quiz por certo o escriptor referir-se, mas com grande desconheci- mento, a outra sociedade, que coexistiu com o Raio, e do pensamento do qual Anthero foi o primeiro executor dando-lhe até o nome. Medi- tou e formulou para ella um largo programma de reformas, de que nós, pobres rapazes, seriamos os porta-estandartes !

Veiu-lhe depois o desalento, dizendo como por vezes lhe ouvi : Que sem não sabia trabalhar ! Ahi ficaram porém os seus três companheiros de casa. com os quaes esteve sempre na mais intima communhão de pensamentos e vontades.

Sobre a origem e existência d'essa sociedade escreveu larga e minuciosamente, com os escrúpulos de verdade que o distinguiram, em 1868, no Coimbricence, o honrado investigador yoa<7«/m Martins de Carvalho e reproduziu depois uma parte de que tinha escrito n'aquelle anno no seu livro Apontamentos para a Historia Contem- porânea .

Fernando Rocha

Fernando Rocha foi dos três meus condiscípulos, que faziam parte da commissão académica, eleita no Theatro Baqiiet (1), aquelle com quem, por menos tempo, vivi. Mas nem por isso a nossa amizade creou menos fundas raízes.

bacharel formado em. philosophia, onde havia sido estudante muito distincto e pre- miado, não levou seguidamente o curso de direito. Por mais de uma vez o interrompeu, fa- zendo distincta figura em am- bas as faculdades.

Veio adventício para o meu curso. Passou por elle como

um metheoro, espalhando, entre nós, muita luz de talento e de sympathia !

Todos o estimávamos e admirávamos, como elle tanto merecia.

Fernando Rocha

Pela mobilidade do seu rosto, illuminado pelo brilho dos seus olhos claros, e pelo império dos seus nervos, tão

(1) Foi este escripto destinado a uma nota para a compilação dos artigos sobre a Rolinada.

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sensíveis e vibrateis, era o homem mais incapaz de occul- tar o que pensava e sentia ! E elle iucraVa em que os seus amigos podessem ler o que estaVa no seu coração e na sua alma ! Foi sempre um impulsivo, mas impulsivo para o bem !

Tinha grandes qualidades de orador e de tribuno !

Paliando na celebre reunião, effectuada no Theatro Baquet, o seu discurso e o de Oliveira Valle que dis- punha de uma palavra elegante e original obtiveram, na imprensa do Porto (que nos era hostil), os maiores elo- gios, prophetisando aos dois talentosos rapases um bri- lhante futurou

Infelizmente, não teve, fora, o futuro, que todos lhe prediziam !

Com notáveis dotes de intelligencia e de palavra, muito coração e muita imaginação, prejudicaram-no aquelle e esta!

Não traçando, desde logo, segura e praticamente, a sua carreira, entrou, cortado de desenganos, na ma- gistratura.

Deram-lhe, pouco depois do primeiro despacho, uma delegacia em Lisboa.

Era o reconhecimento das suas distinctas aptidões e o campo onde ellas iam maniíestar-se e recommenda-lo para um mais fácil accesso. ou mais remunerados cargos.

Parecia ter entrado no caminho da boa fortuna.

Mas a infelicidade perseguia-o. Veio a doença, uma ter- rível doença nervosa, a cruel neurasthenia que tem sido o torturante mal de tantos da sua geração ! cortar essas esperanças. Foi obrigado a abandonar os tribunaes da ca- pital e a ir procurar socêgo para o seu espírito na obscura comarca de Villa Franca de Xira !

Crearam-se os tribunaes administrativos. Coube-lhe a . promoção.

Foi nomeado presidente do de Angra do Heroísmo, sua terra natal.

Ahi servia, quando eu, desde 1887 a 1890, residi em Ponta Delgada.

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Depois de Coimbra, apenas, muito de passagem, ha- viamos tido um rápido encontro na Arcada.

Uns quinze annos depois, viviamos em ilhas próximas. Por amigos communs tínhamos trocado lembranças.

Mas, em 1890, antes de sahir definitivamente da Ilha de S. Miguel, quiz eu ver algumas das outras ilhas do for- moso archipelago. No paquete, que me havia de trazer ao continente, embarquei para a Ilha Terceira e para a Ilha do Faval.

Não resisto a descrever aqui o meu encontro com o pobre Fernando, em uma audiência publica.

Porque não hei-de conta-lo?

Nenhum homem deve envergonhar-se de ter coração! Não fica mal a juizes mostrar que o tem!

Julgar o contrario leva a muitas vaidades e inconcebí- veis erros!

Tanto os juizes como quem para elles legislar, ou quem tiver de aprecia-los e julga-los, deve ter sempre pre- sente aquella sentença do sábio Pascal, que diz assim:

Uhomme rCest ni ange ni bete; et le malheur est que qui veut faire Vange fait la bete!

Vou, pois, contar a forma d'esse encontro com o meu talentoso companheiro dos bancos escolares.

Fica-se conhecendo!

Vê-se como o fogo dos affectos ardia n'aquelle cora- ção! E em edade, em que o de muitos costuma estar ge- lado!

Chegado ao hotel, em Angra do Heroísmo, preparan- do-me para sahir, pedi que algum guia me acompanhasse para me indicar a casa de Fernando Rocha.

Informaram-me que, n'aquella hora, não estaria em

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casa, mas no tribunal, que era ali muito perto. Fizeram- me a indicação.

Melhor. Mais certo o tinha.

Dirigi-me ao tribunal e entrei. O juiz presidia, de beca, a uma audiência ordinária. Tinha em frente os escrivães e ao lado o delegado, que era o dr. Domingos Ribeiro Vieira, magistrado muito digno, que é hoje juiz de direito, creio que da comarca de Sabugal.

Achei-me em frente do meu antigo condiscípulo. Era bem elie. Todo elle! A mesma voz, a mesma mobilidade de gesto e de phisionomia. os cabellos é que não eram de um louro escuro, como em Coimbra! Estavam brancos!

Entrando, fiz-lhe a minha vénia respeitosa. Ficou indif- ferente. Não me reconheceu!

Sentei-me entre alguma gente do poVo, que assistia á audiência. Mas, passados momentos, lembrou-me que eu tinha qualidade para entrar para dentro da teia do tribunal.

Senti também no coração a exigência de o pôr em communicação com aquelle outro coração amigo, que ali se encontrava!

Peguei em um meu cartão, e mandei, pelo official de diligencias, entrega-lo ao presidente do tribunal. Esperava que este me convidasse a sentar-me, dentro, em outro logar.

Mas-, lendo o meu cartão, começou a mover-se em in- quietação nervosa! A sua luneta de myope, presa por um cordão, como sempre usou, dava-lhe saltos no pescoço!

De repente disse: está interrompida a audiência por dez minutos! E, descendo, rápido, da cadeira, dirigiu-se para mim e começou a abraçar-me effusivamente!

No meio do pasmo de toda aquella gente, que não sa- bia quem eu era!

Levou-me para o seu gabinete, onde, a esforços meus, não prolongou os dez minutos, e foi continuar a audiência!

Terminada esta, nunca mais me dei?«:ou. Levou-me a sua casa. Apresentou-me á sua digna e bondosa esposa, a Senhora D. Maria da Silva Baptista Rocha, a sua formosa companheira de Coimbra, pois com ella casara nas ferias

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do terceiro anno. Conservava ainda muitos traços da sua belleza dessa época !

No dia seguinte, deu-me um jantar, festa muito cor- deal, de que conservo a mais grata lembrança.

Depois frequentemente me escrevia para o Porto.

O seu pensamento era vir para uma comarca do con- tinente, em que pudesse estar em contacto com os seus antigos amigos; e delia acompanhar a educação de seu filho, hoje distincto professor no Lyceu Camões, o meu presado amigo, Dr. Arthur Fernando Rocha, herdeiro do nome e de muitas das distinctas qualidades de seu pae.

Com o seu talento, o seu coração e a sua imaginação, Fernando Rocha era, como não podia deixar de ser, um poeta. Escreveu versos, que queimou. Di-lo em umas paginas intimas de conselhos a seu filho, nas quaes appa- recem retratadas a belleza da sua alma e a nobreza do seu coração.

Escaparam, porém, uns Versos, escriptos na Ilha do Pico, no ultimo periodo da sua vida, e que revelam o fogo da sua inspiração.

Era amigo dedicadíssimo e admirador apaixonado de Anthero de Quental.

Quando este, em 1887 esteve em S. Miguel, foi fazer- !he uma Visita a Angra do Heroísmo e foi seu hospede durante um mêz.

A morte de Anthero produziu em Fernando Rocha um grande abalo moral. Talvez uma terrível suggestão! . . .

A adversidade, que foi sempre cruel para com elle, ia vibrar-lhe o mais tremendo golpe!

Morreu-lhe a esposa, a sua companheira querida!

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Custou-lhe a resistir. Consolou-o um netinho, filho da sua distincta filha, a Ex."'« Senhora D. Maria do Carmo da Rocha Coelho Borges.

A perseguição, porém, da adversidade continuava. Essa creança morreu também!

Isolado na ilha do Pico, em cuja comarca foi collocado pela extinção dos tribunaes administrativos, não resistiu.

O mar, o mar, tempestuoso como o seu peito, at- trahiu-o ! elle, o mar, egualava as perturbações, que lhe agitavam a alma!

Foi no triste dia 13 de outubro de 1892.

Abraçou-se com o mar. . . e desappareceu !

Tão nobre, tão distincto, tão infeliz !

José Luciano de Castro

Estudante de direito. Advogado no Porto. Jurisconsulto (1)

Foi em 1890, depois de elle haVer deixado de ser mi- nistro, que, pela primeira Vez, falei com o sr. José Luciano

de Castro.

Terminado que foi o meu serviço judicial ultramarino, sendo collocado na Relação dos Açores, servia nella

(1) Artigo de colaboração para o numero da revista jurídica O Z)/mro -publicado em homenagem á memoria do seu fundador.

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quando o illustre homem de estado, então presidente do conselho e ministro do reino de quem me julgava intei- ramente desconhecido , por intermédio de um amigo commum, se dignou convidar-me a acceitar um cargo de governador civil com plena liberdade de abstenção de poli- tica, como aconselhavam as circumstancias do districto que me destinava, e com o encargo de manter a ordem pública e fazer administração.

Declinei o convite. Era esse o dever.

Por um lado, elle se baseava em um erro, que era o da minha aptidão para cargos de tal natureza, quando era absoluta a minha inaptidão e incapacidade para elles; e, por outro, a firme resolução formada de não militar na politica dos partidos, tomando uma posição, que eu não saberia conciliar com os melindres da minha situação de juiz e profissão de magistrado, pois que, pela falta de qualidades de adaptação, sem vantagem pública ou pes- soal, isso podia tirar-me auctoridade e deslustrar a fun- ção a que tinha votado a minha vida.

Teve ainda para commigo a benevolência, por essa época, de querer conferir-me a mercê honorifica da carta de conselho. Também me escusei a acceita-la.

Mas, transferido para a Relação do Porto, passando por Lisboa, impunha-se-me a obrigação de ir agradecer- Ihe as demonstrações de confiança e de consideração com que tinha querido galardoar-me!

Datam dahi as relações de amizade, com que honrou, não um politico, não um partidário, porque me havia recu- sado a sê-lo, mas o magistrado, mas o sacerdote da jus- tiça, que procurava servi-la com amor e cuidado.

E' que elle tinha o culto do direito. Amava a sciencia do justo, e era grande o seu pendor e sympathia pelos que a professavam.

Receando ser importuno no meio da assistência de políticos, que muito constantemente o cercavam, foram

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mais as vezes, em que, cumprindo deveres de delicadeza, fui á sua porta, do que aquellas em que tive a hionra de entrar na sua casa.

Mas, sempre que lhe falei, encontrei a mais aberta lhaneza e a mais despretenciosa cordealidade : e a veia abundantissima da sua palavra se desentranhava e larga- mente comprazia na narração e apreciação de pessoas e cousas do foro, dos tempos presentes e dos tempos pas- sados; figuras de juizes e figuras de advogados; casos da sua vida de advogado; reformas de justiça; historia de códigos e leis; incidentes da sua discussão; Índole de tri- bunaes e jurisprudência destes !

Desaparecia o politico e ficava o jurisconsulto, que o era eminente e muito illustre!

Nascido em 14 de Dezembro de 1834, quando concluiu a sua formatura, em 1854, ainda não tinha completado vinte annos, o que era, e é, muito raro !

Quando em 1849, iniciando os seus estudos jurídicos, passou e repassou a porta férrea, efectivando aquelle Verso do Garrett qne aqui não posso escrever, ainda não tinha quinze annos!

Era o mais novo dos estudantes do seu curso, que foi notabilissimo pela distinção dos mancebos e pelas grandes e esparançosas inteligências, que n'elle brilhavam !

Todos os que frequentámos a Universidade em outros tempos (que não nos actuaes, em que não ha annos certos

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de frequência, nem cursos e ha estudantes in ahsentia) sabemos bem que o nosso curso era a nossa família aca- démica! Sabemos os laços fraternos, que ligavam aquel- les que, durante cinco annos, entraram nas mesmas aulas, se sentaram nos mesmos bancos, leram os mesmos livros, estudaram as mesmas lições e ouviram a vóz dos mesmos professores!

União de pensamentos de que nascia a união dos cora- ções ! Reciproca educação dos espiritos, reciproca educa- ção dos sentimentos !

Durante a épocha dos actos, que vivo interesse pelos exames alheios! Quantos receios de perder algum com- panheiro querido! Quanta magua, se isso succedia! Ou quanta alegria, se triumphaVa e proseguia para diante comnosco na mesma jornada litteraria!

Recordações para toda a vida! Mutuo auxilio n'ella^ mutua protecção! Quantas vezes transmittida aos descen- dentes, e até por estes desconhecida !

Pois esse curso de 1849 a 1854 foi, como dissemos, distincto e notabilissimo !

N'elle havia três pares de irmãos, procedentes de famí- lias nobres e casas vinculares!

Três morgados e três secundo-genitos. Seis garbosos rapazes! Muito intelligentes, muito distinctos, muito gentis!

Eram os irmãos Castros (Francisco e José Luciano), de Aveiro'; os irmãos Mimosos (João e José), de Ponte de Lima; e os irmãos Queirozes (Gaspar e José), de Arcos de Val-de-Vez.

Tendo convivido com estes últimos desde os meus primeiros annos, tive occasião de lhes ouvir repetidamente apreciar muitos dos seus .companheiros de estudo, que depois, mais ou menos, vim a conhecer no futuro.

O mais galardoado nos louros académicos era Augusto Cesqr Barjona de Freitas, cujo brilho de talento desde logo se assignalou; e em quem admirei como meu pro- fessor em mais de um anno a rara agudeza de inteligên- cia, reunida a uma rara fluência e encanto de palavra, que irresistivelmente prendia aos seus lábios a attenção dos

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seus alumnos ! E estes foram os seus méritos de professor excepcional.

Tinha este por emulo Carlos Ramiro Coutinho, fogoso orador das assembiéas académicas, estudante de grande prestigio na academia, redactor n'essa época do jornal Echo dos Operários , talento notável, que, pelo brilho e pela rapidez, passou, como uma estrella cadente, pelo foro, pelo parlamento e pelo funccionalismo, em que, desde logo, subiu ao desempenho do alto cargo de Pro- curador Geral da Fazenda. Tem honrosa biographia escri- pta pela penna litteraria tão illustre de Camillo, onde o genial escriptor diz que «estes dois mancebos (Barjona e «Ramiro Coutinho) por tal modo hombreaVam no direito «ás distincções, que houve então parcialidades academi- «cas, ambas concordes no respeito aos dois talentos, mas «ciosas da primasia do seu escolhido : e, como quer que «fosse, o característico assignalamente distincto dos dois «era perspicuidade na percepção, subtileza critica, e, sobre «tudo, verbosidade elegante.»

E quem eram os outros condiscípulos? Eram:

Joaquim Januário de Sousa Torres e Almeida, bra- carense distinctissimo, intelligencia brilhante, jurisconsulto illustre, parlamentar de palavra elegante e eloquente, que a morte cedo arrebatou ao largo futuro que o esperava!

António Alves da Fonseca, lúcido espirito, advogado inteligentíssimo, grande orador forense.

José Ribeiro Perry, grande juiz e útil escriptor de direito, bem cedo roubado pela morte á magistratura, que muito enaltecia e honrava!

Joaquim Maria da Silva, (terceirense) inteligência superior, que, sendo ainda estudante, escreveu e publicou o notável opúsculo Federação Ibérica ou Ideias Ge- raes sobre o que convém ao Futuro da Península. Por um português. E logo depois (1857) a clássica tradução da Educação das Mães de Familia, o precioso livro de Aimé Martin, por causa do qual travou polemica, no jor- nal O Portuguez, com o redactor do Bem Publico,]. M. de Sousa Monteiro, adversário terrível, mas que não pôde

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Vencer o polemista com quem luctou! É o traductor do Chaterton, de Alfredo de Vigny. É o auctor dos Estudos de Philosophia Racional, que Alexandre Herculano fez publicar nas Memorias da Academia Real das Sciencias e valeram ao auctor as palmas académicas, a que a sua modéstia se não pôde eximir.

É o futuro auctor do opúsculo O Imposto, disserta- ção para o concurso da cadeira de economia politica da Escola Polytechnica.

Honra do professorado e honra da advocacia! Fallecido ultimamente em Santarém (50 de Setembro de 1915) par- tiu para as regiões do Além poucos mezes antes do seu camarada universitário!

Henrique da Gama Barros (felizmente vivo), um dos mais novos, formado aos vinte e um annos.

Entrando na Vida administrativa pelo modesto logar de administrador de Cintra, em breve confirmou os créditos, que tinha em Coimbra, mostrando a pujança do seu Valor intellectual e capacidade de estudo na então muito importante obra Repertório Administrativo, deducção alphabetica do código de 1842 e de toda a legislação correlativa até 1860, com que se recommendou para os cargos superiores de secretario geral do governo civil de Lisboa, governador civil, vogal e presidente do tribunal de contas, entregando-se então a profundos e altos estu- dos, que o tornam o sábio auctor d'essa obra monumen- tal, em dois volumes, publicados e um terceiro em pu- blicação, e que se \x\W\\x\di Historia da Administração Publica em Portugal dos Séculos XII a XV.

António Pereira Telles de Vasconcellos, que foi par- lamentar, juiz do supremo tribunal administrativo, presi- dente da Camará dos Pares e Ministro da Justiça.

José Affonso Botelho de Andrade da Camará (mi- chaelense) litterato, poeta, prosador elegante e purista, fanático camonianista, cujo nome chegou lembrado á mi- nha geração, porque, tendo soffrido uns dias de detenção académica, foi o protagonista da engraçadissima parodia do Tasso no Hospital dos Doudos, de Rodrigues Cordeiro.

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João Cândido Furtado d' Antas, o honestissimo ma- gistrado superior, musico e poeta, cuja musa, ora senti- mental, ora galhofeira e satyrica, o acompanhou na sua Vida de juiz. Os seus versos, passando de banco para banco, aligeiravam as horas das aulas, sendo alguns d'el- les ainda apreciados pelas gerações académicas, que suc- cederam á sua.

_Um outro poeta havia no curso. Um grande poeta! Esse tinha em si a faisca do génio e o fogo da divina ins- piração! Foi o mais sublime representante do lyrismo sentimental da sua épocha!

Os seus versos, sempre harmoniosos como os trilos dos rouxinoes do Mondego, são, por vezes, tristes como os gemidos do mar, ou como os echos longínquos das ondas batendo nas penedias!

Era o bardo melancholico do Noivado do Sepulchro! O cantor inspirado do Firmamento, da ode A Camões, dos Anhelos, do Amor e Eternidade, da Vida, do Desalento, da Infância e Morte e de tantas outras pérolas da poesia!

Era António Augusto Soares de Passos, fallecido aos trinta e um annos, no Porto, sua pátria, mas legando á pos- teridade um pequeno livro de ouro, que lhe confere inapaga- Vel e immorredoura floria!

Estes, além de outros (1), também distinctos, foram os companheiros do juvenil estudante de Aveiro, que era o

(1) Este foi também o primeiro curso do divinal artista, cuja for- matura — como elle próprio disse durou tantos annos como di guerra de Tróia! Foi o primeiro curso de João de Deus. Tinha na matricula,

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Bemjamim d'essa familia académica, d'essa tribu então gloriosa!

Foi no convivio d'essa plêiade brilhante de mancebos, de tão grande valor intelectual, cheios de uma ardente mocidade, almas aquecidas no culto da sciencia e no culto do bello, que se desenvolveu e educou o seu espi- rito juvenil!

Dentro das aulas, disse-me a tradição, que procurou sempre desempenhar-se dos seus deveres escolares, hom- breando com o grupo dos melhores, e isso confirmam as distinctas informações literárias, que, no fim da formatura, a faculdade lhe conferiu.

Fora das aulas, disse-me ainda ella, que era estudante de muitos livros! Raros possuíam tantos! Todo o dinheiro, de que podia dispor, o empregava em livros!

E não era o Pegas, nem o Guerreiro, nem o Velasco, nem o Silva á Ordenação, nem o Caldas, nem o nosso Cordeiro como dizia o velho mestre Neiva que elle procurava adquirir, posto soubesse conversar com esses! Eram liVros de idéas modernas e novas! Livros de littera- tura e direito politico!

como se da respectiva pauta d'esse anno, o n.° 62 e José Luciano o n." 24.

Coube ao Sr. José Luciano de Castro, sendo presidente do Con- selho de Ministros e tendo a seu cargo os serviços da Instrucçâo Pu- blica, a honra de ter perfilhado o projecto de Augusto Ribeiro, que foi convertido na Lei de 2 de agosto de 1888, pela qual foi creado o logar de Commissario Geral do methodo de leitura Cartilha Maternal de João de Deus, recahindo a primeira nomeação vitalícia na pessoa do seu auctor, com o vencimento de 900.S000 réis, como diz o artigo 1 ." d'esse diploma legislativo.

Ao acceitar o projecto e referendar a lei, por certo se lembrou o Sr. José Luciano de Castro que não cumpria, como estadista, o dever da pátria para com o seu filho tão illustre, mas que beneficiava também o seu antigo companheiro dos bancos escolares, o que seria grato ao seu coração, que tantas vezes mostrou tê-lo para com outros companheiros d'essa épocha e para os que o auxiliaram nos inicios da sua trabalhosa vida publica. (Nota escripta para este livro).

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E' que a imprensa o tinha namorado e seduzido. E' que o havia empolgado o jornahsmo!

Foi no fim de 1851, quando frequentava o terceiro anno juridico, que publicou o seu primeiro escripto no Observador, jornal fundado em Coimbra, alguns annos antes, para combater a tirania da épocha, e de que era redactor o grande liberal, Agostinho de Moraes Pinto de Almeida, distincto professor da Faculdade de Mathe- matica.

Tinha-se-lhe manifestado a vocação para a vida poli- tica! A febre do jornalismo tinha entrado com elle! Nunca mais havia de abandona-lo!

Frequentava o terceiro anno conta o sr. Marques Gomes , quando, nas férias de Paschoa, recorreu á ter- nura materna e conseguiu que a bondosíssima mãe se des- fizesse de um valioso objecto de ouro, de seu adorno, para lhe dar quinze moedas, com que fundou o Campeão do Vouga, jornal destinado a advogar os interesses da re- gião, e onde. mais á vontade, podia apagar a sede de publicidade patriótica, que o devorava!

Mas nem por isso deixou, alguma vêz, de escrever "também no jornal, onde se havia estreado.

Têm sido reproduzidos artigos seus d'essa épocha.

Um d'esses o foi pelo infatigável fallecido investigador, Joaquim Martins de Carvalho, no Conimbricense, pou- cos annos antes d'essa folha, interessantíssimo repositório de noticias históricas, haver desapparecido.

Causou-me admiração esse artigo pela firmeza da pen- na, manejada por mão, que ainda não tinha vinte annos, e pela elegância e clareza do estylo!

E também pela doutrina! E' uma calorosa e enthusias- tica apologia dos princípios da Revolução Francesa e da sua influencia no mundo!

E sobe de ponto a admiração pensando-se que o juve- nil estudante, que assim prestava enthusiastico culto á liberdade, é o filho de um honrado partidário do regimen absoluto !

E' o filho do procurador da Villa de Eixo, Francisco

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Joaquim de Castro Pereira Corte-Real, que, em 11 de julho de 1828, assigna o assento dos Três Estados do Reino, declarando D. Miguel o único rei e senhor da coroa d'estes reinos! (1)

Como é que, em tão verdes annos, resiste á força da tradição familiar e revela uma tão grande independência de espirito?

Facto digno de registo! Não é como tão frequente- mente succedia n'essa épocha uma conversão, suggerida pelo interesse, aconselhada pelas conveniências praticas da vida.

Não! E' o primeiro amor, que, desde logo, lhe nasce e arde luminosamente no coração pela liberal sincero como a sua edade e ao qual se mantém fiel toda a sua vida!

Como se explica? Como?

Explica-se pela poderosa influencia do meio em que desenvolvia o seu espirito, meio esse que tem sido sem- pre o mesmo, em todas as épochas, e que a estreitesa das paixões e a ignorância da historia têm podido acoimar de meio reaccionário!

Foi ahi, foi n'esse meio académico, onde encontrou a encantadora fonte, em que bebeu as novas ideias e os- nobres estímulos, que lhe mostraram novos horisontes e lhe traçaram e abriram o luminoso caminho do futuro!

Por esse tempo, o estudante de medicina, ex-soldado do batalhão académico e um dos que entraram em fogo no combate sangrento do Alto do Viso, João António dos Santos e Silva, brilhante escriptor e brilhante orador, pu- blicava o seu noíabilissimo opúsculo, ultra-liberal e demo-

(1) Doe. para a Historia das Cortes Qeraes da Nação Portugueza pelo Barão de S. Clemente, Tom. 4." pag. 799.

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cratico, que se intitula Revista Histórica Politica de Portugal, desde o ministério do Marquez de Pombal ate 1842, precedida de uma Introducção socialista, egualmente eloquente, escripta pelo estudante Carlos Ramiro Coutinho.

O periodo académico, em que decorrem os estudos do descendente da casa de Fijó, neto do Capitão-Mór de Feira e dos morgados da Oliveirinha, é um periodo de grande effervescencia liberal e de nobres aspirações politicas e sociaes.

Estava recente a lembrança da revolução de 1848, em França, cuja influencia alastrou pela Europa, e recentes também as recordações da revolução popular em Portugal..

A nobre figura politica e litteraria de Affonso de La- martine ainda encantava, annos depois, os estudantes do meu tempo!

A sua prosa attrahia tanto como os seus versos! Não- liamos as Meditações e as Confidencias, caridosas leituras para corações de dezaseis e dezasete annos! De- vorávamos a Historia da Revolução de 1848, narração de acontecimentos, que eram dos nossos dias, e em que figuravam personagens, que estavam Vivas. Essa nos con- vidava e conduzia á leitura da Historia dos Girondinos; e para logo as nossas almas ficavam alumiadas e tempe- radas no fogo da Revolução.

Quando, em 1849, José Luciano começou a frequentar a Universidade, frequentavam-na também quasi todos os soldados do batalhão académico, que militaram na divisão do Conde das Antas, os quaes haviam feito, sob a mais severa disciplina, depois da batalha de Torres Vedras, a tormentosa retirada para o Porto, e muitos dos quaes, indo na expedição de da Bandeira, heroicamente se- bateram no combate do Alto do Vizo e n'elle viram cahir prostrados para sempre quatro dos seus companheiros de armas e de estudos! (1)

(1) Além dos quatro mortos, houve oito estudantes feridos no combate de 1 de maio de 1847.

Ainda é felizmente vivo um d'esses combatentes, que tinha no.

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No anno anterior, quando elle por certo estudava em 'Coimbra para fazer os seus exames preparatórios, que podiam ser feitos, tinha havido a debatida questão das exéquias, que a academia quiz celebrar suffragando as almas dos quatro estudantes, martyres heróicos da causa popular! Prohibiu a auctoridade essa publica e solemne manifestação de patriotismo e saudade! Contra tal acto foram levantados os mais vehementes e ruidosos protestos de indignação, que tiveram duradouro echo nas lendas académicas !

Tinha depois havido, no mesmo anno, os graves con- flictos, entre a academia e os officiaes e soldados de caça- dores 7, por haverem desfeiteado um estudante, que asso- l^iava o hymno da Maria da Fonte!

Em 1851 frequentava o segundo anno. Os graves suc- ■cessos políticos do paiz vão reflectir-se na ardente moci- dade académica.

Em abril rebentou no Porto a revolta contra o governo ■do conde de Thomar e a faVor do marechal Saldanha. A academia secunda logo esse movimento revolucionário.

O rei D. Fernando, commandante em chefe do exer- cito, sae de Lisboa, acompanhado de um luzido estado- maior e numerosas forças militares para debelar a revolu-

batalhão académico o posto de alferes, e é o Sr. José Maria Tavares Ferreira, bondosíssimo homem e honradíssimo advogado em Ponta Delgada. Também é felizmente ViVo um outro soldado académico, que sahiu do Porto na expedição, que é o sr. conselheiro Thomaz Nunes de Serra e Moura, muito digno ex-presldente do Supremo Tri- bunal de Justiça. Esse e Custodio José Vieira, ambos soldados do batalhão e estudantes do 3." anno jurídico, ficaram no Algarve por haverem sido nomeados commlssarlos civis para flscalisar as auctori- dades d'aquella provinda e fazer activar a cobrança das contribuições.

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ção. Ao chegar a Coimbra, muitos estudantes acorrem á Ponte para lhe embargar a passagem. Chegam a intima-lo para retroceder. O rei fica conhecendo a atitude da aca- demia.

Vae hospedar-se no Paço das Escolas. Os estudantes, em qualquer parte por onde passa D. Fernando, soltam vivas á liberdade e á pátria e gritos "hostis contra o ministério cabralino.

O rei, que é bondoso, sorri-se e corteja. Mas a sua impressão é profunda. Escreve para Lisboa aconselhando a demissão do governo. (1)

Passados dias retira-se para a capital. Uma parte das forças do seu commando havia-se pronunciado pela revo- lução, e para isso concorreram alguns estudantes.

Poucos dias depois, em 6 de maio, Saldanha triumphante chegou a Coimbra para passar revista ás tropas.

Vae alojar-se na Hospedaria do Lopes, no cães, perto •da embocadura da ponte. O largo enche-se logo de capas negras, que fazem ao marechal uma extraordinária oVação. Nomeia-se uma deputação de cinco estudantes para ir -cumprimenta-lo. (2)

Santos e Silva, presidente, escreve (disse-me Filippe <le Quental), de improviso, em uma loja de chapeleiro, na Calçada, a saudação, que vae lêr-lhe.

Com os cinco da deputação, entram na hospedaria ou- tros rapazes. O Duque (escreve Camillo Castello Branco) ao deparar-se-lhe o estudante Carlos Ramiro Coutinho, abraça-o com lagrimas, porque descobre n'elle a imagem do seu mallogrado filho. Conde de Almoster, que havia sido o seu orgulho e suas esperanças !

O marechal Duque de Saldanha responde á mensagem da academia dizendo que «havia realisado as suas patrio-

(1) Veja-se a Narração dos acontecimentos da Regeneração, em Coimbra, publicada em successivos números, no folhetim do Conim- bricense, de 1884, pelo dr. A. L. de Sousa Henriques Secco.

(2) Narração cit.

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«ticas esperanças, e que para isso muito tinha concorrido- «a briosa mocidade académica, a quem tributava os maio- «res signaes de reconhecimento e gratidão. . (1).

Seguiu-se depois aquelle período politico, a que um d'esses estudantes, Torres e Almeida, mais tarde, em um dos seus discursos parlamentares, chamou parenthesis de paz e de melhoramentos, aberto por uma espada gloriosa e fechado pela morte do estadista insigne, que foi Rodrigo da Fonseca Magalhães.

No seguinte anno lectivo, em que José Luciano fre- quentava o terceiro anno, a Rainha D. Maria II, indo visi- tar as províncias, esteve em Coimbra, e concedeu um per- dão de acto, o que, para rapazes de todas as épochas, era o melhor meio de pacificação e reconciliação.

Seguiu regularmente os seus estudos, e, no anno de 1853 a 1854, matriculou-se no bP anno. Esse tinha de ser o mais agitado da sua vida académica, passando-se graves acontecimentos, em qne tomou parte.

Os folguedos do Carnaval de 1854 motivaram gravíssi- mas desordens. Estabeleceu-se uma violenta lucta entre estudantes e os que estes chamam os futricas. As provo- cações e os conflictos repetem-se. Disparam-se tiros de lado 3' lado. Ficam estudantes feridos. A academia procura desforços condignos dos seus brios. Formam-se planos extraordinariamente revolucionários. Afinal resolve o êxodo académico da Thomarada. N'elle seguem os dois irmãos Castros.

Mas o que é que foi a Thomarada?

No dia 1 de março, trezentos rapazes, depois de se reunirem no Terreiro da Universidade, sahem de Coim-

(1) Narração cit.

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bra, em ordem e na mais fraternal união, com bolsa com- mum, sob o commando de dois chefes por elles escolhidos. Caminham a pelas estradas e dirigem-se á capital do paiz.

São recebidos de braços abertos pelas populações, sem um único desacato d'elles ou contra elles. Vão en- toando cânticos patrióticos e recitando versos!

Em todos os estádios da sua jornada, com a calorosa eloquência de alguns, pregam independência e liberdade. Chegam até Thomar, onde o governo do paiz lhes manda um parlamentario, Francisco Damásio Roussado Gorjão, ■deputado, militar, um dos ajudantes do Marechal, presi- dente do conselho de m.inistros, e formula-se um convénio para retrocederem.

Todas as faltas foram abonadas. Todos os actos da revolta cobertos pelo esquecimento, e as auctoridades de Coimbra foram, pouco depois, substituidas.

Deve reconhecer-se que ha em todos esses aconteci- mentos da vida académica, que ficam narrados, uma ex- pansão de nobres sentimentos patrióticos, bellos lances fraternaes e educativos, bem differentes de outros, em que •do sambenito se fez gala!

A segunda épocha lectiva do anno de 1854 estava pas- sada e rápida passou a terceira época.

Encerraram-se as aulas.

Soares de Passos, no formoso soneto, que não vem no seu livro de ouro, pôde dizer:

Nossas lides findaram. Chega o dia De deixar estas margens bonançosas Onde colhemos as purpúreas rosas Da sciencia, do amor e da poesia !

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Quem sabe, amigo, onde a fortuna impia Nos leva em suas ondas procelosas. Apertemos as dextras extremosas, Como quem um adeus eterno envia !

(1).

O estudante José Luciano de Castro Pereira Corte Real, fez acto de formatura no dia 11 de julho de 1854, sendo, como em todos os annos, approvado nemine dis- crepante. Ao lado do assento do acto se declara ter o mesmo estudante sido habilitado para o acto de Direito Administrativo em uma das cadeiras do terceiro anno, que frequentou espontaneamente, e de que fez exame con- junctamente com as disciplinas do mesmo anno.

Obteve depois, nas informações litterarias, a classifi- cação de 1 M. B. e 12 B, que eram informações que a faculdade costumava conferir a estudantes de distin- cto mérito e que davam direito ao doutoramento, se qui- zesse seguir o professorado universitário.

Os acontecimentos da sua Vida de estudante o prepa- raram e adestraram para as luctas politicas do futuro.

Cedo lhe madrugou o amor por ellas.

Quantas Vezes anteveria os triumphos da tribuna parla- mentar e das cadeiras da governança nas agitadas reuniões do Theatro Académico (infelizmente desapparecido) ou nas discussões, ao ar livre, n'esse Fórum da vida escolástica, chamado Largo da Feira, onde todos passeámos as nos- sas illusões e desvanecimentos e, nos sonhos dourados da imaginação juvenil, nos julgámos predestinados para pres- tar á Pátria algum grande e extraordinário serviço !

Pôde julgar-se o calor, com que, na juventude, tomou

(1) No álbum do seu condiscípulo Gaspar de Queiroz Botelho de Almeida e Vasconcellos.

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parte em tantos acontecimentos, inspirados por generosas idéas e pelos mais nobres sentimentos, um espirito que, no decorrer da vida publica, nunca teve hesitações, e um coração, que, ainda no declinar da existência e nos mais adeantados annos d'ella, pulsou sempre ardente e fervoro- samente pela causa publica e por tudo que julgou do inte- resse da pátria e da liberdade!

II

Um dos característicos da sua personalidade é um cons- tante labor! E' a persistência e perseverança no trabalho! E' a sua larga e inexgotavel capacidade para elle !

Terminadas as lides universitárias, pouco tempo, na casa paterna, concedeu ao descanso e distracções que eram próprias da sua edade.

Partiu para o Porto afim de se consagrar á profissãO' de advogado.

A advocacia portuense era então constituída por uma brilhante constelação de talentos de primeira grandeza!

Occupava o primacial logar a grande figura de Sebas- tião de Almeida e Brito.

Homem respeitabilissimo!

Um sábio de luminosa intelligencia!

Apparecem lampejos d'ella,nos seus mais insignificantes, trabalhos!

Ministro da Justiça da Junta Provisória do Supremo Governo do Reino, durante a revolução de 1846 a 1847, era também um grande liberal e um grande patriota !

Para o seu concorridissimo escriptorio é que foi prati- car o novel advogado. Varão tão illustre é que foi o seu mestre na advocacia ! Não o foi por muito tempo. Pelo

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apreço, que logo começou a fazer dos trabalhos, que con- fiava ao discípulo, e pelos elevados honorários, que lhes taxava, em breve lhe deu a emancipação, dispensando-se de dirigi-lo !

Um outro advogado haVia, muito distincto, gosando então de grande nomeada. Era Delfim Maria de Oliveira Maia.

Dotado de notável intelligencia e rara perspicácia juri- dica, eram modelares os seus trabalhos forenses, sendo ainda hoje invocados e seguidos nos tribunaes os que, depois da sua morte, foram reunidos em livro, ficando muitos outros sepultados e perdidos nos autos !

Era Custodio José Vieira, intelligencia robusta, advo- gado sabedor e jornalista vigoroso, mas propenso, quer como advogado, quer como jornalista, ás demasias da pa- lavra e virulência da linguagem.

Era Joaquim Marcelino de Mattos, homem de si distincto e gentil em sua pessoa !

Causidico illustre, a mais eloquente palavra dos tribu- naes portuenses, jurisconsulto de alto mérito, fundador e principal redactor da Revista de Jurisprudência (1856 a 1859), onde se encontram trabalhos seus e dos collegas, cujos nomes ficam citados, de um grande valor scientifico e pratico. (E' o pae do distincto homem de sciencia Dr. Jú- lio de Mattos).

Era José Moreira da Fonseca, também advogado de <iistincto mérito.

Estes foram os causidicos com quem o joven advogado teve de defrontar-se nas lides do foro. N'ellas entrou com galhardia, conquistando desde logo clientela e honrosa no- meada.

Batendo-se, nas luctas da palavra, com Marcelino de Mattos e Custodio José Vieira, algumas d'essas pugnas ficaram celebres.

Era por vezes tendo principalmente este ultimo por antagonista levado a acompanha-lo, para não parecer fraco ou não desmerecer perante o publico, na Violência -da linguagem.

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«Esses maus hábitos disse-me um dia eu trouxe para o parlamento e tive de corrigir-me d'elles.»

Tomando assento na camará dos deputados, pela pri- meira vez, em janeiro de 1855, nem por isso abandonou a sua advocacia no Porto. Fechado que era o parlamento, voltava a ella.

Foi em um d'esses interstícios legislativos que, em fins de 1860, interveio em uma causa criminal, cujo julgamento acompanhei com curiosidade e interesse, embora fosse apenas simples estudante primeiranista da Universidade.

E' que o reu era também estudante ; e o que se pas- sou no seu julgamento mostra a elevação e nobreza, com que José Luciano comprehendia e desempenhava as func- ções de advogado.

Foi o caso que José de Coutinho (depois Conde da Aurora, muito intelligenle e distincto juiz, meu inolvi- dável companheiro em dois tribunaes de segunda instan- cia), sendo estudante do 4.° anno, foi forçado a interrom- per os seus estudos, recolhendo-se á casa paterna, em Ponte de Lima. Ahi se lançou na politica local com a im- petuosidade do seu génio e a imprudência dos seus verdes annos.

Escreveu no Braz Tisana, jornal portuense, uma cor- respondência anonyma com gravissimas accusações ao presidente da camará municipal, que era um advogado, de bastante nomeada no districto de Viana. Este chamou o jornal á responsabilidade. José de Coutinho nobre- mente se apresentou a acceita-la.

Custodio José Vieira foi o seu defensor e José Lu- ciano o seu accusador. Aquelle, vendo que não podia livrar o seu cliente de uma fatal condemnação (que veio a ser de uma pequena pena pecuniária), quiz que o adver- sário sahisse do tribunal também moralmente ferido e exauctorado. Era fácil á facilidade de Virulência da sua palavra !

Usando de todas as liberdades da defeza, converteu esta em accusação, ou antes na exauctoração do auctor! José Luciano, que havia sido de uma grande correcção na

10

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acciísaçào, embora pedisse a condemnação do reu, teve na réplica de tomar maior calor para cobrir o seu consti- tuinte, castigando mesmo os excessos do seu coiiega, mas sem ferir o accusado, que nenhuma culpa tinha dos abu- sos da palavra do seu patrono e defensor.

Por tal forma correu o julgamento, com tanta lealdade e nobreza foi feita a accusaçào que Coutinho, apezar de condemnado e de ser extremamente susceptível em seus brios e melindres, ficou sempre grato e dedicado, toda a sua vida, ao seu accusador !

E' que a comprehensão, que este tinha do orador forense era tal como o exigiam os velhos mestres : Vir honiis dicendi peritiis !

A advocacia, para os que teem de viver d'ella, é sem- pre um trabalho absorvente e exgotante.

Mas não para um tal trabalhador! Além de advogado, nunca deixou de ser jornalista !

Escrevia artigos sobre assumptos económicos ou admi- nistrativos, no Commercio do Porto, a grave e ponderada folha, que ainda hoje existe e que foi sempre de muita exigência e rigor para os escriptos dos seus colaboradores.

Sempre prompto para todos os emprehendimentos, que se destinassem á causa publica, muito especialmente para os do jornalismo, fundou, em 1859, o Jornal do Porto com José Barbosa Leão. Era d'este a propriedade do pe- riódico, que logo depois passou a ser também da A. R. da Cruz Coutinho, que afinal a tornou exclusivamente sua.

Sahiu o primeiro numero em 1 de março de 1859, com o programma de jornal independente, sem nenhum cara- cter partidário ; e o artigo, em que como tal se apresenta, visivelmente da penna de José Luciano, é notável pela elevação com que está escripto e com que proclama serem a tolerância, a liberdade e a justiça os seus nomes inspi- radores e o lêmma, por que se guiará o novo periódico.

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O Jornal do Porto tornou-se logo um dos mais inte- ressantes, dos mais auctorisados e bem redigidos do paiz : e d'elle se pode dizer que, durante a sua existência, que não foi curta, conservando a primitiva feição de jornal alheio a qualquer facção partidária, foi sempre uma folha perfeitamente honesta, sem especulações interesseiras nem cobardes desfallecimentos, ou transigências indeco- rosas.

A imprensa, para os que se honravam do nome de jor- nalistas, era então um sacerdócio !

O artigo do fundo era escripto, ora por José Luciano, ora por Barbosa Leão, mas embora sem assignatura, não se confundiam os artigos de um com os do outro.

Tinha cada um d'elles o seu estylo, que é a luz do pensamento sabida do fogo e calor do coração.

José Barbosa Leão era também homem de valor, lar- gamente versado em todos os ramos da administração publica, como mostrou no desempenho do cargo de secre- tario geral em duas províncias ultramarinas.

Francisco de Paula Mendes, jornalista muito dis- tincto, que havia sido redactor do Viannense, escrevia a revista estrangeira em estylo elegante e com notável ele- vação !

António Augusto Teixeira de Vasconcellos, sob o pseudónimo de Daniel, escrevia senlanalmente uma carta noticiosa e politica de Paris, e também, para o folhetim, a revista dos acontecimentos scientificos, litterarios e ar- tísticos da França.

Ramalho Ortigão, então no começo da sua fulgurante vida litteraria, escrevia semanalmente, para o folhetim, a Revista do Porto. Foi alli que se revelou e fez o grande escriptor, que é ! A sua colaboração, que durou muitos annos, estendeu-se mais tarde ao noticiário, que se tor- nou primorosamente bem feito.

Entre outras, ainda temos na lembrança, pelo seu relevo litterario, a noticia da morte da infeliz e formosa Manoela Rey.

A breve trecho o Jornal do Porto adquiriu a colabo-

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ração litteraria mais illustre que n'elle podia entrar! Foi para o seu folhetim que foram escriptos os encantadores pequenos romances, colligidos, em 1869, em volume sob o titulo sS'6TÕ£'.s da Provinda, pelo seu auctor, Joaquim Guilherme Gomes Coelho —/////o Diniz, o doce e suave realista, o inexcedivel paisagista litterario ! E foi também no folhetim do Jornal do Porto, que, pela primeira vez, viram a luz publica essas jóias da litteratura portugueza, chamadas As Pupilas do Senhor Reitor e A Morgadinha dos Canaviaes.

A correspondência diária de Lisboa foi escripta (que nos lembre) por Augusto Ernesto de Castilho e Mello, jornalista distincto, e por Bernardino Pinheiro, distincto homem de letras, auctor de dois apreciados romances his- tóricos.

Basta de digressão. Seja-nos desculpada. Conhecemos essa folha na edade, em que a memoria é viva, e, por lembranças posteriores, a ella está preza a nossa sau- dade! (1).

Não me propuz occupar-me do sr. José Luciano de Castro como jornalista, mas tive de fazer referencia a esta sua acentuada e preeminente feição, porque anda reu- nida a outras de que é inseparável.

Nas columnas do Jornal do Porto frequentamente appareciam escriptos revelando a envergadura do juriscon- sulto e o espirito jurídico do seu redactor.

E' assim que, logo no n.*" 89, de 22 de abril, se um artigo, assinado pelo seu estylo, em que, sacudindo o a todos os velhos bacamartes da emphiteuse, advoga a sua reforma pela transformação de todos os prasos de vidas

(1) Tem nota no fim.

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em prasos fáteusins contra a opinião de Correia Telles, mas sustentando a doutrina, que depois foi legislada no artigo 1697 do código civil e que se esboçava no artigo 1829 do projecto primitivo, que, n'esse anno, pela primeira

vez, se imprimiu!

Nem o jornalista, nem o parlamentar absorveram mtei- ramente o advogado. Nos primeiros annos da sua Vida politica, nos intervalos das funcções legislativas, voltava ao escriptorio de advogado.

Finda porém a longa legislatura de 1860 a 1864— uma das mais fecundas para o paiz e talvez a de mais trabalho e mais honrosa para o illustre parlamentar - entrou no funcionalismo. Foi nomeado director geral dos próprios nacionaes. Despe então a toga do advogado e desapparece

dos tribunaes.

O seu amor pelas sciencias jurídicas, o culto, que lhe mereciam, Vão exercer-se em outro campo. É na impor- tantíssima revista O Direito por elle fundada, e cuja apre- ciação não pode ser feita n^este logar.

Mas o advogado desappareceu para sempre? Dedignou- se do exercício da profissão?

Não ! Passados muitos annos, depois de haver sido presidente do conselho de ministros, voltou a folhear autos judiciaes! Voltou a ser advogado!

É que em julho de 1891 falleceu seu sogro, o Dr. Ale- xandre de Seabra. Este era o grande advogado, de bem sabida nomeada, a cujo escriptorio affluiam autos penden- tes em muitas comarcas e nos tribunaes superiores. Nos últimos tempos da sua vida, impedido pela doença, não lhes pôde dar expedição. Fallecendo, havia em seu poder uma grande acumulação de processos, em que o mandato conferido não havia sido desempenhado.

O sr. José Luciano tomou a peito o ser o herdeiro não dos direitos, mas também das obrigações do seu grande parente e grande amigo. Voltou a compulsar autos judiciaes e a escrever n'elles. Por conhecimento próprio podemos dizer que, se era grande e illustre o primeiro patrono, não foi menor, nem menos illustre o segundo!

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Podemos affirmar conscienciosamente, pelo nosso estudo, que os constituintes nada perderam com a substituição do mandatário!

vae muito longo este artigo e ainda teríamos de falar do jurisconsulto!

Mas como fazel-o? A obra do jurisconsulto não pode- ria apreciar-se em um artigo.

Ella anda espalhada, largamente espalhada, pelos pare-

Uma das faces da casa da Anadia, ondefalleceu o estadista

ceres das commissões parlamentares, pelos relatórios dos seus decretos e das suas propostas ou projectos, por mui- tos dos seus discursos nas duas camarás, quer defenden- do, quer atacando projectos de lei; e, muito principalmente,

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pelos quarenta e cinco volumes da revista O Direito, que fundou, em 1868, com António Alves da Fonseca, e que teve uma honrosa influencia e alta importância nos pro- gressos dos nossos estudos juridicos. Tudo exigiria um largo espaço e uma apreciação condigna, feita por penna competente, vigorosa e illustre, que não pela minha!

É n'elle admirável a alliança do jurisconsulto com o politico!

Foi um fervoroso sacerdote da sciencia do justo, mas conservando também sempre no peito o fogo sagrado pe os ideaes políticos da sua mocidade ! Justam ac tenacem pro- positi viram!

Jornalista, advogado, politico, jurisconsulto, parlamen- tar, homem de Estado, por elles terçou armas e trabalhou, com ardente fé, em toda a sua longa vida!

Que descance em paz o infatigável trabalhador, que amou a sciencia e amou a pátria; e que a ambas serviu e a ambas honrou!

NOTA

Conhecemos essa folha na edade, em que a memo- ria é viva, e, por lembranças posteriores, a ella está presa a nossa saudade.

(Pags. 148)

O que escreveu isto conheceu bastantemente os redactores e collaboradores áo Jornal do Porto, porque foi leitor assiduo desde o seu apparecimento e porque ainda que sete annos depois d'elle foi jornalista incipiente na honrada folha do Porto. Para ella, durante um certo periodo, antes de ser fundado o Echo do Lima, escreveu semanalmente umas modestas cartas limienses.

D'esses tempos lhe ficou o amor pela instituição, que é a mãe da liberdade, e sem a existência da qual, em toda a sua plenitude, não pode haver governos livres.

E porque assim pensava o illustre homem de estado, que tanto se di-tingniu e hourou nas lides do jornalismo, queremos deixar aqui transcriptas as passagens de uma biographia de Lamartine, em que se narra o seu proceder para com a imprensa por occasião da Revo- lução de 1&48.

É a .seguinte :

Plus tard, Lamartine, membre du Qouvernement provisoire, mi- nistre des Affaires étrangères, défend et sauve celui-là même qui attaque le GouVernement avec le plus de violence. Voici en quelles circonstances :

Certains journaux, tels le Constitutionnel, V Assemblée Nationale, la Presse, dénonçaient le GouVernement provisoire à toutes les défian- ces; ils Taccusaient de demolir et de ne pas rebâtir; ils Taccusaient de lenteur criminelle, ils Taccusaient d'être Tauteur de troubles et de ruines.

Le journal d'Émile de Girardin, La Presse, sous ses apparences socialistes, semble réactionnaire au peuple. Le GouVernement est vilipendé, et le peuple va manifester contre les journaux qui lui sont hostiles.

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Rue Montmartre, le 29 mars, à huit heureá du soir, des attrou- pements se forment devant rimprimerie du journal La Presse.

La foule grossit, s'excite, et, furieuse, commence à assiéger les ibureaux.

< A bas la Presse ! Mort à Qirardin!- crie-t-on.

Encore un instant et on va enfoncer les portes; mais la garde nationale, arrivée à temps, dégage les bureaux, sans toutefois par- venir à dissiper Taitroupement.

< Girardin est coupable de trahison envers la Republique ! Justice!» crie-t-on encore.

La garde nationale a demande des renforts ; le general Courtais arrive et parvient à calmer Teffervescence.

Pendant quil donne des ordres, pendant qu'il parlemente avec la foule, quelques citoyens sont admis dans le cabinet d'ÉmiIe de Girar- din, tandis que d'autres courent chez Lamartine réclamer du Gou- Vernement un terme aux outrages de la Presse.»

La réponse de Lamartine calma les plus acharnés. et on la trouva, le lendemain, dans la proclamation qui mit fin aux dangers courus par les divers journaux plus ou moins hostiles au Gouvernement.

Voici cette réponse: <:La Republique exige Tinviolabilité de la pensée humaine ; elle admet Ia liberte d'être injuste envers un gou- vernement; le Gouvernement ne doit répondre qu'en sauvant la patrie de ses ennemis au dehors et de tout désordre au dedans.»

La Presse et Émile de Girardin étaient sauvés.

(lamartine par Gabriel Clouzet et Charles Fegdal.)

A uma virtuosa memoria

(1)

(Na morte da Excellentissima Senhora D. Anna dos Prazeres Calheiros de Magalhães)

Nunca é tarde para rememorar virtudes! As boninas da primavera, cortadas pela enxada do coveiro, ainda não poderam reverdecer! As lagrimas ainda afluem aos olhos; é pungente a dôr; e imperecedoura será a saudade no co- ração dos que a conheceram e amaram !

A 5 de abril do corrente anno, falleceu, em Vianna do Castello, uma senhora que foi um raro complexo das mais benévolas virtudes: deixou de bater um coração que foi cofre dos mais puros affectos, fonte inexaurível do bem, altar onde tiveram culto todos os sentimentos bons e deli- cados.

A sua vida escreve-se em duas phrases: ninguém a excedeu na practica do bem, ninguém com mais resi- gnação soffrcu o mal!

D'ella se pôde dizer o que um dos maiores, se não o maior, dos escriptores contemporâneos disse da vida de uma illustre titular: «foi um grande exemplar de moral

*

(1) Este artigo foi escripto a bordo de um paquete de Africa em viagem de Cabo"verde para Lisboa, em maio de 1875, sendo depois publicado no n.° 896 do tcho do Lima, de 1 de julho d'esse anno.

De novo se publica, porque são inolvidáveis as virtudes da sancta senhora e constituem, ainda agora, a melhor consolação e o melhor património na vida de suas filhas !

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social e christã que tanto precisam estes nossos tempos, abundantes de sublimes tlieorias, tristemente minguados na practica d"eilas.»

Ao chegar-nos a noticia do seu passamento pezou-nos dolorosamente não podermos com o nosso respeito tomar

Solar do Conde da Barca, na fregnezia de (Ponte de Lima)

um logar no sahimento, que levou o féretro da Virtuosa senhora ao cemitério de Vianna. Prohibia-o a immensidade do mar!

Paguemos pois por esta forma o tributo de respeito a tão nobre e sancta memoria !

A mão, que, por vezes, traçou a chronica das festas e alegrias da sua casa, colhe hoje, no campo triste da morte, um goivo para desfolhar na sua sepultura !

A exC"^ snr.^ D. Anna dos Prazeres Calheiros de Magalhães Araújo Baceliar nasceu em 1 de abril de 1818. Casou a 12 de setembro de 1854 com o exC"" snr. An-

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tonio de Araújo de Azevedo Pereira Pinto, morgado de Sá, e representante de um dõs mais distinctos liomens de Portugal do fim do século passado e do principio d'este, António de Araújo de Azevedo, conde da Barca (1).

Habitando successivamente em differentes terras d'esta provincia, e geralmente conhecida n"ella; tendo sempre, pelas larguezas e bizarria que tanto estavam no caracter de seu marido, franca a sua casa para as pessoas com quem estavam relacionados, e recebendo ali todos os seus amigos a hospedagem mais cordeal, mais sincera, mais larga, e mais intima, teve a illustre senhora constante occasião de patentear os dotes de bondade e de distincção que a Providencia lhe prodigalisara.

Filha de uma das mais distinctas famílias da provincia; alliada a outra que conta nomes illustres nas fastos da independência e da liberdade da pátria ; compossuidora de uma importante fortuna; irmã de um exemplar e bondo- -sissimo caracter, Nicolau Calheiros, que pertence ao nu- mero d'aquelles homens que Deus para consolação ás causas vencidas para representarem o que ha de nobre, de digno e de respeitável no passado, a exc."^^ snr/'^ D. Anna dos Prazeres Calheiros de Magalhães de Araújo Bacellar nunca deixou que o fumo das Vaidades humanas empanasse a limpidez das suas virtudes; que o prejuízo

(1) António de Araújo de Azevedo, conde da Barca, enviado extraordinário ás cortes de Haya e S. Petersburgo, ministro plenipo- tenciário junto á Republica Franceza em 1795, 1797 e 1801, conse- lheiro de estado, ministro e secretario de estado dos negócios da marinha e ultramar em 1814, primeiro ministro em 181", sócio da Aca- demia Real das Sciencias, grã-cruz das ordens de Christo e da Torre e Espada, da de Izabel a Catholica de Hespanha, e da Legião de Honra de França, nasceu em Ponte de Lima a 14 de maio de 1754 e morreu a 21 de junho de 1817 no Rio de Janeiro, para onde havia acompanhado a corte por occasião da entrada do exercito francez em Lisboa. E' muito conhecido no mundo litterario por uma defeza de Camões contra Monsieur de Ia Harpe.

Nas Memorias da Academia Real das Sciencias se encontra o seu Elogio Histórico por Francisco Mendes Trigoso.

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dos pergaminhos nobiliarchicos alterasse a lhaneza e ame- nidade, tão fina, tào deh'cadj, e tão christà, do seu tracto, égua! para os grandes como para os humildes, e entre as boníssimas pessoas da sua familia era apontada a sobre- excellencia dos quilates da sua bondade.

Era muito para vêr como falava aos pequenos, como prestava attenção aos pobresinhos, que se lhe approxima- vam ! Nunca um infortúnio lhe bateu á porta que não fosse soccorrido.

Tinha sempre para os pobres uma esmola e uma pa- lavra de conforto !

Presenteara o ceu o seu lar, cercando-o de meninas, que são hoje continuadoras das virtudes da mãe. Dera-lhe Deus a missão mais sublime da mulher, a missão de mãe !

Ser mãe! Ligar as mãos das tenras avesinhas humanas para a supplica ao Omnipotente; ensinar-lhes a balbuciar uma prece; prender-nos para sempre pelo amor, que um dia nos ha-de afastar dos perigos e abysmos da existên- cia, segredando-nos as palavras lembra-te que fazes chorar tua mãe; fazer o que não podem fazer as esco- las, nem os livros, nem as academias, a formação do coração: tal é a missão das mães!

E a exc."''' snr.^ D. Anna dos Prazeres Calheiros de Araújo Bacellar soube elevar-se á altura da sua missão ; soube ser mãe, não pela severidade dos rigores, mas pela sublimidade dos exemplos!

Era tanta a abundância da sua bondade, tão larga a conformidade do seu animo que as amarguras communs a todo viver humano passavam por ella sem a alterar. Tinha porém o seu coração de esposa extremosissima de soffrer a mais dura provação para elle.

A 9 de agosto de 1868 a morte roubou-lhe o esposo. Achou-se no mundo sem aquella enérgica vontade.

Soffreu duramente. Cedeu porém a dôr á virtude. Tinha a cumprir deveres. Resignou-se.

Era para admirar o contraste que então se lhe notava. Coberta com os crepes da viuvez; fulgurando-lhe, na phi- sionomia plácida e bondosíssima, as rosas que attestam o

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vigor da existência, e coroada pelos cabellos prateados^ e embranquecidos em poucos mezes.

Ninguém lhe pôde notar uma contracção de desespero, um gesto de impaciência ou enfado!

Se ás vezes as lagrimas lhe assomavam aos olhos, logo um sorriso de piedosa esperança, de conformidade, de re- signação lhe adejava aos lábios.

Era', personalisada e real, a doce imagem da Resigna- ção, tantas vezes reproduzida na tela maravilhosa dos pin- tores christàos!

Estava porém resolvido, nos impenetráveis arcanos da Providencia, que a sua alma sancta passasse pelo crisol de maiores amarguras.

Veio pois a doença dolorosa e incurável, veio o pade- cer acerbo, veio a certeza da morte, e de deixar sem a maternal direcção as filhas que tanto amava !

Foi crudelissimo o seu soffrer ! Bem poderá a desven- turada senhora interrogar a própria Divindade, como na sua immensa dôr fizera Job, o grande mytho da paciência humana, e dizer-Ihe:

. . . Não me condemnes, ouve-me, Por que assim me julgaste? Acaso é digno De ti calumniares-me, avexar-me A mim que sou de tuas mãos feitura?

Porque ao dia Do cárcere materno me has trazido? Oxalá que não vista perecera De olho nenhum vivente, e houvera sido Como se nunca fosse, trasladada Do ventre á sepultura! (1)

Estas interrogações tremendas, estes gritos pungentes^ que, representado os gritos da humanidade, um enorme e incógnito poeta põe na bocca do maior modelo de paciên- cia, de que rezam as letras sagradas, não os soltou ellaí

(1) Job, cap. X, Garrett, Camões, cant. II.

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Acceitou resignada, e como vindas de Deus, todas as dores. Esperou tranquilla o momento fatal. A sua alma pura não se arreceava da morte: e, quando ella se avisi- nhava, despediu-se das filhas, que, como anjos do Senhor, lhe Velavam o leito de agonia ! Despedida solemne !

E que expressão ha ahi na terra, Em lingua de homens, que traslade ao vivo Todo esse accumular de sentimentos Que em si de tal instante o adeus encerra. (I)

Depois. . . chegado o momento supremo, hora solemne e tremenda, em que os horisontes do mundo desappare- cem, e começam a surgir os do infinito e da eterni- dade, ella entreviu Deus que ia premiar as suas distinctas virtudes e pediu-lhe, com certeza lhe pediu, que transfor- masse as suas dores em felicidades para os que mais amava!

Que assim seja.

(1) Garrett, cit.

Luiz Corrêa Caldeira

Luiz Corrêa Caldeira (Luiz Arsénio Marques Corrên Caldeira, nos registos universitários e no Diccionario Bibliográfico, de Innocencio) nasceu na villa de Ponte de Lima em 9 de janeiro de 1827, na parte da povoação,

11

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que fica iia margem direita do Lima, denominada Alcni da Ponte, pertencente á freguezia rural de Sancta Marinha de Arcuzêlo, em cuja igreja se baptisou.

Era mais novo doze annos do que seu irmão António, o iliustre funccionario e parlamentar, de quem me oc- cupei n'este livro.

Ainda creança sahiu com seus pães da terra em que nasceu e parece que nunca mais a ella Voltou.

Filho de um official superior do exercito, na edade própria, entrou no Collegio Militar, e ali cursou os pri- meiros estudos, que o encaminhavam para a profissão das armas, a que se destinou.

Nos annos de 1845 a 1844, 1844 a 1845 e de 1845 a 1846, encontra-se, nas Pautas ou Relações dos Estudan- tes da Universidade de Coimbra, matriculado no 1.°, 2.^ e 5.'^ anno das Faculdades de Mathematica e Philosophia.

Sendo capitão de infantaria e secretario do Azylo dos inválidos Militares, em Runa, foi eleito deputado pelo circulo eleitoral de Torres- Vedras para a legislatura, que durou de 7 de julho de 1858 a 26 de novembro de 1859.

Falleceu, aos 52 annos, no dia 8 de agosto de 1859.

Foi, como não podia deixar de ser, um sentimental, um amoroso! Ainda muito novo, casou com uma senhora iliustre, da familia dos Condes de Sampaio, que deixou viuva. Amou-a apaixonadamente!

Da sua vida somente mais podemos dizer que foi: em politica, um eonservador; em moral, um virtuoso; em religião, um erentef

N'essas poucas linhas ficam compendiados todos os factos da vida particular e publica d'esse homem, que, peio talento, foi verdadeira e grandemente iliustre!

Quasi pode dizer-se que a sua Vida não tem historia, nem se presta, pelo seu retrahimento e modéstia, á bio- graphia !

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E' como poeta de uma alta e fecunda inspiração, que elle tem direito a um logar de honra nos fastos de oiro da litteratura!

II

Coimbra é sempre a terra fecunda e bem fadada da poesia! Nenhuma outra ha que mais a faça nascer; que mais a bafeje; que mais a acalente e acaricie!

Berço amoroso de poetas!

Tem-no sido sempre desde Camões e de Miranda

igreja de Santa Marinha de Arcnzêlo, onde o poeta foi baptizado.

a Garrett, Castilho, João de Lemos, Gonçalves Dias, Rodrigues Cordeiro, Soares de Passos, Silva Mattos, João de Deus, Anthero, Theophilo Braga, Guerra Junqueiro,

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Crespo, João Penha, Cândido de Figueiredo, António Feijó, Queiroz Ribeiro, Eugénio de Castro e António No- bre!

E tantos, tantos outros!

São da épocha, em que viveu em Coimbra, os primei- ros Versos de Luiz Corrêa Caldeira.

Aiii nos apparece fazendo parte da plêiade de poetas do Trovador, no qual collabora com as poesias: A Nuvem, A Serra do Monte Juncto, As Lagrimas da. Rosa, O teu nome, e ainda com a que dedica ás iniciaes A. M. M.

Versos dos 16 aos 20 annos!

Mas que significação litteraria e Valor tem esse campo da sua iniciação poética, chamado O Trovador?

O Trovador foi um jornal poético, creado por impulso e iniciativa de João de Lemos, e que depois constituiu o iiVro, que assim é designado: O Trovador, collecção de poesias contemporâneas por uma sociedade de aca- démicos (Coimbra, Imprensa de Trovão, 1848).

Na pagina, que precede este titulo da obra, vem o nome de Luiz Corrêa Caldeira entre os nomes dos re- dactores e collaboradores, que são: António Gonçalves Dias o grande poeta brazileiro —João de Lemos, A. X. Rodrigues Cordeiro, Augusto Lima, José Freire de Serpa, Couto Monteiro, Castro Freire, António de Serpa e outros.

Lopes de Mendonça, que Bulhão Pato (I) diz que tinha na fronte o sêllo do génio e da desventura, talento que brilhou, como um astro, e que, ainda em vida, o apagou a loucura, nas Memorias da Litter atura Contemporânea, consagra largas paginas á apreciação critica das poesias e dos poetas do Trovador, a que chama «livro que ha-de

(IJ Sob os Cl/prestes, pag. 97.

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«Viver no futuro; campo onde fizeram as primeiras provas «talentos distinctos; estádio poético, que marca o alvore- «cer de um movimento littcrario e reflecte as aspirações «de uma nova- escola.» (1)

Depois de esta e outras apreciações muito honrosas, assumindo a alta imparcialidade de juiz, o critico aquilata o Valor das poesias do livro, em seu conjuncto, nos se- guintes períodos, que entendemos dever transcrever pela auctoridade que dão aos seus julgamentos:

O talento diz nunca se apreciou com um ponto de admiração.

A critica não consiste nas cortezias poéticas, que precedem quasi sempre os ín-folios do tempo de El-Rei D. João V: para ser provei- tosa é necessário que seja inteligente: sendo inteligente obedece antes de tudo aos preceitos do gosto e ás leis que o génio creou para a arte e para a poesia.

O principal defeito do Trovador, a meu vêr, é estar encerrado n'uma escola muito limitada de sentimentos individuaes.

A excepção do Sr. João de Lemos e do Sr. Rodrigues Cordeiro, os poetas cantam apenas a virgindade das suas comoções, em face da natureza e dos seus Íntimos desejos. É o eterno tliêma do amor, assimilado ás opulentas evocações do mundo exterior ; pantheismo do sentimento, aonde a idealidade ás vezes se perde na divagação da descripção material : no cálix da flor pendido para a terra; no desa- brochar da rosa orvalhada pelos prantos da aurora no escoar tre- mente da fonte q.ue murmura no scintiiar das estrellas qme doude- jam no reflexo encantado da lua, que torna um cinto de saphiras o rio onde mostra a palidez da sua face: são nuvens que andam perdi- das pelos plainos do ceu, e que o poeta baptisa com os mais doces nomes e interpela com os mais ternos queixumes.

Não formulamos uma accusação, mas manifestamos apenas um facto.

Para engenhos moços, que ainda não sympathisaram com as gran- des questões em que se revolve a humanidade; que vêem apenas

(1) Ricardo Guimarães, Visconde de Benalcanfôr, escreveu o seguinte:

«Na historia da arte moderna, o Trovador, de Coimbra, é mais do que um marco miliario, é um monumento ornado de todas as graças do lyrismo moderno (Rev?. Contemp. de Port. e Brazil, biografia de Thomaz Ribeiro)..

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no liorisoiite da vida uw.a nuilher, bella como os seus sonhos encan- tados, é este o eterno canto; canto que nunca esmorece; que resus- cita todos os dias com fervor de novas illusões; que adormece a Laura de Petiarclia; que faz palpitar de emoção a Beatriz de Ber- nardim Ribeiro; que debulha em lagrimas a saudosa Natércia; canto phrenetico que é mais um anhelar ardente do que uma paixão reali- sada; que, se não é assim, quasi sempre se abysma no desespero da traição, ou desencantamento de posse; que morre como flores cres- tadas pelos primeiros nortes do inverno, envolvidas na torrente que as cospe nas margens sem bellêsa e sem perfume.

A breVe trecho Veremos como Luiz Corrêa Caldeira foi um dos que mais depressa se emancipou d'esta escola.

A])reciando depois cada um dos poetas do Trovador, Lopes de Mendonça diz:

O Sr. Luiz Corrêa Caldeira estreou-se brilliantemente, sobre- tudo na Nuvem e nas Lagrimas da Rosa: tem direito ao titulo de poeta.

Entretanto a terceira oitava da Nuvem está tocada de gongorismo, que nos não agrada muito. O Teu Nome recorda demasiadamente La- martine, e lia um Eolo, que nos faz mau effeito por ser recordação clássica mal trazida n'essa poesia toda afinada no mysticismo christào.

Devem ser d'essa épocha, isto é, dos desoito aos vinte ou vinte e dous annos, os versos escriptos no álbum de Rodrigues Cordeiro.

Para aqui os trasladamos, como amostra e documento da feição lyrica do poeta:

Tu que, nas horas meigas do crepúsculo. Vês, n'um ceu que roxeia o fim do dia, Levantar-se da purpura do liorisonte A pensativa imagem da Poesia;

Tu que lês, com teus olhos distrahidos. Nas paginas sem fim da imensidade; Que escutas, nos lamentos do Oceano, O longo respirar da eternidade;

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Tu que sentes gemer, em cada follia, Um acento da lyra do Senlior; Tu que descobres, na mudez dos astros, Os mysterios da mão do Creador;

Fita, ás vezes, no azul do firmamento, Da rainha da noite o rosto baço, E talvez, apezar da negra sorte. Nosso pensar se encontrará no espaço!

Encontram-se estes versos em uma colecção de poe- sias escolhidas dos melhores poetas contemporâneos e que se denomina Lvsia Poética (Rio de Janeiro, Typ. de F. O. Regadas, 1857). Lendo-os um dia ao joVen magis- trado e meu querido amigo, António de Magalhães Barros, nobre coração apaixonado por tudo que interessa á gloria da sua terra, tanto bastou para os publicar, com um pe- queno artigo em um annuario de Ponte de Lima, onde o poeta era absolutamente ignorado e desconhecido, mesmo dos que lêem e desejam aprender!

Vamos agora falar do periodo da sua Vida litteraria, em que o poeta segue outro ideal: em que alonga a Vista para mais largos horisontes e longínquas regiões.

Nascido na ridente terra do Minho, como diz um poeta:

Onde o Lima a ponte morde Com dentes de cristal fino.

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ou, como disse o Bernardes:

Junto do Lima, claro e fresco rio, Que Lethes se chamou antigamente.

O rio que verás tão socegado

Que parece se arrepende

De levar agua doce ao mar salgado ;

não podia haver-se esquecido das formosas e Verdejan- tes paisagens, no meio das quaes abriu os olhos á luz e passou a sua primeira infância, lembranças essas, que como diz Castilho rescendem aos beijos e leite da feliz meninice, e que esta para sempre regista.

Alem da Ponte. Margem direita Igreja de Sancto António da Torre- Velha e Campo do Amedo

Mas a sua musa não quiz h'mitar-se a voar, como abe- lha doirada, pelos campos da infância e da mocidade; pelos sinceiraes floridos do Lima e do Mondego. Tinha forças e azas para ir mais longe.

Aprouve-lhe, librando-se nas azas da inspiração, subir até ás regiões celestes; e águia de longínquo vôo ir

banhar-se nas aguas do Jordão e do Euphrates para nos descrever as áridas paisagens da Arábia e da Palestma! Para trazer aos nossos olhos e para nos fazer sentir a tristeza e a desolação das ruinas das cidades ex-

tinctas '

Sem renegar do seu passado lyrico, o poeta toma nas mãos a Biblla e procura trasladar para a poesia portu- gueza, em versos de admirável contextura, a poesia su- blime dos hebreus

E' a poesia sacra, a poesia religiosa, que merece agora

todo o seu culto. ^ , ^ j ^

São os carmes d 'esse género e que desde logo deno- minou - Flores da Bíblia, que occupam todo o seu pen-

'^Tn'tentava reuni-los em livro," que um critico illustre diz que viria a ser, realisado o emprehendimento, um livro monumental? (1)

Quaes os seus modelos? Onde os encontrou?

Fazem porventura os seus versos lembrar os de um outro poeta, também nascido juncto do Lima? Esse que teve no claustro e tem na litteratura o nome de Frei Agostinho da Cruz? (2) Foi o nosso vate um seguidor ou imitador da poesia mystica de Santa Thereza de Je- sus que é havida por modelar? Não! Em meu fraco jmzo, elle\eve individualidade própria. As suas composições di-

íl) Pinheiro Chagas, Ensaios Criticos. ^

9 Teve no século o nome de Estevão Pimenta e era irmao de Dioio Bernardes. Veja-se o livro Varias Poesias de Frei Agosmho da Cruz, publicadas, em 1771, por José Caetano de Mesqu>ta ; o Ar- Chico Bibliográfico da Unioersidade de Coimbra \m, V^;i. ^^^^ seguintes ; e o artigo de Sr. Dr. Mendes dos Remédios publicado no Almanach de Ponte de Lima para 1910.

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Vergem essencialmente das do misticismo da santa poetisa das do frade arrabido, em que o amor divino, ins- piração de ambos, toma tantas Vezes a côr do amor iiu- mano !

Tem outra magestade, outro pensamento e outro sopro de inspiração a poesia biblica de Luiz Caldeira !

E' no numero da Revisla Popular, correspondente a 5 de fevereiro de 1851— quando contava vinte e quatro annos que, sob aquelle titulo de Flores da Bíblia, em um prologo, a que o nome de Introducção, escripto parte em elegante prosa e parte em verso, expõe o pen- samento do seu teníamen grandioso.

Impõe-se-me o dever de pôr aqui uns excerptos d'essa prosa e d'esses versos.

Expõe n'aquella a ideia do seu poético emprehendi- mento pela forma seguinte :

A Bíblia, o mais admirável de todos os livros que existem no mundo, é um poema, mas um poema magnifico como o espirito que inspirou os seus differentes cantos, e magestoio como o assumpto que trata.

Singelo e tocante no livro de Ruth ; austero e profundo em Job ; pomposo, magnifico e sublime, nos cânticos ; terrível e amea- çador, no propheta /saias, aquelle livro sublime ora comove, ora rasga o coração do homem ; e arrebata-o sempre da esphera em que se agita, ás regiões superiores conhecidas unicamente por Deus e por suas angélicas creações.

La Harpe, Fenelon, Bossuet, Diderot, J. J. Rousseau, e muitos outros escriptores de reconhecido merecimento, disseram, sobre as bellezas poéticas dos livros santos, tudo que era possível dizer-se : nada mais poderei portanto accrescentar a este respeito a não repe- tir as palavras d'aquelles auctores.

Os cânticos de Moysés são excessivamente superiores a tudo que escreveu Homero ; e este mesmo poeta é quasi nada, se a par

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das suas obras se colloca a niagestade dMsaias a pintar as n-.agnifi- cencias de Deus.

Querer fazer da Bíblia um poema seria fazer uma coisa que está feita ; colher porém parte d'essas flores de que estão semeados os livros santos, sujeita-las ao metro e linguagem nacional, é a em- preza que me propuz ; e esta empreza é tanto mais difficil quanto é grande o risco de depreciar com uma noVa forma as bellezas d'essas composições dos escriptore- sagrados.

Vejam agora os leitores o começo da Introducção em verso :

Passae aos olhos meus, sombras sagradas, Magestosoí heroes dos Livros Santos, Augustos nomes, imniortaes imagens Do povo do Senhor ! Os tempos correm, Da mào divina os séculos s'escoam, Apagam-se as Nações, somem-se Impérios. E de entre as ruínas de esq.iecidos povos Vos.sa gloria immortal scientila sempre.

Seguem-se mais cento e quarenta e dois Versos, eguaes a estes na elevação e espontaneidade garreteana.

É na poesia bíblica que o poeta conquistou o seu maior quinhão de gloria.

São tão desconhecidas as suas producçòes que o me- lhor culto que pode render-se á sua memoria litteraria é torná-las conhecidas.

Por isso para aqui transcrevemos as estrophes sublimes da Jerusalém. Vão todas porque não sabemos fazer es- colha, ou a quaes dar preferencia. Não nos atrevemos a mutilá-las.

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Jerusalém

Como assim solitária está assentada uma cidade cheia de povo : chegou a ser uma como viuva a senhora das gentes.

Jeremias.

Quem tivera a lyra d'ouro Dos prophetas de Sião ! Quem vira as terras da Syria^ Por onde corre o Jordão ! Quem vira os campos despidos, Os muros encanecidos Da velha Jerusalém, Que nas partes do Oriente Brilha ainda á luz fulgente Do astro de Bethelem.

Teu nome é grave poema, O sacro-santa cidade. Escripto em letras de sangue Nos fastos da humanidade. Um brado teu no Oriente Revolveu todo o Occidente, Dobrou a cerviz do mar : Abalou fortes impérios, Fez em vastos cemitérios Tuas arêas tornar.

Quem não tem curvado a fronte. Sob as arcadas sombrias. Ouvindo o órgão chorando Co o pranto de Jeremias ? Quem não ouviu pelas naves Passar. os cantos suaves Dos poetas da Judêa ? Quem entre aquella harmonia Não bebe o fel d'agonia Da cidade que prantêa ? !

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Jerusalém, a senhora, A rainha d'Israel ! Aquella pátria soberba Cantada por Daniel ! Que recordações de gloria ! Quantas paginas d'historia N'este nome de Sião ! Quem não pensou um instante N'aquelie drama gigante De Christo, da Redempção? !

Magos poetas da Syria, Inspirados pelos céus, Lyras sagradas da Biblia Chorando a ira de Deus, Vossa passagem no mundo Foi um gemido profundo, Um grito d'escraVidão ; E vossas sombras sagradas Choram inda debruçadas Sobre as aguas do Jordão.

Oh ! se eu escutar podéra Do deserto a brisa ardente, Dos rios de Babilónia Sobre a languida corrente ! Se beijar pudera os traços, A senda de vossos passos Nas terras do captiveiro ; Se o ecco de vossas magoas Ouvira gemer nas aguas, E nas folhas do salgueiro !

Não posso ; a mão do destino Prendeu-me em terra distante ; Do vosso inspirado engenho Sigo a estrella scintillante; E escuto a voz divina Das harpas da Palestina, Dos psalmos do rei cantor ; E colho as flores caldas, As lagrimas desparzidas Sobre a terra do Senhor.

_ m

Deixo vagar os meus olhos Sobre as paginas da historia. E pelas trevas do tempo Vejo brilhar vossa gloria; Vejo, nas remotas eras, Passar as sombras austeras Dos velhos reis de Judá, Cujos túmulos desertos Fixam, entre abertos, O valle de Josaphat.

Os tempos fogem debalde P'ra ti, ó Jerusalém, PVa ti, cidade guardada Pelo Golgotha e Belém ! PVa ti, que ostentas d'um lado Esse berço consagrado D'uma crença sem egual, E do outro a sepultura, Que tragou a raça impura DMmperio quasi immortal !

Que importam chagas abertas Pelo ferro, e a escravidão, PVa ti, a eterna cidade De David, e Salomão? Vês Babylonia deserta, Sua memoria coberta Do lodo das tradições; E a estrella dos teus magos. Por cima de teus estragos. Brilha aos olhos das nações.

Teus patriarchas dormiam. Em sua eterna mansão, Escutando a voz das aguas Da torrente do Cedrão, Junto do valle sagrado, E pelos céus destinado PVa julgar a humanidade ; D'esse valle de mysterios, Que tem de vêr os impérios Entre o mundo e a eternidade !

170^

E veio o ferro acordal-os De Nabuchodonozor, Instrumento dissoluto Das justiças do Senhor : E suas cinzas dispersas Foram na terra submersas Com o teu templo sem par : O ouro de teus altares Gasto nos impios folgares Do devasso Balthazar.

Chorae, prophetas sagrados, Chorae, filhos de Sião, Escravos de Babylonia, Da mãe da devassidão ! Vossas tribus perseguidas, Vagam tristes, e perdidas Nos desertos de Judá ; Chorae, porque o vosso pranto Vae erguer o denso manto Das ira.s de Jehovah.

Eis emfim, eis d'Izaias A prophecia de ! Curvae, ó reis, o joelho, Que outro rei nascido é : Outro rei, que a um sopro escasso Dispersa os astros no espaço, E povoa a immensidade ! Outro rei, muito diverso, Que tem aos pés o universo, E na mão a eternidade !

Jerusalém, foi immenso Qual teu nome o crime teu : Que o diga, no mundo errante O resto do povo hebreu ; Que o diga a cruz do martyrio. Que em teu nefando delirio Viste do monte Sião ; Que o diga Israel inteira, Vergando em terra estrangeira Co'o peso da execração.

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Quem pode pintar agora As tuas tribulações, Ora captiva, por terra, Ora orgulho das nações? Ora vendo o sol d'Oriente Deslumbrar do mundo a gente, Mostrando-lhe a cruz divina, Ora no lodo arrastada Pela torrente abrazada Da tormenta de Medina.

Bradaste, e todo o Occidente A teu brado estremeceu I E o turbilhão das cruzadas Os impérios revolveu ! \'êdes as arêas ardentes. Testemunhas indifferentes D'essa guerra colossal ; Os feitos de Godofredo, De Balduino e Tancredo, Heroes do Tasso immortal.

Agora triste, esquecida. Pobre filha d'lsrael. Vês teu templo profanado Pela planta do infiel ! A Voz chorosa do vento E para ti como um lamento Na harpa cie Jeremias : És cidade de tristezas. Passou nas tuas grandezas O sopro das prophecias.

Mas tu não podes morrer. Não podes, santa cidade; Tu vives àó do passado. De lembranças, de saudade Pôde o tempo fugitivo Esmagar império altivo, Consumir as gerações ; Mas não roubar á memoria Todo esse livro d'historia. Guardado nas tradições.

J77

Tu vives de cada pedra, Que marca um passo de Deus, Da estrella que aos ires reis magos Dirige os passos dos céus; Vives de pas-adas magoas, Do gemer das pobres aguas Da fonte de Siloé; K d'angelica poesia, Da vaga melancolia Da Virgem de Nazaretli.

Tu vives de teus prophetas, De Jerichó, do Jordão, Da Judôa, do Mar-morto, Da gloria de Salomão ; Vives da vida do mundo, D'esse mysterio profundo Da vida do Redemptor ! Tens ainda régio manto, Por throno o sepulchro santo, Por sceptro a cruz do Senhor !

Que dizem os leitores da sublimidade d'esses Versos? Não ousamos fazer comparações, nem insistir nas que

ficam feitas !

Não podemos, nào as sabemos fazer !

Por um lado, a raridade d'este género de poesia e, por outro, a pobrêsa do nosso saber !

Não alcançamos iêr os versos do brasileiro Pereira Caldas (1), nem os de João Pinto Delgado, cuja persona-

(1) Padre António Pereira de Sousa Caldas, poeta basileiro, for- mado em leis pela Universidade de Coimbra, que chegou a ser des- pachado juiz de fora de Barcellos, e depois se consagrou ao estado ecclesiastico. Nasceu no Rio de Janeiro em 24 de junho de 1/62 e falleceu em 2 de março de 1814. (Vid. cit. Diccionario Bibliographico,

de Innocencio, tomo 1.°).

12

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lidade conhecemos pela Memoria do íallecido erudito escriptor Souza Viterbo (1).

Mas pelas apreciações, que lhes são feitas, julgamos terem ambos ficado muito áquem do poeta contemporâneo.

A leitura dos primeiros annos da nossa mocidade trouxe- nos á memoria o proemêto, que se encontra nas Premières Méditations, de Lamartine : intitulado La Poesie Sa- créc', dedicado, com uma nota, a Mr. de Genoude.

Relendo agora os bellos versos do grande poeta francês, não sentimos empalidecer a admiração pelos carmes subli- mes do poeta português !

Diz a ultima estrophe do poemeto de Lamartine :

Silence, ô lyre ! et vous, silence,

Prophètes, voix de l'avenir !

Tout l'univers se tait d'avance

Devant Celui qui doit venir.

Fermez-vous, lèvres inspirées ;

Reposez-vous, harpes sacrées,

Jusqu'au jour oíi, sur les liauts lieux,

Une voix au monde inconnue

Fera retentir dans la nue:

Paix á la terre et gloíre aux cieux!

V

Exige capítulos especiaes, n'este trabalho, o que vae dizer-se.

Para que a sorte do poeta lhe não fosse em tudo e

(1) João Pinto Delgado, judeu portuguez nascido em Silves e fallecido em 1590. (Vid. cit. Diccionario Bibliographico, tomo 4.° e 10." e a citada Memoria de Souza de Viterbo).

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sempre fatal e adversa; para que o seu nome não desap- parecesse ficando para sempre sepultado nas escuras tre- vas de um perpetuo olvido de que não podiam redimi-lo as poucas linhas de Lopes de Mendonça, quiz a fortuna, como que arrependida, que, volvidos annos após a sua morte, um escriptor illustre lhe consagrasse algumas pagi- nas, brilhantes como todas aqueilas em que elle pôs a elo- quência e o encanto do seu fulgurante e prodigioso talento!

Foi Pinheiro Chagas.

Foi este insigne litterato, este brilhante e infatigável polígrafo que também foi um poeta - quem lhe sagrou a memoria como a de um predilecto das musas e eleito da inspiração ! Foi quem lhe assignalou o tumulo, depon- do-lhe sobre este a aureola de vate sublime!

Colocando-o ao lado de Soares de Passos, o imortal auctor do Firmamento e da ode a Camões tão prema- turamente morto também e de Lobato Pires, outro pre- dilecto de talento e de desventura (1), intitulam-se Três Poetas as paginas, a que nos referimos, apparecidas pri- meiro no Aichivo Pittoresco e transferidas depois para o livro, que tem por titulo Ensaios Criticos (1886).

Julgamos de toda a vantagem, para quem lêr, substi- tuir a nossa descolorida prosa pela prosa elegantissima de Pinheiro Chagas e versos de Luiz Caldeira, porque será substituir chumbo ou pinchebéque por oiro sobre marfim.

Começa assim Pinheiro Chagas:

Corrêa Caldeira apenas chegou a balbuciar a linguagem sublime, que, estamos bem certos, elle faiaria depois com immensa superiori- dade.

.... As poucas poesias, que elle deixou, ou talvez as poucas que eu conheço d'elle, dá-r;os direito de pensar que, se tivesse vida, e podesse desprender livremente o seu génio, havia de occupar um dos mais elevados logares na litteratura contemporânea, como tenta- remos mostrar nas paginas que seguem.

(1) Sobre o talento e desventuras deste infeliz poeta pode lêr-se um artigo de Bulhão Pato no Atmanacli de Lembranças ^dLVSL 1885.

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Depois, no capitulo especial que lhe consagra, diz :

Não se revelou completamente o poeta ; três ou quatro poesias formam o verdadeiro pecúlio litterario ; mas que imaginação, que ar- dor, que verdadeiro enthusiasmo transluzem. bastantes vezes incor- rectamente, n'um pequeno legado que deixou á posteridade.

Como n'elle se sente, não o litterato, que adoptou a especiali- dade da poesia, mas o poeta, o verdadeiro poeta, que chora, que geme, que delira, e que lança ao publico essas paginas soltas, em que se revela o desalinho da inspiração, a que a lima não succedeu ; por- que parecia que o poeta presentia o seu prematuro emudecer, e tinha pressa de aproveitar todas as caricias da musa, e de sorver até á ultima gota, no cálix dourado da poesia, esse licor inebriante dos sublimes delírios.

Leiam alguns dos fraguementos das Flores da Bíblia, livro que elle nunca chegou a publicar.

Vejam o Mar Morto.

Pelo elevado Valor, que o brilhante escriptor a esta poesia de Mar Morto, aqui a vamos publicar, pondo em notas as apreciações que elle faz.

O Mar Morto

Na terra gretada e nua (1) Pesa um ceu abrasador ; Áridos montes d'areia. Tisnados pelo calor :

(1) Como o poeta se possuiu bem da grandeza biblica do quadro, como encontrou na sua palheta não as cores mais explendidas, mas também as mais próprias para o pintar.

A voz do poeta abafa-se n'um religioso terror : as paizagens não as descreve só, mostra-as taes quaes ellas devem ser.

Veja-se a descripção do principio:

Na terra gretada c nua

Transcreve toda a primeira decima.

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Tudo immovel, mudo, absorto. Tudo fulminado e morto, Nesse valle de terror : O mesmo vento se cala : o silencio aqui falia Das vinganças do Senhor I

Ao longe, o sulco azulado

Do poético Jordão,

Que vem trazer ao Mar-morío

As lagrimas de Sião :

E sob os céus, que scintillam,

Da Arábia as serras desfilam

Até que perder-se vão

Co os pardos morros d'areia

Das montanhas da Judeia,

Vigias da Solidão! (1)

Xa terra immovel s'estende.

Como liquido metal,

Do Mar-morto a face immensa

Adormecida no vai.

Mar-morto 1 lagoa impura I

Mudo abysmo, em que murmura

Uma agonia immortal I

Mar de fúnebres lembranças.

De suspiros, de vinganças.

De Sodoma. a sensual !

Xo mudo espelho das aguas As margens pintar-se vem, Co'a face nua e queimada Das serranias d'alem ; Com a terrível paisagem, Que dos raios a passagem, Xa fronte marcada tem ; Com a imagem devastada D'essa terra fulminada Que tanto pranto contem !

(1) Depois de transcrever esta decima. Pinheiro Chagas diz: "Este quadro é perfeito. A descripção como que nos opprime. Invo- luntariamente procuramos respirar, como se realmente nos rodeasse a atmosphera abafadiça das plagas do lago Asphaltite.

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E que silencio profundo

N'esse espectáculo sem par !

Que terror povoa ainda

A superfície do mar !

Nem uma vaga murmura,

Nessa vasta sepultura

De mysterio e de pesar,

Aonde as aguas serenas

Vem, de quando em quando, apenas,

Nas margens rumorejar.

Não tem a terra uma planta. Em que gema a viração, Um fio d'agua corrente. Um florinha em botão I O céu, vaporoso e ardente! Nem uma ave innocente, Que povoe a solidão! Alguma águia pesada, Que bate o vôo cançada, Para as montanhas de Hebrãol

Contudo, aqui foi Sodoma, Além Gomorra existiu ; Entre os encantos e as galas Todo um povo aqui dormiu ! Havia fontes, frescura; E fofa branda verdura Essas encostas vestiu ! Agora, luto somente. Porque a mão do Omnipotente, De sobre a terra as baniu !

Oh! Deus, que justiça a tua! Que assustadora lição ! Um povo todo esmagado, Geração por geração ! Que pranto, que áó profundo, D'aquellas aguas no fundo Ainda bradando estão ! Como se neste espaço, A passagem do teu braço. Teu grito de maldição !

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Agora o sol fulgurante Surge num céu de rubim, Em que lentamente passam Vapores côr de marfim ; Como que débil e exangue, O seu raio côr de sangue Tinge as nuvens de carmim, E os píncaros incendeia Das alturas da Judeia, E das terras de Siddim.

Mas quando a voz da tormenta Começa ao longe a bramir, E um denso manto sombrio Vem de luto o céu Vestir ; Quando a louca tempestade, Nos echos da soledade, Vem desgrenhada rugir; E que as rajadas do vento. Chorando no firmamento, A terra vem saccudir;

Então o valle desperta Do seu somno secular; Do lago os fundos abysmos Se rasgam de par em par ; Densos turbilhões de areia. Que a luz do raio incendeia: Giram rápidos no ar, E correm sobre o deserto Entre o fúnebre concerto Dos furacões e do mar I

Vagas turvas, espumantes, Fervendo em alvo cachão. Fogem batidas dos ventos, E, de baldão em baldão, Vão rebentar furiosas Nas praias betuminosas. Do lago da maldição. Cuspindo, nas penedias, As espumas alvadias, Rasgadas pelo tufão !

_ 184

No poente, côr de sangue, Bruxulêa o temporal, Aonde as azas de fogo Sacode o génio do tnal ! Ronca o trovão nas montanhas ; E, das tremulas entranhas Do mar, do seio do vai, Illusão, delirio ou sonho, Sobe como um grito medonho. Um gemido sepulchral !

Como que as torpes cidades, Que as vagas em si contém., Estremecem nos abysmos, E be lamentam além ; Essas irmãs deshonestas. Que adormeceram nas festas Aos pés de Jerusalém; E um anjo, co'a ponta daza Foi desperta-las em braza. Num céu em braza também ! (1)

Abrahào debalde implora ! Não pôde o Senhor mover ! Nem dez justos, que buscara. Nem dez, pôde escolher! E Sodoma adormecida. Profana, torpe, esquecida. No seu nefando prazer. Foi ainda, ébria e devassa, Bradar por sua desgraça, E o próprio Loth offender!

(!) Depois de transcrever esta decima e as quatro anteriores. Pinheiro Chagas escreve :

'Ha um verdadeiro delirio n'esta descripção; o génio do poeta corre desgrenhado, como o génio da tempestade, e o espirito do lei- tor, arrastado na carreira vertiginosa, quasi que sente, dentro em si, o temporal medonho, e pára, afinal, pávido e extático, a contemplar o quadro sublime, que doudeja furioso dentro de si. A inspiração apoderou-:-e do poeta, arrancou-o do mundo prosaico e transpor- tou-© ás espheras da sublimidade, como o carro de fogo tansportou outrora o propheta do lodo da terra aos âmbitos do empyrio !

Vê-se que, ainda que quizesse, não podia parar. . .

185

Assim, a terra despida Inspira tristeza e dó; O mar espelhento e mudo, Pensativo, triste e I Como que a sombra invisível Das iras do Deus terrivel D'Israei e de Jacob, Inda nos ares troveja. Em quanto ao longe bafeja Os valles de Jericó !

Inda um mysterio insondável Ha nesse mar sem egual, Que desdobra amargas aguas Por suas margens de sal ; E as condemnadas cidades, Nas verdes profundidades Dos abysmos de crystal, Surgem, ás vezes, sombrias. Petrificadas múmias. De um corpo monumental I

Até os mesmos vapores

Do lago de perdição,

Fétidos, levam ao longe

A febre, a desolação !

E os fructos. que apparecem.

Que isolados esmorecem

No meio da solidão.

tem, no seio abrasado,

Um pó, subtil e tisnado.

De denegrido carvão !

O coração arquejando. Treme de assombro e pavor, Ante essa terra deserta, Tisnada pelo calor ! Tudo immovel, mudo, absorto. Tudo fulminado e morto Nesse valle de terror ! Tudo tomado de espanto Pelo sopro sacrosanto Da cólera do Senhor I

186

Nas duas poesias bíblicas, que ficam transcriptas, todos poderão admirar a pujança do seu estro, remontan- do-se até Deus e aos primitivos tempos da humanidade!

Parece-me encontrar n'essas duas composições o mes- mo divino sopro do Le Feii da Ciei, de Victor Hugo (1).

V

Mas o poeta ficou sempre olhando para as bandas do oriente e com o seu pensamento como que preso e exclu- sivamente absorvido na antiguidade biblica?

Deixou de beber em outras fontes da inspiração?

Julgou a sua musa somenos e indigno d'ella qualquer outro assumpto?

Não!

Luiz Correia Caldeira commungava n'aquelles cânones da arte e de universal bom gosto, legislados por Victor Hugo, e que o génio immenso d'esse simi-deus litterario tão admiravelmente executou e impôz ao mundo das le- tras!

E' no prologo das Orientaes, que elle os expôz e for- mulou :

L'auteur de ce recueil n'est pas de ceux qui reconnais- sent à la critique le droit de questionner le poete sur sa fantaisie, et de lui demander pourquoi il a choisi tel sujet, broyé telle couleur, cueilli à tel arbre, puisé à telle source. L'ouvrage est-il bon ou est-il mau Vais? Voilà tout le domaine de la critique. Du reste, ni louanges ni repro-

(1) Les Orientales.

187

ches pour les couleurs employées, mais seulement pour la façon dont elles sont employées. A voir les choses d'un peu haut, il n'y a en poésie ni bons ni mauvais sujets, mais de bons et de mauvais poetes. D'ailleurs, tout est sujet; tout releve de Tart; tout a droit de cite en poésie. Ne nous enquerons donc pas du motif qui nous a fait prendre ce sujet gaí, horrible ou gracieux, éclatant ou sombre, étrange on simple, plutôt que cet autre. Examinons comment vous avez travailié, non sur quoi et pourquoi.

Hors de là, la critique n'a pas de raison à demander, le poete pas de compte à rendre.

No mesmo volume da Revista Estrangeira, em que Correia Caldeira publicou a Jerusalém e o Mar Morto, apparece a Melancolia, bella expressão do seu lyrismo.

N'essa poesia ha versos, como este:

Tu és a Vaga profunda. Que sobre a praia suspira, Harmonia gemebunda Das cordas da eterna lyra, És a lua, que suspensa Corre na abobada extensa, Como uma pérola imensa N'uma concha de saphíra!

És o som de brônzeo sino Que bate ao longe trindades ; És a estrella de ouro fino; O murmurar das cidades; O castello abandonado. Esquecido, derrocado, Como o espectro do passado Chorando antigas saudades.

188

Apparece, em differentes números, o largo poemeto, que tem por titulo Uma Paixão— Romance em versos e em Cartas (pag. 205 a 206, pag. 240 a 241 e pag. 301 a 303).

Não tem assignatura. Mas, pela contextura e esponta- neidade do verso solto em *que era verdadeiro discípulo de Garrett e pela repetição de phrases suas, empregadas em outros trechos poéticos; e por ser publicado em jornal litterario de que era redactor, pode afiançar-se pertencer- Ihe e ser o seu auctor. (1)

Sem assignatura foram publicados na mesma Revista os dous quadros biblicos, em prosa, que têm por assumpto um Eva e o outro Agar, acompanhados de duas bellas gravuras, e tem de considerar-se tão seus como se esti- vessem assignados com o seu nome.

Ainda ali apparece a poesia dedicada á memoria de Gar- rett, que Pinheiro Chagas diz estar abaixo do seu talento.

Mas mostra como elle tinha esse seu mestre no cora- ção e no pensamento.

Afora os versos de poesia biblica aquelles a que o auctor dos Ensaias Criticos maior valor é á poesia inti- tulada a Voz do Oceano.

Seria defraudar a memoria de Luiz Corrêa Caldeira

(1) Tenho para mim de que nenhuma duvida pode haver de que os versos d'esse poemeto são do redactor da revista. O anonymato tem fácil explicação. Traduz talvez um sentimento de pudor!

Não quiz confundir a sua religiosidade de marido inseparável do seu nome, com a sua phantasia de poeta. Não conheci pessoalmente Luiz Caldeira, mas conheci o irmão; e, pelas austeros e meticulosos escrúpulos d'este, descubro os d'aquelle.

189

não traslasdar para aqui o que d^essa composição diz o brilhante escriptor e critico auctorisadissimo, que é tam- bém o poeta do Poema da Mocidade.

Vejamos exclama- a obra prima do seu talento, a poesia em verso solto intitulado a Vos do Oceano, em que se encontram qua- dros que Garrett intercalaria com orgulho no principio de quinto canto do Camões. Não achem ousada a comparação. Leiam e julguem.

Oiçam o principio, e admirem a gradação lenta e artística, que prepara tão bem o effeiío dos dous últimos versos:

Vento das noites, que a meus pés revolves As folhas amarellas do arvoredo ; Lúgubres sons da livida floresta ; Aguas do rio, que fugis abaixo. Beijando as margens tristes sem flores, E reflectindo nos céus em que não brilha Uma estrelinha só; vozes sem nome, Que murmuraes nas regiões do espaço ; Deixae que o grito immenso do Oceano No silencio geral se escute apenas.

Que descripçòes se seguem a este bonito exórdio ! Como o poeta soube escutar as vozes dos mares, e como soube traduzir as impres- sões que ellas despertaram no seu peito! Corrêa Caldeira sentiu com um fogo indisivel, e o quadro, que pinta na imaginação, repro- du-lo na tela do poemeto com uma verdade e com um vigor admirá- veis! Vede o mar em noite de bonança:

Vêde-o beijar as rochas carcomidas Por essas praias, que o luar inunda: Como uma virgem, tremula de pejo, E que o amor, mau grado seu. arrasta, A vaga no areal passa gemendo ; ' A fraga cinge em fugitivo abraço, E foge vagarosa, desparsindo Argênteo pranto sobre limos verdes.

O pensador succede ao contemplador. O poeta debruçando-se so- bre o abysmo do Oceano, pergunta a si mesmo que mysterios se escon- derão sob aquellas aguas. no fundo tenebroso e nas insondáveis entranhas desse leão espumante, esconde-se um mundo hórrido!

190

Alli chimeras mil passam medonhas !

Fabulosos jardins alli florecem

Sobre um solo de pérolas e conchas;

Alli, das maravilhas, escondidas

Aos olhos dos mortaes, são testemunhas

Entes sem nome que talvez olharam

Das creaçòes as obras primitivas,

E que se arrastam no despojo immenso

Cesquecidas nações, de mortos séculos.

Alli ainda os continentes jazem

D'um mundo que ha-de vir; alli se encerram

Povos e gerações talvez inteiras!

E nos segredos da grandeza eterna

Suas ondas o mar rola bramindo !

Vejamos ainda a descripçào que se segue, e lastimemos mais uma vêz a sorte fatal que prostrou um génio que se poderia elevar a ta- manha altura !

O mar, ha pouco tranquilo e bonançoso, desperta finalmente á voz da tempestade. O génio da procella corre desgrenhado por sobre as ondas, e esses liquidos corseis, de crinas espumosas, empinam-se furiosos ao sentirem o látego da tormenta ! A descripçào do poeta é inexcedivel. Ha um trecho de prosa com que o podemos comparar. É verdade que esse trecho é a obra prima de um dos primeiros pro- sadores franceses. É a descripçào que se no Capitaine Paul de Alexandre Dumas.

Se me não tivesse alongado tanto em citações, transcreveria essa admirável pagina de prosa. Não resisto, contudo, á tentação de citar o final do quadro.

Pela extensão das praias se levantam,

Em nos mares, as imóveis penhas.

Á luz fugaz do scintilante raio

Suas frontes rugosas relampejam ;

A tormenta sacode em torno delias

Alvo sudário d'humidos vapores;

E, ao Vê-las assim, quedas, tranquillas.

Na confusão da natureza inteira,

Quem poderá affirmar que não festejam.

Mudos espectros, sob um veu de espuma,

Da morte os anjos, que passando bradam.

Suas azas de fogo sacudindo

Nas solidões do furibundo Oceano !

191

Creia o leitor que o poeta, que escreveu versos como estes, é quasi desconhecido na sua pátria ! e que, para se poderem ler os seus escriptos, é preciso folhear intrepidamente os periódicos litterarios da épocha em que viveu.

Portugal é tão abundante em poetas desta força que, um de me- nos, segundo parece, não faz falta na inimensa lista !

Refere-se ainda Pinheiro Chagas elogiosamente á poe-^ sia A Minha Sina.

Aprecia largamente a traducção do Oceano Ab,v, de Victor Hugo.

Apesar diz de ficar a uma immensa distancia do poeta fran- cez, comprehendeu perfeitamente a ideia da poesia, e conservou-lhe o tom de infinita tristesa.

Lendo o original e lendo a traducção, parece-nos que escutámos um canto delicioso e plangente e que ouvimos depois o echo longin- quo que lhe repete as notas, enfraquecidas sim, mas egualmente sen- tidas, egualmente melancholicas.

Compara em seguida algumas das estrofes de Victor Hugo com a traducção, e faz a sua critica notando-lhe as bellesas e os defeitos.

VI

Aqui encerro este trabalho, que nem sei que nome possa dar-lhe.

Não é um estudo da obra do poeta e muito menos uma critica delia.

192

Não é um panegírico, porque não dispomos das tintas e cores litterarias, nem da académica auctoridade, que seria preciso imprimir-lhe.

E' apenas um feixe de noticias e informações sobre um poeta iliustre, mas quasi desconhecido!

Quizemos chamar a attenção de algum desvelado cul- tor das letras, de coração dedicado e penna iliustre, que

A ponte antes de mntilada e tal como era quando o poeta nasceu Tirada de uma velha gravura de 1780, que se encontra nos Estrangeiros no Lima

com elementos e faculdades que nos faltam, reunindo em volume todas as admiráveis composições do desde- nhado vate, lhe eleve o monumento litterario a que tem direito.

Sempre nos doeu o olvido que tem pesado sobre o seu nome! Até na pequena terra, de que é filho tão il- iustre!

Quiz pagar-lhe o culto de admiração e de amor que, em meu coração, sempre tem existido pela sua persona- lidade litterariamente tào alta e pessoalmente tão nobre

193

e tão pura; e (porque não dizê-Io?. . .) em que entra tam- bém a lembrança daquella, cujas mãos acariciaram o poe- ta, quando menino, e as quaes eu tive a infelicidade de não poder t)eijar e molhar com lagrimas quando ficaram para sempre arrefecidas !

13

NOTA 1." O pae do poeta

No Dicionário biográfico de Portugal se encontram os seguintes traços da vida de losé Marques Caldeira :

Nasceu em Coimbra a 6 de janeiro de 1786 e falleceu em Runa a 11 de fevereiro de 1855.

Fora destinado por seus pães á carreira das letras, mas os acon- tecimentos de 1808, em que o estrangeiro invadio a pátria. Vieram afasta-lo dos estudos. Assentando praça no batalhão académico, en- trou nos sangrentos combates da Roliça e do Vimeiro.

Passando depois ao exercito regular, aiistoií-se no batalhão de caçadores n." 6, assistindo ás batalhas do Bussaco, de Salamanca e de Fuentes de Honor, na qual ficou gravemente ferido.

Acabada a guerra peninsular, foi despachado alferes para caça- dores n.° 12 em janeiro de 1818 e promovido a tenente em junho de 1821.

Professando ideias liberaes, entrou nos combates da Cruz de Morouçus e da Ponte do Vouga em 26 e 28 de junho de 1828, mere- cendo os elogios e recomendação do major Francisco Xavier da Silva Pereira, depois Conde das Antas. Emigrou por Qaliiza, concorrendo muito para que o seu batalhão entrasse em Hespanha bem discipli- nado, embarcando depois para Inglaterra e de para a liha Terceira, onde foi requisitado peio comandante do batalhão académico, João Pedro Soares Luna, para instructor desse corpo.

Fêz .parte da expedição, que desembarcou no Mindelo, destin- guindo-se logo na sortida a Villa do Conde. Destinguiu-se depois em outras occasiões, principalmente no ataque ao sitio do Pasteleiro, no dia 5 de julho, em que ficou gravemente ferido. Recebeu então pelo se:i valor a cruz da Torre e Espada. Também se distinguiu no com- bate de 25 de julho de 1853, em que, defendendo o posto que lhe fora destinado, á direita do reducto de Campanhã, mereceu os elogios dos seus superiores. Levantado o cerco do Porto, continuou a tomar parte activa nas operações, commandando a 6." companhia de caça- dores n." 12, prestando n'essa qualidade grandes serviços na batalha de Almoster. Foi elle que tomou a bandeira do novo regimento miguelista.

196

Na batalha da Asseiceira foi commandante das avançadas e o primeiro a romper fogo, desalojando o inimigo das suas posições e perseguindo-o até que cahiu gravemente ferido.

A 4 de setembro de 1854 foi nomeado commandante do corpo de inválidos de Runa, desempenhando este cargo até 1849, em que, pela morte do brigadeiro Palha, lhe pertenceu o governo interino deste estabelecimento. Passou ao commando effectivo quando se refor- mou, em 1851, no posto de brigadeiro.

Por penhorante confiança da veneranda senhora, que é a viuva illustre do Conselheiro António Correia Caldeira, me foram confia- dos documentos honrosissimos da vida militar do pae de seu marido, e entre esses o conceito que das suas qualidades militares, moraes e intellectuaes formavam os marchaes Duque da Terceira, Duque de Saldanha e Conde das Antas, documentos esses que são dignos da publicidade. Desviar-nos-ia, porém, do nosso assumpto, occuparmo- nos desses documentos. aproveitamos os que esclarecem as notas transcriptas.

Delles se que, antes de ser nomeado alferes para o batalhão de caçadores x\.° 12, era n'elle sargento-ajudante, e foi depois alfe- res-ajudante e tenente-ajudante.

Dahi proveio a sua longa residência em Ponte de Lima.

Sobre esse batalhão, esclarecendo quanto fica dito, é digno de ler-se um interessante artigo, que se intitula O batalhão de Ponte de Lima Caçadores n.° /P publicado no Almanach de Ponte de Lima para 1910 pelo joven, brioso e illustrado tenente José de Maga- lhães Barros de Abreu Coutinho.

197

NOTA 2.*

Nascimento do poeta. Casa em que nasceu.— Edade em que sahiu da terra natal. Ingrati- dão.— Um alvitre em honra de sua memoria.

Ainda por captlvante obsequio do Dr. José Alberto dos Reis, distincto professor e illustre reitor da Universidade de Coimbra, podemos aqui pnblicar, extrahida dos archivos d'esta, uma copia da certidão de baptismo de Luiz Corrêa Caldeira,

É a seguinte:

CERTIDÃO

O Padre Manoel José Gomes, coadjutor nesta Fregfiiezia de Santa Mari- nha d'Arcuzello, Conceliio de Ponte de Lima, etc.

Certifico que revendo o livro dos Baptismos d"esta mesma Freguezia, a folhas 183 se acha o assento do theor seguinte: Luiz, filho legitimo de José Marques Caldeira, Tenente do Batalhão numero doze, e de Dona Anna Efi» genia Corrêa, ambos da Villa de Ponte de Lima ; Neto paterno de José Mar- ques Caldeira e de Dona Joaquina Tereza de Macedo, da Cidade de Coimbra, e Materno de José Rodrigues Lima e de Dona Marianna Tereza, da dita Villa. Nasceu no dia 9 do mez de Janeiro de 1827, e foi baptisado solemne- mente com imposição dos Santos Óleos, por mim, o Vigário João Alves de Mello, no dia 13 do dito mez, e foram Padrinhos o Reverendíssimo Frei Luiz dos Sarafins, Monge Benedictino, e madrinha Dona Joanna Ritta do Carmo Saraiva, e por sua procuração tocou o Illustrissimo Gaspar Pereira Ferraz Sarmento, da mesma Villa. E para constar lavrei o presente assento era ut supra. O Vigário, João Alves de Mello. Nada mais se continha no dito que aqui fielmente copiei e ao qual me reporto. Santa Aíarinha d'Arcozello, 18 de Junho de 1844. Em ausência do Parocho, o Coadjutor, Padre Manoel José Gomes.

RECONHECIMENTO

Reconheço a lettra e assignatura supra ser do próprio. Ponte de Lima era ut supra. Em testemunho de verdade (logar do signal Publico) O Tabel- lião, António Rocha Paris.

Causa reparo que, estando Luiz Corrêa Caldeira matriculado no L" anno das faculdades de mathemaíica e philosopliia, no anno de

198

1843 a 1844, o tivesse sido com uma certidão passada em 18 de Junho d'este ultimo anno.

Haveria permissão para junctar mais tarde, depois da matricula, esse documento? Haveria uma posterior substituição por erro da anterior?

Não me é permittido agora deslindar melhor este caso.

Está pelo documento, que fica transcripto, authenticamente veri- ficado que o poeta nasceu na margem direita, e assim com visiveis indicações de ter nascido na casa das tias.

Mas qual casa era essa? Conheci ainda a Senhora D. Marcelina Saraiva morando na casa do Largo da Alegria, que faz esquina para a velha estrada, tendo n'ella fallecido no dia 6 de fevereiro de 1866 na provecta edade de 95 annos.

Penso que também ahi haveria fallecido a Senhora D. Joanna.

Evidentemente não foi n'essa casa que nasceu o poeta.

Dizia-me a tradição que as duas senhoras tinham morado na casa do mesmo Largo, fronteira aquella, e que é hoje habit"ada pelo Sr. José Maria de Abreu de Lima e sua di.-tincta famiha; e também me dizia terem residido na casa de Faldejães, que foi de João Luiz Salgado Achioli e Vasconcellos.

Em qual d'e]las residiriam, ao tempo do nascin:ento do poeta?

Eis o ponto a investigar.

O meu respeitável e illustrado amigo, Monsenhor Pereira Lima, digno Prior da freguezia de Nossa Senhora dos Anjos da Villa de Ponte de Lima, com o obsequioso intuito de auxiliar-me entre- gando-se a pacientes investigações, nos antigos livros da sua paro- chia, chegou a esclarecer este ponto por forma a não deixar duvidas.

depois de impresso o que fica escripto no texto, descobriu no livro 4.°, folhas 8, a reproducção, promovida pelos pães do neophito, do assento de baptismo da freguezia de Arcozêllo, com a declaração de que nasceu casualmente n'esta freguezia e dizendo-se que a ma- drinha D. Joanna Rita do Carmo Saraiva era moradora no logar de Faldejães.

Fica assim apurado, sem sombra de duvida, que o poeta nasceu na casa histórica, de que se occupa Lima Bezerra, nos Estrangeiros no Lima (paginas 302 a 304), e da qual começa dizendo:

Esta casa, com seu delicioso jardim, pomares, hortas, pinhal, lago e vei- gas, tanto enobrece esta freguezia. . .

Bello ninho para o nascimento de um poeta!

Vista deslumbrante a da ampla e formosa varanda, formada por

199

elegantes columnas de pedra ! Como que tendo aos pés a larga veiga verdejante a mirar-se no Lima, que a namora e beija, na estação cal- mosa; e, soffrego e ciumento, a abraça e invade no inverno!

Casa em que nasceu, em 1628, António Pereira Rego, auctor do celebre livro Instrucçani da Cavallaria de Brida, escriptor, poeta e valoroso soldado da independência nacional, que mereceu seroheroe e protogonista de um poemeto de Jerónimo da Motta, Abbade de Mujães.

Diz o poeta :

Donde o Lima a ponte morde Com dentes de cristal fino

António Pereira Rego Nasceu; e desde menino Em vez de cana pueril Montou os brutos altivos. De nobre sangue gerado, Ede acções heróicas filho, Não sei qual seja mais nobre, O herdado ou o adquirido.

E passados uns desaseis annos desde o nascimento de Luiz Cal- deira, também n'essa casa (que havia sido comprada por seu pae) nascia um querido companheiro dos meus primeiros annos, que desde logo revelou as brilhantes aptidões litterarias e scientificas de que era dotado, Lourenço Malheiro, engenheiro de minas, fallecido em 1890, quando acabava de entrar no parlamento e a fortuna parecia sorrir-lhe e que ia levanta-lo ás eminências para que os seus com- provados talentos o recommendavam!

Infeliz !

*

Terminada a guerra, era bem natural que a Sr.^ D. Anna Efi- genia quizesse ir reunir-se a seu marido. E tanto mais isso se im- punha ao seu amor, que elle soffria ainda muito do grave ferimento, recebido na batalha da Asseiceira, em que um estilhaço de metralha lhe fracturou e dilacerou o braço direito, ficando por muito tempo privado do movimento d'esse braço, como consta do attestado do Cirurgião-Mór de Infantaria Ligeira, Marcellino Miguel Gomes (1).

Ferimento este que por certo determinou a sua collocação em Runa.

Partiu pois para Lisboa a Sr."" D. Anna Efigenia com o seu filho mais novo.

António, como dissemos no esboço deste, ficou sempre ligado ás tias.

(1) Documento em poder da familia.

200

Tinha oito annos incompletos o futuro poeta das Flores da Bibíía quando saliiti de Ponte de Lima com sua uiãe.

É o que mostra o seguinte e interessante documento, que é sagra- damente guardado por sua familia:

*^ri-

SIGNA ES. liade. ài <^^annos Ahurc ^Ue*^^^^oS«^ Rosto ^f^^-e'^^-yv^ Cahéllo -. Sobrolhoi f^Oí-fiV^ Olhos Hariz 1

J_ E N D o-s E apresentado hoje nesta Prefeitura

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se lhe concede permisaio de residir nesta Capital, Tendo em sua companhia .^^g-g-^^ji. ^^."^ .<í^s<s^

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Declarou íp rnorar para ^:»^^;^*-.<^>^cs'í^4</<^ >^-;C do<:^VT^estncto a cujo Prove-

^y dor se apresentará dentro em 24 horas.

E para que possa ser admiltido em qualquer casa de hospeda o-em , cu particular se lhe passou o presente, que deverá reformar, acabado o prazo do tempo porque Ihehe concedido, sob pena de pagar 4S 800 réÍ3 de raulcta para a Casa Pia , e para o Of- ficial do justiça que for intima-loy ,

Lisboa QZH ^^íâ^f^Z^.^^íry^£^à,%i^^^^^f^i^^^r>i,Q J^

Jx yy ,^n Qyi^ecrelano ueral

Deveria terminar aqui esta nota que nâo é curta. Mas outras considerações me estão imperiosamente dominando o espirito.

Não posso furtar-me a faze-las. Não posso esquivar-me a dizer

201

que os representantes do município de Ponte de Lima teem uma di- vida em aberto para com a memoria desse mallogrado mancebo, que, não obstante ter fallecido aos trinta e dois annos, projecta rever- berações de gloria sobre a terra do seu berço !

Tem-na sempre tido muito grande para com D. Francisco de S. Luiz!

Sim ; porque não pode julgar-se solvida para com a sua memoria tão illustre em pôrem-lhe o nome (sem a mais singela lapide desi- gnando a casa em que se suppòe nasceu) em uma via publica, que não é a principal praça, nem o principal passeio, nem a principal avenida, como seria de honra para terra que o fosse! Mais para a terra do que para elle !

O seu nome é o de um benemérito da pátria !

É o de um Vulto que tem um largo logar na historia ecclesias- tica da Egreja portugueza, na historia litteraria e na historia poli- tica do nosso paiz.

Foi um grande sábio e um grande patriota !

Não é o filho mais illustre de Ponte de Lima, mas um dos filhos mais illustres de Portugal ! É um dos seus varões illustres !

E porque assim hão de pensar todos os que conhecerem a sua nobre e gloriosa vida, atrevo-me a propor o alvitre de um bem pequeno monumento ! Bem simples, bem modesto e de bem fácil execução !

Para elle e também para o sobrinho. Para o poeta tão, illustre, tão esquecido e tratado com tão absoluto desdém !

Para fazer executar esse singelo monumento basta que haja, em Ponte de Lima, uma camará, não digo patriótica porque todas o são, mas uma camará que, occupando-se menos das politicas do presente, se occupe mais da politica do futuro, isto é, da educação litteraria e civica das futuras gerações.

Essa vereação, se chegar a havê-la, deverá votar uma verba, que não arruinará o município, para fazer uma edição, popular e barata, de um pequeno livro destinado a servir de premio aos alumnos das escolas e para andar nas mãos de todos, porque a todos convém lê-lo.

É o Elogio Académico de D. Francisco de S. Luiz por José Maria Latino Coelho, edição de 1873, com as notas, e não a edição posterior da Academia (1878) sem ellas.

É o monumento litterario de um sábio levantado por outro sábio!

Ficariam conhecendo as maiores bellezas a que se presta a nossa lingua e que lhe podem ser dadas! Con>.eceria;,i também as virtudes moraes e as virtudes civicas de um grande sábio e de um grande portuguez !

se que, para tal edição, seria preciso haver prévio contra- cto, fácil de obter, com a Empresa Litteraria Fluminense, que tem hoje a propriedade do livro.

202

Mas deveria este conter uma segunda parte. N'ella seriam trans- criptas as brilhantes paginas de Pinheiro Chagas, consagradas a Luiz Corrêa Caldeira e ainda algumas das mais sublimes poesias do malo- grado poeta.

Seria um livro de consagração e de preciosos e úteis ensina- n'.entos !

Lições de historia, lições de civismo, lições de litteratura !

203

NOTA 3.

Pessoa da mais alta competência litteraria nos informou que o distincto escriptor portuense, o Sr. José Pereira de Sampaio (Bruno) se havia occupado, em um dos seus livros, do nosso poeta. Procurei debalde. Resolvi-me por isso a escrever ao erudito homem de letras, perguntando-lh'o.

Teve elle a generosa benevolência de honrar-me com uma carta, que aqui se publica, porque contém o seu con- ceito auctorisadissimo, honrandu a memoria litteraria do illustre poeta.

Diz assim

«Porto, 1 de junho de 1915.

«lUustrissimo Excellentissimo Senhor.

«Nào me recordo de passagem de livro meu publicado onde tra- ctasse do poeta Luiz Corrêa Caldeira, cujo alto merecimento aliás muitoconsidero.

«Devia ter sido em qualquer artigo da Vo^ Publico, no tempo em que entremeava alli artigos políticos com artigos litterarios. Mas quando? Por agora, enfermo e cançado, não me sinto com força e disposição para fazer a busca. Fal-a-hei, porém, por isso mesmo que tenciono dar á estampa o meu proniettido livro acerca dos modernos poetas portuguezes, entre os quaes deve avultar no juizo publico Corrêa Caldeira, hoje tão injustamente esquecido.

«É o que me occorre responder á honrosa carta de V. Ex."*, e a V. Ek." agradecendo, muito penhorado, a benevolência das suas ex- pressões para mim, respeitosamente, me subscrevo

De V. Ex.^ Mt.o Alt. o Ven.»"" e Cr.''» Obg.^i-^

José Pereik.\ de S.^mpaio. «Casa de V. Ex." «Bomjardim, 414.

204

Infelizmente a persistente enfermidade do distinctis- simo escriptor não permittiu que aqui fosse indicado o n.° e anno do jornal, onde poderia lêr-se a sua apreciaçrlo litteraria.

D. Amélia Janny

I

Amélia Janny foi uma nobre mulher e uma inspirada

poetisa.

O vento dos preconceitos sociaes açoitou-lhe o berço!

206

Mas ella era como estas plantas, que os ventos não de- sarreigam, nem quebram; e antes parece que mais as fazem prender á terra e adquirir maior vigor.

A natureza não a priviligiou com dotes de formosura, mas não lhe negou os da sympathia; e era alta, elegante, gentil!

Aos setenta annos, sem curvar o peito, caminhava erecta e direita, como caminhava antes dos vinte, em que a conheci !

E o seu aprumo moral era como o physico! Tinha uma nobre altivez de sentimentos, que lhe provinha da su- perioridade do seu espirito e da consciência do seu Valor.

Foi-lhe escudo no caminho da vida! No perigoso meio, em que foi creada, ficou sempre intangivel a sua honra de mulher e imaculado o seu nome de senhora!

Pelo muro moral, que, com maior ou menor razão, existia entre os estudantes e as famílias de Coimbra, nunca lhe falei nos dias da mocidade. Nunca procurei falar-lhe, posto por vezes estivesse bem próximo d'ella. Mas sempre a acompanhei com muita sympathia, que pro- vinha do seu talento e do mysterioso romance do seu nas- cimento, que eu conhecia!

Éramos da mesma geração. Tínhamos quasi a mesma edade.

Quando ella fêz o enterro da sua mocidade, enterrou. sem o saber, também a minha !

E que lindo enterro lhes fez ! Ora vejam :

Camará Ardente

No luxuoso salão de purpura forrado, Avista-se uma urna em pedestal doirado.

Sobre ella ondeia e treme a chamma de mil lumes Respiram-se no ar suavíssimos perfumes ;

207

E sobre o pavimento, em profusão de cores, Alasíram-se festões de peregrinas flores.

Em desalinho, solta a farta e longa trança, Suspira ajoelhada e moribunda a Esperança

E defronte, gentil e bello como a aurora, Na urna debruçado, o Amor soluça e chora.

E quando esmorecia o sôm da résa Sahida a meia voz dos lábios da Tristeza

E se iam apagando os últimos clarões Dos cirios funeraes e das mortas illusões;

Então, com mão febril, fechei o athaude Onde ficava morta a núnha Juventude !

É bello e viril !

Uma das paixões, que a acompanhou em todos os dias. da sua vida, foi o amor pela sua terra!

Amou Coimbra, como se ama uma mãe ! As offen- sas feitas a Coimbra, doiam-lhe como feitas a ella pró- pria !

D'essa sensibilidade do seu affecto se encontraram provas ainda depois da sua morte !

Fez testamento. Legava os seus haveres (que eram modestos, mas sufficientes para lhe garantir uma honesta independência e a pôr a coberto das mais exigentes neces- sidades) a uma parenta, que sempre protegeu. Sabendo porém que essa parenta estava em communhão politica, com os que ella chamava os inimigos de Coimbra, deu um traço no testamento e declarou que o inutilisava !

D'ahi resultou um letigio, que está pendendo no tribu- nal de Coimbra.

208

O amor por Coimbra foi um dos elos da cadeia da nossa amizade.

Logo nas nossas primeiras conversações, coniieceu ser eu um de aqueles para quem Coimbra era a terra de encanto da poesia de João de Lemos; e que fizera meus os versos do poeta:

Sou quasi teu filho: amei-te Da vida no alvorecer. De Minerva o sacro leite Por tuas mãos vim beber !

Foi aqui que me sorria O mundo, a vida, a poesia. Sou quasi teu filho, sou !

Este commum sentir deu-nos umas relações quasi fra- ternaes !

Começaram pessoalmente bem tarde. nos últimos annos.

E como começaram ? Por forma bem simples :

Uns bellos rapazes, que me são queridos, sollicitaram a minha collaboração no Almanach de Ponte de Uma para 1910. Não soube resistir-lhes. Escrevi um artigo de homenagem litteraria a Amélia Janny, que, nos annos anteriores, apparecera como collaboradora d'essa publi- cação.

Determinou o artigo, por um lado, a admiração pelo seu talento; e, por outro, os laços de sangue, alli des- conhecidos, que ligavam a poetisa á formosa terra do Lima.

Sahiu sem assignatura, e com duas iniciaes.

209

II

Eis o artigo :

«A distincta senhora e iliustre poetisa do Mondego tem direito a entrar na galeria de figuras iliustres, que aqui se expõe annoalmente á consideração e respeito de todos os amigos desta terra.

«Não é pela collaboração, com que tem honrado estes pequenos livros. Não !

«Um titulo melhor, mais sagrado, mais intimo a impõe á nossa homenagem !

«É o serem elles estes livros como que um registo de tudo quanto gloriosamente pertence a esta querida terra do Lima; de tudo que com ella se prende e rela- ciona ; de tudo que a honra !

«Nascida juncto daquelle formoso rio, tão irmão deste nosso pela belleza das margens e pela limpidez cristalina das aguas, a senhora D. Amélia Janny tem sangue limiense nas Veias! . . .

«São-lhe aqui devidas todas as honras, como a pessoa, que também é nossa/. . .

«Mas como prestar-lh'as?

«Tendo de escrever acerca da iliustre poetisa e de pessoas, que pelo sangue lhe foram conjunctas, e aqui nasceram, como pode fazel-o a minha penna desprimorosa e ha tantos annos! entregue a assumptos alheios a cousas litterarias e até muito em divorcio com ellas?!

«Como é que, desacostumado e desfavorecido, eu

posso ter a ousadia de escrever de Amélia Janny, que é

uma sacerdotisa do bello; e que, tendo em si o fogo

sagrado da poesia, se eleva, nas azas do seu génio, a

alturas, onde a não posso seguir? !. . .

14

210

«Como?. . .

«Só o saberei fazer; poderei desempenhar-me do imprudente e pesado encargo, deixando falar o meu cora- ção, a tradição da minha família e as minhas recordações pessoaes!

«Só assim!... Desculpem-me que as eVoque; e que por ellas me dirija ! . . .

«A senhora D. Amélia Janny provém de uma família, que tem os mais illustres pergaminhos lítterarios, de que pôde orgulhar-se esta villa ! De uma familia, em que os dotes privíligiados da intelligencia e do talento foram patri- mónio commum de todos, cujos nomes andam ainda na memoria dos vivos !

«O sábio D. Francisco de S. Luiz Cardeal Saraiva; António Correia Caldeira, eloquente parlamentar e distin- ctissimo homem publico; o poeta Luiz Corrêa Caldeira, têm os seus nomes inscriptos nas folhas de ouro da histo- ria, da litteratura e da politica do nosso paiz !

«Frei Luiz Saraiva, irmão do Cardeal, foi também homem muito intelligente e instruído !

É o que sempre ouvi; e, interessantíssimo para a épocha, delle !i um largo manuscripto em poder de pes- soa, que muito me pertenceu pelo sangue e pela afini- dade.

«As duas irmãs de ambos. D. Joanna e D. Marcelina, possuíram distinctas prendas de senhoras, e uma cultura intelectual, que era rara, n'esse tempo, em pessoas do seu sexo, que nunca sahiram daqui, como creio não sahi- ram ! . . .

A senhora D. Amélia Janny como é bem sabido nasceu de um romance de amor de António Corrêa Cal- deira, que, na Verdura dos annos, foi um gentil, esbelto e amoroso rapaz.

Tendo-o eu conhecido mais tarde muito mais tarde

211

e com elle pessoalmente tratado, posso dar testemunho da grandíssima bondade do seu coração; da inexcedivel lealdade do seu caracter; e, portuguez de antiga tempera, de ser dotado de escrúpulos de honra e de uma austeri- dade de principios e de proceder, levados ao extremo do maior rigor!

<A senhora D. Amélia Janny é herdeira directa dos talentos litterarios da sua familia!

De seu tio, o malogrado poeta das Flores da Bíblia

tão cedo roubado pela morte ás palmas da gloria que o esperavam! herdou o dom privilegiado da poesia!

«Mal pensava o infeliz poeta que á creança que, sen- tada em seus joelhos, elle acariciava e beijava, estava insuflando e transmittindo a musa, continuadora da sua inspiração !

<0 poemeto— .-I Guerra (1870) tem versos, que são da sobrinha e parecem do tio ! Elle se honraria muito de assiana-los!

«Nunca tive a honra de falar á distincta poetisa!

-iíMas sempre a li. Por vezes a applaudi !

<No histórico sarau litterario, presidido por A. F. de Castilho, realisado no desapparecido e saudoso Thcairo Académico, em maio de 1862, as minhas mãos não foram as que menos enthusiasticamente a aplaudiram !

Nas minhas palmas ia admiração pelo génio poético, que a bafejava, e a minha sympathia pela familia, de que procedia !

Que saudades !

«Que lembranças dessa noite litterariamente celebre!

«O poeta dos Ciúmes do Bardo recitou a lenda de Nossa Senhora da Nazareth, a Carta á Imperatriz do Brazil, o Janota, e não sei que mais.

A sua recitação era vagarosamente cadenciada e mo- nótona !

212

« Theofilo Braga recitou uns formosos versos como elle nunca mais os fez da Visão dos Tempos.

^Nào lhes deu relevo, que fizesse impressão!

^Guerra Junqueira, quasi uma creança, apparecia, pela primeira vez, perante a academia reunida; e recitou uns Versos que mal se ouviram.

« Anthero de Quental, esse adorável rapaz de 20 annos, com a fronte aureolada de cabellos de ouro, entrou no palco que era a tribuna dos poetas com passo firme e o ar de independência desdenhosa, que predizia o futuro Calvino; o futuro auctor do Bom Senso e Bom Gosto,

Vista de Coimbra. Do lado da casa onde morava a poetisa

onde, mais tarde, a golpes profundos e brilhantíssimos, havia de deixar, para sempre, mal-ferida a auctoridade, respeitável e respeitada, do pontífice litterario daépocha!

<'Não recitou. Leu, sentado a uma mesa, alguns dos Versos, que depois publicou nas Odes Modernas.

«Dos outros poetas não ficou registo na minha memoria !

«Appareceu afinal, sympathica e timida, pela mão de Castilho, a senhora D. Amélia Janny.

«A harmonia dos seus versos (que aqui não reproduzo para reproduzir outros), a sua recitação, a suavidade da sua voz encantaram a irrequieta assembleia, que a pre-

215

meou com palmas e homenagens de respeito, bem raro nos que a compunham !

«Dessa saudosa festa h'tteraria pôde Castilho, referin-

do-se depois a ella, escrever, com justiça, o seguinte:

<Como que symbolisando a musa do Mondego, uma «gentil poetisa, veio, nova Sapho, merecer n'este certame «coroa de louros e murtha !

•^Ditosa filha de Coimbra! com os teus donosos vinte «annos em flor; com a tua voz suaVe e timida, como o «aroma exhalado da tua alma !

«Amélia Janny! perdoa-me, se hoje diante do maior «publico, te renovo os meus applausos» (1).

«Esta a prosa do insigne poeta e grande mestre da nossa lingua !

«Mas como prestar homenagem á personalidade litte- raria e illustre de Amélia Janny, sem lembrarem logo os formosíssimos versos, que João de Deus lhe consagrou, escrevendo-os no seu álbum?

«Que pode haver de mais sublime? De maior glorifi- cação para ella?

«Para aqui vou transcrever esses versos, não do volume de lyricas do divino poeta, coordenadas pelo snr. Theo- filo Braga, onde os encontro com variantes, com que não posso conformar-me (2)!

«Não ! Prefiro ir buscal-os ao meu saudoso guarda- joias do poeta ... um velho caderno com as folhas ama- relecidas e soltas, como as folhas das arvores por cima das quaes o outono passou !

(1) Conversação Preambular do poema D.Jayme ou .4 Domina- ção de Castella por Thomaz Ribeiro, 1." edição, i862.

(2) Poesias ly ricas completas coordenadas sob as vistas do auctor, por Theophilo Braga, pag. 156 a pag. 159. Faça quem quizer a comparação ; e, nas estrophes omittidas, ainda são maiores as va- riantes.

N. B. Publicam-se agora integralmente todos os versos.

214

«Para ali foram copeados do original, que não vem para aqui dizer como ha tantos annos esteve nas mi- nhas mãos ! . . .

A Amélia Janny

Oh Janny ! teus ais me exaltam ; Partem d'alma e n'alma echôam ; Filhos de alma á alma voam,

Sim Janny ! E se as lagrimas te esmaltam, Te aljofáram, te matizam, Pelas faces me deslizam,

Como a ti.

Mas tu, flor ! brotaste agora I Quando o sol mal te inda aponta, Porque choras como á conta

Do porvir? Se ella, a flor, sorri á aurora. Tua irmã na primavera, E ave e homem anio e fera

Vês sorrir?

Pomba, eu sei ! ha em toda a alma Mola occulta : por mais cedo Que lhe toque incauto dedo,

Mal nos vae ! Outra Oreb a sede acalma, Mas de pranto amargo e duro, Que é da nuvem do futuro

Que elle cae !

Tu, Janny, nas azas tuas, Do teu génio, tens anhelos. Que pediam sonhos bellos

E de amor ! Sonhas inda? tu fluctuas. nas aguas do diluvio, Viva imagem, sopro, effluvio

Do Senhor !

215

Que vês tu? Sobre a mais alta Das montanhas d'este globo. Que vês tu? N'um throno o roubo

Que é o rei. Digno rei ! que mais exalta Mais eleva os que o adoram, Quanto mais ódio liie imploram

Povo e lei.

Rei é Deus ... se é escravo o homem Rei fez elle o homem todo. Cada qual pode a seu modo

Bem viver. Pois se as feras se não comem Uma á outra; havia aquelle Que Deus fez á imagem d'elle

Tal fazer?

Se o fez, fel-o porque o sangue É manjar de régio lábio . . . Deus é justo, Deus é sábio.

Não quer tal ! Manda Deus que o boi se cangue Mate e coma, porque esse Tal qual nasce, á terra desce

Tal e qual!

Deus é livre: imagem sua Livre a alma que perscruta: Livre o braço que executa

Não servil ! Ante o crime recua, Ante o sangue . . . petrifica! Mas se um dedo o rei lhe indica

Mata o vil!

Oh, se Itália, Itália ainda Presta ao mundo um novo móbil, Se ainda á vida esta alma ignóbil

Restituo! Desce! desce éra bem vinda! Quer manná inebriante. Quer espada flamejante.

Vem, se és tu!

216

Bella és sempre! De Deus filha, Saes ao pae na formosura ! Bella és sempre, sempre pura.

Como a luz! Tu, auctor da maravilha D'este mundo, ajuda-o n'isto! Garibaldi! ou novo Christol . . .

Gloria ... ou Cruz!

Geme, pomba ! . . . Quem não ha-de , Chora, rosa! chora dhalia. Dos jardins d'esta outra Itália,

Portugal; Mas se um dia a liberdade Passa enxuta o mar vermelho. Tu, dos anjos casto espelho,

Cala o mal . . .

«A obra poética de Amélia Janny anda espalhada por tão grande numero de jornaes litterarios e outras publica- ções d'esse género, que impossivel me é dar uma relação completa de todos!

«Podem encontrar-se versos seus no Cysne do Mon- dego, Prelúdios Litterarios, Estreia Litteraria, Pano- rama Photographico de Portugal, Portugal Pittoresco jornaes litterarios de Coimbra ; na Illustração Uni- versal, A Mulher, Semana de Lisboa, Republicas jornaes litterarios de Lisboa; Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro, Almanach das Senhoras, em annos seguidos (Lisboa), A Borboleta (Braga), A Alvorada (Famalicão), A Guerra (folheto avulso), A Imprensa Por- tugueza aos Povos de Andaluzia numero único Al- manachs do Commercio do Lima, e muitas outras publi- cações.

«A musa de Amélia Janny nunca envelhece! Como Garrett, ella fará versos sentidos e bellos até morrer!

«De tão rico e opulento thesouro, querendo trazer

217

para aqui uma das suas jóias, eu poderia ter difficul- dades e hesitações na escolha! Não tenho!

«Transcrevo, devo transcrever, aquella que a auctora por certo mais ama; a que lhe é mais saudosa e mais que- rida !

«Todos que temos sentido no peito o mais santo e mais puro dos affectos, faisca divina, o amor por nos- sas mães; todos que se enlevam n'esse sentimento, mais que nenhum outro, reciproco e leal, todos que fizeram d'elle um perenne culto de saudade, que lhes é como que religião; todos hão-de reconhecer que esta poesia de Amélia Janny deveria lêr-se e ouvir-se, de joelhos, como uma piedosa oração! (1)

«Vejam:

Aos annos de minha Mãe

A ti, que debruçada no meu berço, Por noites de amargura e de agonia, Velaste, coração em dôr submerso, Abrazada na febre em que eu ardia;

A ti, que me ensinaste, entre mil beijos, A louvar o Senhor, em cada aurora, Que encerraste as esperanças e os desejos Em Vêr-me alegre e forte d'hora em hora ;

A ti, que da af feição fazendo escudo, Affrontaste o rigor de atroz destino, Que ao deixares, por mim, familia e tudo O teu seio de mãe soltava um hymno;

A ti, ó minha Mãe! martyr obscura. Que percorreste a via dolorosa, Forte do teu amor, com mão segura, A amparar-me, a sorrir-me, carinhosa;

(1) Tem nota no fim.

218

A ti, que eu vejo sempre, se a doença Me entristece, me abate e curva a fronte, Junto de mim, qual brilha, em noite densa. Uma estrella surgindo no horisonte;

Livro, em cujas paginas eu leio

Um poema de amor e de ternura.

Voz como outra não ha , seguro esteio,

Reprehensão, que sorri; perdão, que dura;

Olhar em que se espelha o affecto immenso. Onde vão reflectir-se as minhas deres, Abrigo sem egual, luz do que eu penso. Mystica urna de immurchaveis flores;

A ti, no dia dos teus annos, dera A alegria, que em prantos consumiste. Os folguedos da tua primavera, Em vêz da tua vida amarga e triste !

«Depois da harmonia d'estes versos, em que se sente o carpir meiancholico das rolas e os trillos suaves dos rouxi- noes do Mondego e do Lima, quaesquer palavras nossas se- riam. . . o pio do mocho!

Esse era o artigo pubhcado no annuario de Ponte de Lima. alli podia e devia ser publicado. o auctor se atreveria a publica-lo alli.

Quantas razões havia !

É que o talento da distincta senhora era o corolário de uma genial permissa, que, em pleno século 18, no dia

219

26 de janeiro de 1766, surge á luz e depois se manifesta existir occulta n'aquella villa!

Era o fructo de uma arvore, cuja raiz fora levada d'alli !

Era a demonstração, evidentissima, da força ao mesmo tempo querida e tremenda de uma lei, escripta pela natureza no próprio sangue de cada sêr, ora em cara- cteres dourados e brilhantes, ora em traços negros e horrí- veis ; e que se chama a lei da hereditariedade I

São bem dourados de talento e distinção os caracteres com que essa lei se lê, em pessoas da familia, que têm a mesma origem limiense !

Que força de divina luz nos glóbulos sanguíneos da obscura familia, a que pertenceu algum dos progenitores do homem illustre, ao qual, em meados do século 18, seus pães deram o nome de Francisco Justiniano Saraiva!

Depois de apparecer n"este, appareceu em quasi todas as pessoas, que teem a mesma origem, e em successivas e prolongadas gerações! (1)

Comparando o appellido da mãe dos Caldeiras. D. Anna Efigenia Corrêa com o da mãe do Cardeal Saraiva, D. Ma- ria Corrêa de Sá, vê-se que é d'essa plebéa familia Corrêa, que promana uma tão grande nobreza e fidalguia intellec- tuaes !

O artigo do annuario limiense sahiu, como fica dito, sem assignatura, mas não foi difficil á poetisa saber quem d'elle era o auctor.

(1) vae na 5.^ geração !

Um juvenil advogado, o Sr. Caldeira Coelho, neto do Conse- lheiro Corrêa Caldeira, recentemente formado, mal tomou a palavra nos tibunaes criminaes, revelou dotes de distincto orador forense.

E tal é a força da hereditariedade, n'esta familia, que entre a mãe do esperançoso advogado, a Senhora D. Maria Thereza Deslandes Caldeira, e D. Amélia Janny que nunca se encontraram havia não inteira similhança physica, mas até de gestos e de caligraphia.

220 Tive entào a honra de receber a seguinte carta:

111.'"" e Ex.'"o Senhor

Nunca me senti tào pequenina e tão grande!

Pequenina em relação ao meu valor; mas, erguida a uma tão grande altura na sua proza elegante e rendilhada, subo tanto que até se me perturba a vista !

Não tento agradecer a riquíssima moldura em que V. Ex.' metteu o meu pequeno nome.

Não o saberia fazer ; mas não posso f urtar-me ao desejo de dizer a V. Ex." quanto ambiciono conhecê-lo e apertar a sua mão, que tem de ser, por força, mão amiga !

De modo que vou augmentar a minha divida, fazendo-lhe um pe- dido : é o de, na sua passagem para P. . . avisar-me para eu ir á Esta- ção cumprimenta-lo.

É pedir muito?

A sua generosidade é capaz de dispensar esta fineza á

De V. Ex.-^ Veneradora e amiga

Amélia Ja.x.xy

Seria indelicado desprimor obtemperar a este pedido?

Com um vellio amigo, antigo companlieiro dos bancos escolares, que desde logo revelou, no inicio dos nossos estudos, possuir o cérebro de um homem de sciencia e o nobre coração de um velho portuguez, o Dr. Chaves e Castro, eu tinha um compromisso: o de ir estar com elle alguns dias e irmos juntos passear na sua bella proprie- dade, beijada pelas aguas do Mondego e do Ceira, a qual não conhecia. Esse compromisso me levou a Coimbra.

Por essa occasião fiz a minha visita á poetisa. Não foi preciso que algum guia me fosse mostrar a casa. Era ainda a mesma em que morava nos meus tempos de estudante, próximo daquella, onde, no quarto de Alberto Sampaio, pela primeira vez, falei a Anthero com aquella familiaridade escolástica, que dispensava cerimoniosa apre- sentação.

221

Durante os dias, que estive em Coimbra, a visitei nessa sua casinha da Couraça de Lisboa, onde tudo era simples e singelo, mas disposto com ordem, elegância e bom gosto.

Durante as nossas conversações, por vezes, a sua porta se abria para receber a Visita de senhoras, de professo- res e outras pessoas distinctas de Coimbra, que iam ievar- Ihe homenagens de estima e consideração.

Tantos acontecimentos tinhamos visto passar, em outro tempo, por diante de nós; tantas pessoas nos eram conhecidas, e a respeito das quaes completávamos reci- procas informações, que parecia continuarmos conversa- ções que haviamos tido no passado!

Era interessantíssimo o seu dizer, cheio de observação e espirito.

E nunca faltava o assumpto ! Mulher intelligentissima, dotada de rara memoria, durante meio século, esteve, naquella sua casinha da formosa encosta, a vêr e registar todos os acontecimentos, conhecendo mais ou menos, todos os homens distinctos das diversas gerações acadé- micas, que, n'esse largo periodo, passaram por Coimbra !

Tinha uma singular atracção aquelle ninho da ave canora! Ninho de poesia, de virtude e de bondade! Onde a caridade recebia culto por diversas formas e aparecia nas suas variadas manifestações (1).

E que deslumbrante panorama o desse formoso ninho !

Debruçado sobre o Mondego, vendo correr as suas aguas e ouvindo os rouxinoes na margem ! Abaixo a ponte. Em frente, o ridente bairro de Santa Clara, coroado pelo histórico convento com o culto e a lenda poética da Rainha Santa ! A' esquerda, ao longe, a formosa estan- cia da Lapa dos Esteios, ou Lapa dos Poetas! Mais á quem, os sítios, a que anda ligada a trágica morte da linda Ignês, as Lagrimas e a Fonte dos Amores! Sitios a que nem falta a poesia no nome, mas onde falta agora,

(1) Vejam-se as correspondências de Coimbra para o Diário de Noticias de 20 e 21 de março de 1914.

222

creio o copado cedro dos versos da Victoria Linda ^ que muitas vezes me vieram á memoria pensando na morte de uma outra Victoria Linda, que é a ultima figura deste livro !

Foi ahi, que, durante mais de meio século, a poetisa esteve entoando cânticos a tudo quanto é bello e bom; a tudo quanto é nobre e grande! Esteve, durante esse largo período, compondo versos com a mesma natural facilidade despretenciosa, com que qualquer outra senhora cuida das suas flores ou das suas avesinhas.

V

A poesia disse alguém é a musica das almas!

Se nem todos amam os versos e a poesia é porque nem todos têem a alma afinada para perceber as bellesas e harmonia dessa divina musica!

Instinctivamente a percebeu Amélia Janny. Ninguém lh'a ensinou. Advinhou-a bem cedo, quando, ainda como creança, brincava! Não tinha quinze annos!

Foi n'essa edade que. em uma tarde de chuva, esten- dendo da sua janela a mão para aparar algumas gotas de agua, fez uma pequena quadra, que ficou na memoria das pessoas da familia, não tendo nunca sido publicada:

O chuva! cahi, cahi ! Cahi-me na minha mão: Assim pudera a virtude Cahir-me no coração.

Desde esse momento sentio, dentro do peito, a chamma sagrada!

225

Fez depois versos, que rasgou; e, aos 16 annos, appa- recem os seus primeiros versos publicados. Foram-no por António Lúcio Tavares Crespo, seu parente por afi- nidade, em um jornal de Leiria. O L/z, e depois reprodu- zidos por Augusto César da Silva Mattos no Cysne do Mondego, de que era redactor.

Silva Mattos foi grande amigo e admirador de Amélia

Vista de uma parte do Terreiro da Universidade e de uma parte da Via Latina

Janny. Juiz exemplar, apezar de poeta, e bom poeta. apezar de juiz, é um dos que muito tem mostrado quanta verdade ha nos versos do quinhentista:

Não fazem mal as musas aos douctores Antes mais lustre a suas lettras dão!

Li agora esses primeiros Versos de Ameh'a Janny, que se encontram no n,*^ 11 do Cysne de Mondego, de 11 de Maio de 1857. São uma longa elegia á morte de uma amiga.

224

Entre elles e os que agora ahi se lêem que largos estádios percorridos!

Era a águia, ainda implume, que tentava o vôo. De- pois, ganiiando azas, ergue-se á maior altura para cantar Camões e Victor Hugo, sem que lhe offusquem a vista e a ceguem os raios deslumbrantes do Sol d'essas immen- sas glorias!

A elegia do Cysne marca apenas uma data. Nunca mais deixou de poetar.

Em todas as festas e solemnidades nacionaes, em todas as festas de caridade, em saraus litterarios, em recitas commemorativas, e sempre nos benefícios a favor da Sociedade Philantropico- Académica , apparecem Ver- sos de Amélia Janny e, muitas vezes, apparecia ella a recita-los.

No Theatro Académico, no Theatro de D. Luiz, no Salão da Associação dos Artistas onde recitou a sua bella poesia Progresso ella por vezes se fez ouvir e colheu farto quinhão de applausos.

Quando alguma celebridade artística passava por Coim- bra, não deixava de a saudar com os seus Versos. Acho muito bellos os que dedicou a Celestina Paladini!

Não se limitava a cantar os Íntimos e ternos senti- mentos, que aninhava no coração.

Lançava a vista para mais largos horizontes! Deixa- va-se arrastar pelos altos ideaes, que lhe illuminavam a mente e lhe ardiam no coração.

Por Vezes, pedia a benção a Calliope; e ella, uma fraca e modestíssima mulher, calçava o cothurno da mu- sa épica para entoar cânticos á Pátria e aos grandes nomes da sua historia!

É d'esse género a bella poesia por ella recitada, em

_^25

1880, no Theatro Académico, por occasião das festas •camoneanas, na recita organisada pelos estudantes d'essa •épocha. Admirem-na:

A Camões

Nós vêmol-o surgir, heróico, austero, grande, Envolto n'essa luz que o génio tem, E ao contemplal-o assim, o coração se expande, E rende-se ao poder que d'esse vulto vem.

Três séculos depois, mais viva, mais intensa Resplende e maravilha a gloria de Camões, Herança collosal d'uma grandeza immensa. Que cada geração transmitte ás gerações.

No seu poema enorme, em cantos magestosos, Desdobra-se o valor do povo portuguez, Deslumbra, ao descrever em versos assombrosos, O fero Adamastor e a desditosa Ignez.

Soffreu como ninguém, luctou como um gigante. Um malfadado amor.. . rasgou-lhe o coração, E pôde, ao naufragar, exhausto, agonisante, Salvar o seu paiz, erguendo uma mão!

£ que essa mão continha a historia nunca lida Dos brios nacionaes, dos feitos d'além mar. D'essas victorias mil d'uma nação, erguida Ao máximo explendor que é dado conquistar.

E, salvo o seu poema, a morte era o repouso. Era a alvorada amiga, era a suprema luz. Era a ventura, emfim, o ambicionado goso. De quem, sem murmurar, levara a sua cruz!

-Previu, prophetisou a queda vergonhosa Da pátria, a quem legara os cantos divinaes, E ao expirar, talvez de fome, luminosa A gloria lhe cingia as vestes immortaes!

15

226

De El-Rei D. Sebastião nos ímpetos vehementes» Da próxima mina o passo adivinhou, E de Alcacerquivir nos areaes ardentes, Prestigio, cVoa, rei, poder tudo rolou. ..

Do muito que foi nosso é pouco o que hoje resta,. Do Velho leão do mar, do ousado Portugal, Apenas um tropheu o seu poder attesta: Um livro -esse padrão do épico immortal!

Que se a destruição passa como Ashavero, Levando a decadência ao seio das nações, O génio as faz viver. A Grécia teve Homero, A Itália teve Dante, e os Luzos tem Camões.

Nos lances mais cruéis, nas magnas da existência. Na terra e mar gravou em bronze o seu valor, E teve na afflicção, no exilio, na indigência, A força de viver, a que esmaga a dor.

A inveja quiz pousar-lhe um veu sobre a memoria,

A ingratidão teceu-lhe o fúnebre lençol,

E elle resurgiu nas paginas da historia,

Qual dentre nuvens sae mais fulgurante o Sol.

Nem todos podem ser o que elle foi —Portento ! Mas vós podeis seguil-o. Avante, mocidade ! No vosso coração erguei-lhe um monumento, E amae, como elle, o estudo, a pátria e a liberdade!

Eu, que a ouvi recitar e a applaudi, n'esse Theatro, quando ella tinha vinte e um annos, lendo agora esses versos, parece-me estar ainda a ouvil-a!

Outros tem, de egual, acendrado patriotismo!

227

V

A obra poética de Amélia Janny é enormíssima. Enchia volumes.

Tendo de transcrever para aqui versos da illustre poe- tisa, teniio grandes difficuldades na preferencia. Tantos são os que se me offerecem.

Começarei por dar publicidade a uns, ainda inéditos, que ella me mandou em carta de 15 de agosto de 1910:

Três Cantos

Ó dias luminosos, sempre em festa, Quando somos creanças, a folgar, Cantando o hymno de que a lettra é esta : Gosar, gosar!

O loura adolescência, ó sonho lindo, Que nos povoa o somno e o despertar, Em doce melodia repetindo: Amar, amar!

O sombra da illusão, que foi ventura, Fumo que o vento dissipou no ar! De que sf3 resta o psalmo d'amargura: Chorar, chorar !

Entre tantissimas composições da distinctissima poe- tisa, eu quero honrar-me em trazer para aqui a que ella consagrou á que chama a sua confidente e amiga:

228

A Poesia

Poesia! eu te amo, confidente e amiga, Com quem minha alma se entrelaça e chora! Tu, que és nas trevas de veladas noites, A estrella d'alva precedendo a aurora.

No teu regaço descançando a fronte, Sorri-me a crença de um melhor Viver; Olvido tudo que me opprime; e góso Com teus afagos divinal prazer.

Fogem-me as débeis affeições da terra, Que a aragem fria da traição balança; E ao vê-las todas resvalar no abysmo, Sinto com ellas fenecer a esperança.

Então surgindo luminosa e bella, Deixando em ondas fluctuar o veu. Tu Vens n'um beijo, que me enxuga o pranto, Roubar-me á terra, recordar-me o ceu I

Ruge a calumnia a tripudiar maldicta, Por sobre as rosas do sentir mais puro Curvada ao peso de um soffrer cruento A paz d'esta alma nas soidões procuro.

Mas tu despontas magestosa e altiva, E a um leve aceno da nevada mão, O desalento desparece; e eu fito A lisa estrada que diviso então.

Da consciência no pallido espelho Revejo as scenas de um viver formoso. Sem que uma culpa lhe ensombrasse o brilho. Ou negra mancha lhe empanasse o góso.

E tu, sorrindo, graciosa e linda. Dos negros olhos na divina luz, Dás-me a ventura que me nega o mundo, Ergues ditosa quem vergava á Cruz !

229

Poesia! eu te amo! por caladas noutes, Quando entre folhas se adormece a aragem, E a lua passa no cristal do rio Em longos beijos reflectindo a imagem ;

Quando exhaurida me descae a fronte E no futuro, desolada, scismo, Sem que uma esperança me illumine a vida, Sem ter a força de encarar o abysmo ;

É então que as azas, desprendendo rápidas, Fendendo o espaço, qual subtil vapor. Vens dar-me a fé, que se extinguira em lagrimas, E a doce crença que murchava em flor.

Visão querida, que anciosa invoco, Se um dia perco teu materno abrigo, N'essa hora, solta dos terrenos laços, Livre, minha alma voará comtigo!

Não OUSO fazer a apreciação d'estes formosos versos! Ahi os tem o leitor. Aprecie e admire-os!

VI

Como documento do Vigor do seu estro e do seu poder descriptivo com as finas cores da sua pallieta, ha uma poesia que desejo appareça n'este livro, porque é pouco conhecida e merece sê-lo, porque é uma das que lhe era mais querida.

250

O Medico

Nas horas de remanso iriadas de ventura, Quando a alegria solta os cantos seductores, Quando nos foge o tempo e tudo nos murmura A canção do prazer, e a vida é aroma e flores,

Ninguém o vê, ninguém se lembra que elle existe,

Heroe sublime e bom, de si próprio esquecido, Entrando, como a luz, na casa pobre e triste,

A tudo o que padece attento sempre o ouvido.

Passa sem elle a festa, o baile deslumbrante, O banquete ruidoso, a dança estonteadora Aonde a mocidade, inquieta e palpitante. Vive secMos d'amor no espaço d'uma hora !

Quem pensa n'elle então, no martyr ignorado, Que consome, a estudar, as longas noites frias. Em lucta permanente, em duello despiedado, A combater com a morte em lentas agonias? !

Onde a tristeza e a dôr, o desespero e as lagrimas. Se juntam n'um concerto estranho e procelloso; Quando a mãe desgrenhada abraça o filho pallido Em que a doença estampa o sello pavoroso ;

Sempre que a humanidade o seu auxilio implora; Da noite a escuridão, os temporaes, a neve, O conchego do lar, a familia que o adora,

Nada o detém; caminha a passo firme e breve.

E medico: pertence aos seios que soluçam. Ás mãos que para elle estendem supplicantes Os que, loucos de dôr, de dôr apenas pulsam, E lhe pedem a vida, em gritos lancinantes!

Entrou? entrou com elle a esperança radiosa, Interrogam-lhe o olhar, esperam a sentença; Faz-se o silencio em torno ao leito onde repousa Alguém que geme e soffre o horror d'atroz doença.

251

«Doutor! brada-lhe um pae, a minha filha é nova, «Formosa e boa, e é mãe não deve inda morrer. <'E-lhe esta casa um céu, é fria e negra a cova. . . « Tudo pôde alcançar a sciencia quando quer. . ,

Pôde roubar á morte a victima que chora? Trocar, no d'alegria, o pranto d'aff lição? Terá de a ver morrer, impassível, embora Lhe estremeça d'angustia e magua o coração ?

Que de vezes, meu Deus, domina triumphante A doença que enlucta e esmaga uma familia, E bemdiz o trabalho, a lida fatigante, Os dias d'anciedade, as noites de vigilia;

Mas quantas, quantas mais, debalde pensa e estuda, Tentando penetrar na noite da incerteza, È interroga a sciencia implacável, muda. Ante o poder da morte arrebatando a presa !

Austero no dever, altivo no seu posto, Acceita a ingratidão ~ a moeda mais vulgar Benévolo, sereno, a placidez no rosto. Na consciência a paz, sempre o perdão no olhar !

Fatiga-se na lucta, alvejam-lhe os cabellos, Invade-lhe a existência uma tristeza infinda. . . Sumiram-se, d'ha muito, os seus ideaes mais bellos, Mas, se tudo mentiu, a sciencia resta ainda.

Mais tarde, quando passa o velho sábio, o medico. As creanças, a rir, querem beijar-lhe a mão. . . E quando, emfim, termina o nobre sacerdócio, A sua historia fica em mais d'um coração ! . . .

Ainda uma pequenina composição para contraste. Re- commenda-se pela singelesa e espontaneidade.

252

N'um dia de annos

Três de março alegre data, Que entre perfumes se espera, Porque do cinto a desata A deusa da primavera.

E a primavera da vida.

Que nos cinge em seus fulgores

É tão ditosa e florida

Como a quadra dos amores.

Que o destino, em seus arcanos.,. N'um abraço deixou presa A festa dos vossos annos, Á festa da natureza.

VI

Ella, que, em toda a sua vida, amou tanto o seií Mondego, teve, ao fim d'ella, preitos de admiração para outro rio.

Amou tâmbem o Lima.

Nas visitas, que lhe fiz em Coimbra, manifestou-me Vehementes desejos de conhecer Ponte de Lima. Dahi um convite e a acceitação d'elle para o futuro mês de se- tembro.

Não pôde ir, por causa do compromisso tomado parai a assistência a um casamento, cuja data não podia ser alte- rada, nos dias em que se realizam as festas annuaes- d'aquella villa. Teve de ir dias antes.

233

A carta, que precedeu essa visita, contêm, em poucas palavras, com tanta sinceridade e modéstia, o resumo da sua vida. que quero reproduzi-la, omittida apenas a parte em que é exageradamente amável e honrosa para mim.

«Coimbra, 5-9-910.

'Ex.""' amigo

Agradeço, comovida, toda a amizade de que a sua carta, rece- bida hontem, vem cheia.

A mim. pobre creatura, creada modestamente, trabalhando muito, a exemplo de minha mãe; quasi sempre sem creada, por varias razões; singelamente vestida: frequentando pouco a sociedade.- que eu via com maus olhos, impressiona-me immenso o que V. Ex.^mediz! « •• diz-me que não tem commodidades, nem pessoal para me receber I

Não me torne a dizer isto, pois não? Não são as festas, embora muito pomposas, como diz o jornal que V. Ex.'' fêz a fineza de man- dar-me, que ahi me levam. Tenho a aspiração de conhecer esse Lima, qufe me não será Lethes, porque ficará sempre como a mais linda mi- ragem na minha saudade; os esplendores d'essa natureza; a graça d'essa terra amada por quantos a conhecem.

<;0 seu espirito, meu amigo, é a mais inquieta e matizada borbo- leta. Não; as suas azas nasceram comsigo, como as das aves. Não tem o sol- •-, mas achei-lhe uma graça infinita pela sua inesperada amabilidade !

Deve sentir um grande prazer n'esse descanso de poucos dias, que essa verificação de tristes poderes lhe vae roubar, sem proveito para ninguém.

«Deixe passar a minha ignorância, sem reparo; mas acceite, sem sacrifício, a amizade e admiração com que o recorda a

Amélia Jax.vy.»

Durante os dias que alli esteve, conquistou a admiração e as sympathias de toda a gente que d'ella se approximou : grandes e pequenos, alguns bons rapazes das escolas su- periores e algumas pessoas distinctas da terra, e, entre estas, a Senhora Condessa e Conde de Bertiandos, que muito expressivamente lhe manifestaram a sua sympathia..

234

Demos um pequeno passeio, acompanhando o rio até á Ponte da Barca, pela margem esquerda, e, depois de alguma demora em Arcos de Vai de Vez, admirando os formosos panoramas que enquadram aquella villa, regres- samos pela margem direita, não se cançando de admirar as bellezas do rio, fazendo repetidamente parar o trem !

Ficou com saudosas impressões. Em carta, que pre- cedeu apenas doze dias a sua morte, mandou-me os ver- sos, que vão lêr-se, que deviam ter sido publicados na Limiana, e não foram por virtude da suspensão tempo- rária d'esta interessante revista litteraria regional.

Intitulam-se :

Ponte de Lima

(Aos seus filhos)

Não, não posso esquecer o mago encanto D'essa terra graciosa e sonhadora, Onde as horas e o tempo correm tanto, Onde tudo nos prende e a vida inf lora ;

Dos montes que se elevam como altares Onde, perto do céu, Deus nos escuta A narração dos prantos e pesares Da Vida, na tremenda e eterna lucta !

Do Lima preguiçoso e disfarçado, Mudando de caminho, a cada instante, Nas curvas serpentinas resguardado Por margens lindas, d'arvoredo ondeante;

Dos Palácios as paginas gloriosas Da sua, tão authentica, nobreza, Mantida, sempre, nas acções briosas. Dos seus filhos no porte e na firmeza.

Bem gravada no intimo do peito, Bem presa na memoria do meu ser Tenho a data em que a vi ! Com que respeito Invoco d'essa tarde o esmorecer 1 . . .

255

Ponte romana, enegrecida e linda, Banhada de luar e de poesia. Quando te atravessei, iembro-me ainda Como, nervoso, o coração batia !

Passavam auras perfumadas, leves, E, na paz d'essa noite constelada, Parecia-nie ouvir as notas breves. Os maviosos sons d'uma Balada !

Foi, talvez, devaneio, essa harmonia, Ephemero prazer diluido em pranto. Um ecco do passado a fantasia Bordando um sonho que eu amara tanto !

VIII

Eram muitas as pessoas que lhe pediam para coUigir em livro os seus versos.

Muito especialmente a instigavam a isso o Dr. Guima- rães Pedrosa, o abalisado professor, com cuja amisade muito se honrava, João de Paiva e eu.

Dizia-me que era preciso uma grande selecção, e que se sentia sem forças para a fazer.

Chegou-me a dizer que tinha começado esse trabalho e que teria por auxiliar a Senhora Marqueza de Pomares ; e não podia tê-la melhor, porque a nobre e distinctissima se- nhora, além de amiga dedicada de Amélia Janny, é também uma distincta poetisa.

Em 1915 veiu a Lisboa e aqui esteve trez mezes, hos- peda da Senhora D. Emilia Midosi, a respeitabilissima

236

senhora que é viuva "de Henrique Midosi, e que professava pela poetisa a mais carinhosa affeição.

Foi aqui que compôz o soneto dedicado a D. Constança da Gama.

Indo para Coimbra escreveu os versos a Ponte de Lima e outros ao Tribunal de Haya. São aquelles e estes os seus últimos versos.

Ella que, em 1870, tinha fulminado a carnificina d'esse anno, escrevendo o seu brilhante poemeto A Guerra, parece que adivinhava que os campos de uma grande parte da Europa iam converter-se em mares de sangue! Saudou por isso a conferencia de Haya. Pensou até em ir de perto saudar os sacerdotes da Paz !

Chegou a fazer as malas para ir á Hollanda na com- panhia de duas senhoras, sobrinhas de João de Paiva.

Não pôde ir! Cahia de cama, e nunca mais se levan- taria delia! No dia 19 de marco de 1914, falleceu !

Foi uma pobre mulher cheia de uma enorme riqueza moral e intellecíual !

Teve no peito um thesouro de nobres affectos e no espirito os mais elevados ideaes !

Viveu sempre com a mente ás musas dada!

Foi uma alma gentil !

NOTA 1.

Silva Mattos, o distincto amigo, distincto magistrado e distincto poeta, depois de ler o artigo do annuario limiense (não escrevo ponte- limense por uma razão chorographica e porque, dizia Castilho, que havia palavras que lhe faziam o effeito de lhe estarem a picar o ouvido com lasquinhas de corno) ' devolveu-m'o com os seguintes versos:

De Joelhos

(Ao meu amigo P. O.)-

D'alma lúcidos espelhos Um a um seus versos dão. Devem lêr-se de joelhos Com fervor, com devoção.

Que amor, que ternura brilha No sentir que elies contêm! Distilam da alma da filha Enlevos d'amôr da mãe.

Desde que os li, meu intento Foi seguir os teus conselhos. Versos de tal sentimento Devem lêr se de joelhos!

(1) Em puro latim: Llniia, Limiae, o rio Lima; e por isso tem uma immediata e -egitima filiação o meu limiense.

238

NOTA 2.

Por occasiào do fallecimento de Amélia Janny, em diversos jor- naes foram publicados artigos prestando homenagem ao talento e ás virtudes da illustre poetisa.

D'esses artigos quero transcrever aqui, supprindo assim, quanto possível, as defficiencias do meu escripto, o que foi publicado na Capital, na secção que se intitula— 5erões Femininos, devido á penna elegante da distincta senhora, que, sob o pseudonymo de Roxane, esconde o seu nome illustre, mas não o seu fino talento; e que todos sabem ser a Senhora D. Amélia Caldas Xavier.

Eis o artigo:

«Quando hontem os jornaes, no cumprimento da sua missão impe- riosa, me trouxeram a fria noticia da morte de Amélia Janny, senti dentro da minha alma o travo amargo d'uma surpreza dolorosa, impressionando tristemente o meu espirito.

«Tinha-me habituado desde creança á sympathia d'este nome feminino, subscrevendo sempre versos de extraordinário brilho poé- tico e grande mérito litterario.

«O anno passado, pelo verão, encontrámo-nos, a poetisa e eu, no hospitaleiro e nobre salão da sr."" D. Maria Amália Vaz de Carvalho, em Santa Catharina, e o conhecimento pessoal da illustre poetisa deu-me o prazer que geralmente sente quem sabe admirar ao des- cobrir as delicadezas d'uma fina alma de mulher, cheia de emotivi- dade, e as scintillaçôes luminosas d'um espirito gentil, cultivado e vivo, da mais interessante vivacidade. A partir d'esse dia. trocaram-se as nossas visitas durante a sua curta permanência em Lisboa n'esta Lisboa que não tinha para a poetisa os encantos do seu suggestivo Mondego, que tanto enternecera a sua alma, inspirando-lhe lindos versos de requintado sabor romântico e de incontestáveis bellezas.

«D'uma d'essas visitas a que alludo, ficou-me a inapagavel recor- dação d'algumas poesias que me disse, na mais singella despretensão litteraria e, o que é mais interessante, a d'uns magníficos sonetos, compostos ultimamente para um concurso de sonetos de amor, aberto não ha muito tempo ainda, por uma revista de Lisboa e que me deram a extranha impressão de serem versos dos mais radiosos vinte annos . . - tal era a frescura, a vida, a expontaneidade do sentimento, a graça das imagens e os tons quentes do seu extraordinário colorido.

<Tinha 73 annos a illustre senhora, a delicada e fina poetiza, que

259

eu ha pouco ainda ouvi com tanto interesse e tão sincera ternura, e que ao ler agora a inesperada noticia da sua niorte tantas saudades senti que me deixara. . . Mais um belio espirito que se apaga, uma commovida alma de mulher que desapparece . . .

«A poetisa do Mondego, como em Coimbra lhe chamavam, deixa, com os seus versos dispersos em varias publicações, muitas tristezas e saudades dispersas pelas almas dos que a conheceram e affectuosa- mente a admiraram.»

ROXANE.

Joaquim Champalimaud e Vasco Leão

õa(1)

O anno de 1895 tem sido fatal para a Relação do Porto !

Pouco tempo ha que a morte lhe roubou um dos seus mais distinctos juizes, o sr. Joaquim d' Araújo Cabral Mon- tez de Champalimaud!

A leiva do cemitério, revolvida pela enxada do coveiro para abrir a sepultura d'este magistrado illustre, mal come- çava a solidificar-se, e uma outra sepultura se abre para abrigar os restos mortaes d'um seu digno companheiro de tribunal, o sr. João Vasco Ferreira Leão!

Caracteres de indole differente, a ambos irmanava a mesma paixão da justiça, o mesmo amor de illustrar e enriquecer o espirito para o cumprimento do dever.

^Erudimini qui jiidicatis terram:», diz o psalmo: e ambos elles eram zelosos observantes d'este preceito, im- posto a todos os julgadores pelas lettras sagradas.

Champalimaud foi admirável exemplo de amor pelo trabalho e de escrupuloso desempenho da profissão, que tanto se empenhava em honrar!

Era para vêr e admirar como aquelle homem, desde tantos annos torturado pela doença, débil e sem forças, que mal podia subir as escadas do tribunal, onde entrava

(1) Artigo publicado no n.° 519 da Revista dos Tribunaes, de 15 de setembro de 1895.

Os perfis dos juizes Poças Falcão e Dias de Oliveira foram publicados no livro No Campo da Justiça.

16

242

sempre cançado e offegante, pouco depois tomava parte vigorosa nas questões que se discutiam, e se esforçava pelo acerto das decisões, pugnando com ardor pelo que julgava justo e legal até ficar extenuado e sem fala!

Cavalheiro de primorosa educação e distincto porte, gentilissimo nas relações pessoaes, era intractavel quando defendia a justiça, ou julgava que esta era offendida; e, ao mesmo tempo, a lucta não lhe obscurecia a perspicácia e clareza do entendimento, pois que para logo se tornava dócil e se rendia á opinião que combatia, se lograssem convencê-lo que era esta a mais legal.

Chegado que fosse a este estado do espirito diga-se em honra da sua immaculada memoria não raro inutili- sava os trabalhos, que trazia preparados, para perfilhar os alheios!

Nenhuma razão pessoal, nenhum sentimento de vai- dade sobrelevavam ao amor da justiça que o dominava!

O julgamento em conferencia (a que tanto teem que- rido jungir-nos, como forma única de julgar collectiva- mente, uns pretendidos innovadores que a si próprios puzeram borla e capêllo em organisação judiciaria) perde- ria muitos dos seus gravíssimos defeitos com juizes como J. Champalimaud!

As paginas dos seus autos attestam a somma de cuida- dos e de illustração jurídica que punha nas suas decisões este tão enfermo e tão zeloso magistrado; mas era princi- palmente no viver intimo do tribunal que mais sobresahiam as suas qualidades e distinctas virtudes, a sua educação de legista, e a alta e perfeita comprehensão, que possuia dos seus deveres de julgador.

Havia n'elle aquella «perpetua e constante vontade> do <ísiium ciiique tribuere^, que os romanos consideravam attributo da justiça, e que o é por excellencia do verda- deiro magistrado!

O grande pendor, em que perennemente estava, para diminuir penalidades, mostra que o juiz que, nas comarcas em que serviu, passou sempre por austero e ríspido, era uma nobre alma!

243

Vasco Leão tinha a religião da honra e o culto do dever.

Amava a justiça e a liberdade. . . sim . . . elle amou tam- bém a liberdade!

Nascido em 1830, o seu berço foi molhado pelas lagri- mas que o despotismo fez chorar a sua mãe!

Era por isso natural adversário de todos os que que- rem felicitar-nos com instituições do passado.

Tendo concluído como Joaquim Champalimaud, de quem foi condiscípulo, e a quem tão de perto havia de acompanhar na morte o seu curso universitário em 1855, foi em 1856 nomeado delegado do procurador régio para a comarca da Ilha do Pico, sendo algum tempo depois transferido para a da Ilha do Fayal.

Desde logo se revelaram as aptidões do magistrado; e o seu brioso proceder de homem e de funccionario por tal forma alli se assignalou, que, passados mais de trinta annos, d'elle existia ainda honrada nomeada n'aquellas terras do archipelago açoriano!

Eleito deputado por Guimarães, sua terra natal, nas legislaturas de 1871 a 1874 e de 1875 a 1879, e par do reino pelo districto de Bragança em 1887, preoccupa- ram-no quasi exclusivamente no parlamento os assumptos judiciaes e os da classe, sendo, pelo seu amor e assidui- dade no trabalho, escolhido, durante todo aquelle periodo, para secretario da commissão de legislação da camará elec- tiva, tomando, em tal qualidade, constante e activa parte nos trabalhos de revisão e discussão do projecto do Código do Processo Civil e redigindo as numerosas actas das ses- sões da commissão.

testemunho da elevação do seu espirito e da bon- dade da sua alma um projecto de lei sobre o ensino dos surdos-mudos, que por elle foi apresentado ao parlamento.

Apaixonado por tudo que considerava nobre e digno; tenaz na defeza das opiniões que julgava de interesse da

244

justiça ou do paiz, por vezes descia á estacada da im- prensa a combater em prol d'elias.

Era um paladino do justo. Tinha a organisação d'um combatente !

Em Vez da penna tomaria a espada e arriscaria a vida se por tal forma fosse preciso defender o direito, a justiça, a liberdade!

Com os seus escriptos por vezes honrou esta Regista, e os artigos aqui publicados em 1887 e 1889 sobre o pro- jecto de organisação judiciaria, que estava então affecto ao parlamento, mostram quanto amor lhe merecia tudo quanto tendesse a melhorar a administração da justiça e a elevar a magistratura, que devotadamente amava!

Dedicado, leal, cavalheiroso, era um nobre compa- nheiro de um Valor inapreciável!

Prostrado no leito, ferido mortalmente pela doença que tão prestes ia arrebata-lo, reanimavam-no ainda os assumptos da profissão e do tribunal, e a illusão de que breve voltaria aos trabalhos d'elle!

Nobre e consoladora illusão, digna da sua honrosa Vida de magistrado!

Bem mereceram da justiça!

Nas paginas d'este jornal, dirigido por magistrados, e destinado, sem distincção de classes, a todos os homens do foro, a todos os homens da lei, queremos pôr este memento, em homenagem a dois dignos soldados d'ella !

E, imitando as palavras do poeta que melhor soube definir a saudade, e com que elle terminou o elogio aca- démico de um varão illustre, diremos: Seja leve a terra da pátria aos que dignamente a serviram e honraram !

n memoriam

Na sentida morte de Sofia de Abreu de Magalhães Pereira Coutinho (1)

Répoiídez, a-t-on vu son ombre, S"évanouir dans la nuit sombre. Ou fuir vers le jour immortel ? La vit-on monter ou descendre ? déposerons-nous sa cendre? Est-ce à la tombe ? est-ce à Tautel ?

-Ne pleurez pas,-prions les saints Tont réclamée; Prions: adorez-la, vous qui Tavez aimée !

V. Huoo, Odes.

Desappareceu! . . . Tinha desanove annos! Era bon- dosa como uma santa e bella como uma flor ! Simples e modesta como a violeta ! Pura como as flores de laran-

(1) Não é uma figura do passado !

E' de hontem, é de hoje e será de amanhã !

Vive ainda pela nossa saudade !

Faz aqui a sua apparição como figura celestial, estendendo as

246

jeira, que lhe poderam ornar a grinalda do noivado místico e sacrosanto da eterna Gloria ! . . .

Abandonando a linguagem das cousas materiaes e ter- renas, porque não hei-de empregar a linguagem do que, por santo e sublime, é superior á nossa estreita e pobre comprehensão.

Porquê? Procurando alar o pensamento ás regiões onde subiu esse ser querido, direi aos que a amaram :

Sim!... Desappareceu! ! . . . Os anjos teem sempre uma breve passagem na terra ! Pertencem ao ceu !

«Botão de rosa murcho á luz da aurora>... o vento

da morte a levou !

Rose Close La brise La prise !

Bella, gentil e timida como uma alvéola !

Tinha a fina delicadeza das aves ribeirinhas e o ar triste, que ellas manifestam ao verem-se fora da sua região !

O anjo sentia a nostalgia do ceu ! Adormeceu ! . . . Depois. . . bateu as azas. . . fugiu!

Acodem á lembrança aquelles versos do Prémier Regret, de Lamartine, e que são talvez, na traducção de Bulhão Pato, os que melhor correspondem ao pensamento do grande poeta francez :

Como de noite a avesinha,

Menos formosa do que ella, Esconde ríaza singela, O colo para dormir : No veu da sua tristeza Escondeu-se por instantes, E adormeceu . . mas antes Meu Deus, da noite cahir!

suas imaculadas azas de anjo por sobre o pobre livro e o pobre auctor !

Teve esse escripto publicidade na Nação e foi reproduzido no Jornal de Vianna, na Aurora do Lima e no Commercio do Lima.

247

Nascida junto do formoso rio, na ridente Villa de Ponte de Lima, foi que se finou !

Filha estremecida dos excellentissimos senhores José de Abreu Pereira Coutinho e D. Maria Augusta de Maga- lhães Barros de Araújo Queiroz, a innocente menina, pelo fino perfil da sua belleza, pelo encanto da sua ingenuida- de, pela attracção da sua timidez e da sua sympathia, era o enlevo querido dos seus pães, de sua familia, de todos que a viam e amavam !

A sua vida foi um sonho lindo! Passou como passa o aroma da flor !

Dava-lhe a bondade uma especial e rara distincção!

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Uma vista da villa em dia de mercado

Ao cimo avista-se a Capella das Pereiras, perto da qual a adorável menina nasceu e onde costumava ir á missa

Via-se-lhe na meiguice do rosto a belesa da alma como se a chamma atravez do cristal !

Foi a mais doce das creaturas ! Nunca soube oppôr a sua Vontade á vontade dos que mais a amavam ! Passou pelo mundo obedecendo e sorrindo!

Querida Sofiinha! Adorável creança! Pomba innocente! Anjo querido !

Os olhos, que te viram crescer, enviam-te uma lagrima, que vae misturar-se ás lagrimas dos teus desolados pães

248

c das tuas formosas irmansinhas, mais risonhas e alegres do que tu . . . e agora santamente entristecidas !

A mão, que muitas vezes te acariciou, colhe hoje trémula , no campo triste da morte, um goivo para des- folhar na tua sepultura!

A bocca, que te beijou, diz-te pela bocca do grande lyrico :

Anjo ! quem do ceu vos trouxe

E vos perdeu ? Desterro que isto não fosse Quanto não é mais doce

Viver no ceu !

É esta a minha despedida ! Adeus.

nOTA FiriAL

Na' carta de Alberto Sampaio, a paginas 111, elle auctorisação para ser publicada uma carta anterior.

Não fazer essa publicação seria menospreso pela honra que aquella auctorisação envolve.

Seria uma falta de respeitosa delicadeza para a me- moria virtuosa e querida de um dos homens de maior Valor moral e intellectual d"este paiz, cujo nome não é, infelizmente, tão conhecido como devia e merecia sê-lo!

Não! Fallecido em 1 de Dezembro de 1908, a morte fez augmentar ainda mais o respeito e admiração, que me mereceu em vida!

Refere-se a carta a uns escriptos sobre o caso acadé- mico da Rolinada, onde appareceram alguns dos nossos companheiros d'essa épocha, que, com outros, de novo apparecem n'este livro.

Por todas essas razões se usa da auctorisação. A carta será publicada.

Sei que haverá quem diga que esta publicação obe- dece a um pensamento de Vaidade.

Talvez! Reconheço-o. É que um documento, que tra- duz a amizade e consideração de um homem, tão illustre e tão virtuoso, é para envaidecer aquelle que o possue e a quem foi dirigido!

E acrescenta-se:

Quem, em sua vida, deu algumas demonstrações de não obedecer ás suggestões da vaidade e de ter o desdém por honrarias, tem auctoridade para reclamar esta.

Não prescinde d'ella.

250

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252

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Pela ordem dos escriptos

Pags.

Uma explicação v

memoria de Amélia Coutinho Filgueiras Osório vii

O ultimo Marquez de Ponte de Lima la 16

Linha descendente de Pedro Alvaros Cabral 17» 19

Serviços de D. Leonel de Lima 20 » 23

Freguezias, cujos parochos eram apresentados pelos

Marqueses 24 » 25

Decreto de 13 de agosto, que extinguio os privilégios ... 26 » 28

António Corrêa Caldeira 29 » 46

Certidão de baptismo e considerações sobre a falta de

respeito pelas leis do bom gosto 47» 49

João de Deus 51 » 71

Francisco Guimarães Fonseca 73 » 74

O Echo do Lima 75 » 76

António de Magalhães Barros 75 » 76

Anthero de Quental 77 » 112

Rodrigo Velloso 113 » 114

Júlio Pereira de Carvalho e Costa 115

Refutação de um artigo do In Memorian 116 >^ 120

Fernando Rocha 121 » 126

José Luciano de Castro 127 » 151

Lamartine e a Imprensa em 1848 153 » 154

Á Memoria de D. Anna dos Prazeres Calheiros de Ma- galhães 155 » 160

Luiz Corrêa Caldeira 161 » 193

José Marques Caldeira 195 » 196

Casa onde nasceu o poeta, edade em que sahiu da terra

natal e um alvitre em honra da sua memoria 197 » 202

Uma carta de José Pereira de Sampaio (Bruno) 203

254

Pags.

Amélia Janny ~ 205

Artigo em honra da sua memoria por D. Amélia CaMas

^^^'■e»" 238 » 239

Joaquim Champalimaud e Vasco Leão 241 » 244

Sofia de Abreu Coutinho 245 » 248

Alberto Sampaio e uma carta sua (nota final) 249 » 252

riDiCE ono/nnsTico

A

Pags.

Acácio de Carvalho Fontes 75

Affonso de Albuquerque 2

Agostinho da Cruz (Frei) 169

Agostinho de Moraes Pinto Almeida 135

Alberto Sampaio 80, 81 e 108

Alberto Telles 76 e 83

Alexandre da Conceição 84

Alexandre Herculano 55 e 58

Alexandre de Seabra 149

Alves Matheus 76

Amélia Janny 45 e 89

André Ponte de Quental da Camará 77

Anna Ephigenia Corrêa (D.) 29, 47, 197 e 200

Anna Guilhermina Maia (D.) 78

Anna de Lima (D.) 11

Anselmo de Andrade 83

Anthero José da Maia e Silva 78

António Alves da Fonseca 131

António de Araújo de Azevedo Pereira Pinto 157

António de Azevedo Castello Branco 85, 84, 1 16 e 117

António Bernardino Cerqueira Lobo 91

António Feijó 43 e 164

António Francisco Barata 35

António Luiz de Seabra 36

António de Magalhães Barros 75

António de Magalhães Barros (filho) 167

António Nobre 164

António Pereira Rego 1 99

António Rodrigues Sampaio 55

256

fags.

Aristides Motta 108

Arthur Fernando Rocha 125

Augusto César Barjona de Freitas 130

Augusto Lima 164

Augusto Ribeiro 134

Barbosa Leão 1 46

Bartholomeu de Quental (Frei) 78

Basílio Alberto 53 e 94

Basílio José Ferreira 54

Bernardino Pinheiro 1 48

Bernardo de Albuquerque e Amaral 54, 56 e -95

Bernardo de Nogueira . 6

Blacons 14

Bocage 77

Bulhão Pato (?) ,164 e 179 246

c

Champfleury 1

Châtelet 14

Chaves e Castro 220

Caldeira Coelho (António Corrêa) 219

Caldeira (José Marques) 29 e 1 95

Camará Leme (José Alfredo) 65

Camíllo Castello Branco 131

Camões 87, 163, 179 e 224

Cândido de Figueiredo 164

Cardeal Saraiva 45

Carlos Bento 36

Carlos Ramiro Coutinho 131, 137 e 139

Casal Ribeiro 36

Castilho (António Feliciano) 55, 58, 163 e 168

Castilho e Mello 148

•Castro Freire 164

Celestina Paladini 224

Conde de Almoster 139

•Conde das Antas 131, 137 e 139

Conde da Barca 1 57

•Condessa e Conde de Bertiandos 235

257

Pags.

Conde de Santa Maria 62

Conde de Thomar 138

Conde de Villa-Flôr 5

Couto Monteiro 1 64

Cruz Coutinho ' 146

Cunha Ri vara 35

Cunha Souto Maior 36

Custodio Duarte 94

Custodio José Vieira 138 e 144

D

Dante 87

Delfim M. Oliveira Maia 144

Delgado (João Pinto) 177

Diogo Bernardes 168

Domingos Ribeiro Vieira 124

Duque de Ávila 36 e 57

» » Loulé 106

» » Ragusa 5

» >> Saldanha 53, 159 e 196

» da Terceira 57, 41 e 106

» de Welingtoii 3

E

Eça de Queiroz 83, 106 e 117

Eduardo de Andrade 81

Eduardo David e Cunha 91

Elias Garcia 6

Emilia Midosi, (D.) 255

Eugénio de Castro 164

Fausto de Queiroz Quedes (Visconde de Valmôr) 56

Fernando de Quental 77 e 81

Fernando, (Rei) (D.) 158

Fernando Rocha 83e 119

Fernão Alvares Cabral 17

17

258

Pags.

Fernão Annes de Lima 11

Ferrão (Francisco António F. da Silva) 9

Fialho Machado 92 e 94

Filippe de Quental 80, 85, e 139

Filomeno da Camará 85 e 116

Florido Telles de Vasconcellos 85

Fonseca Pinto (António Joaquim) 63

Fontes Pereira de Mello 36 e 76

Francisco de Castro Matoso Corte-Real 130

Francisco Joaquim de Castro Pereira Corte-Real 156

Francisco Machado de Faria e Maia 85

Francisco de Paula Mendes 147

Francisco Pereira Sanches de Castro 6

Francisco Roberto de Magalhães Barros 76

Frei Francisco de S. Luiz 22, 198, 199 e 210

Frederico Philemon 60, 81 , 87 e 105

Gama Machado 1

Garrett 56, 51 , 129, 159, 160, 165 e 189

Gaspar Pereira Ferraz Sarmento 197

Gaspar de Queiroz Botelho 142

Germano Vieira Meyrelles 81 , 82 e 108

Gomes Coelho (Júlio Diniz) 148

Gonçalves Crespo 164

Gonçalves Dias 165 e 164

Guerra Junqueiro 165 e 212

Guilherme Vasconcellos Abreu 85 e 97

Guimarães Fonseca 62, 65, 73 e 85

Guimarães Pedrosa 255

H

Helena de Vasconcellos e Souza (D.) (Marqueza de Castello

Melhor) 11

Henrique da Gama Barros 1 52

Henrique de Macedo 91

Henriques Sêcco (Dr. António Luiz) 159

Hohenzollern 10

Homero 68

Humberto (Príncipe) 118

259

Pags.

Jayme Cardoso de Gouveia Corte-Real 62

Joanna Cabral de Vasconcellos (D.) 18

Joanna Saraiva (D.) 31, 48, 197 e 198

João de Barros 2

João de Barros Mimoso 1 30

João Bento de iMedeiros 47

João Cândido Furtado d'Antas 133

João de Deus 100, 133 e 213

João Fernandes de Lima Vasconcellos Brito Nogueira 18

João Gomes Cabral 17

João (Infante) (D.) 55

João de Lemos 163, 164 e 208

João de Lima (Vide errata) (D.) 11

João Lobo de Moura 83

João Machado de Faria e Maia 63, 93, 116 a 120

João de Paiva 235

João Penha 164

João de Sousa Vilhena 60 e 85

Joaquim António de Aguiar 41

Joaquim Maria da Silva 137

Joaquim Martins de Carvalho 120 e 135

Joaquim de Vasconcellos 78

José Affonso Botelho 132

Jerónimo da Motta (abbade de Mujães) 199

José Alberto dos Reis (Dr.) 47 e 197

José de Azevedo e Meneses 78

José Bernardino de Abreu Gouveia 85

José Caldas 76

José da Cunha Sampaio 60, 80, 82, 91 , 1 18 e 250

José Dias Ferreira 75

José Ernesto de Carvalho e Rego 53

José Estevão 36 e 115

José Falcão 83,89,91 e 100

José Freire de Serpa 164

José Leite Monteiro 8 J

José Luciano de Castro 35

José de Magalhães Barros 196

José Maria de Abreu de Lima 199

José Maria Andrade Ferreira 38

José Mimoso de Barros Alpoim 130

José Moreira da Fonseca 1 44

260

Pags.

José Pereira de Sampaio ( Bruno) 203

José Ribeiro Perry 131

José de Coutinho 91 e 145

José Teixeira de Queiroz 130

Júlio Mardel 17

JuIio Pereira de Carvalho e Costa 109, 110 e 115

Lamartine iii, 157, 153 e 245

Latino Coelho ". 38 e 201

Leonel de Lima (D.) 3 e 21

Levy Maria Jordão 55

Lima Bezerra 198

Lopes de Mendonça 164

Lourenço de Almeida Azevedo 68e 86

Lourenço Malheiro 199

Luiz Jardim, Conde de V^alenças 74

Luiz de Magalhães 77

Luiz Saraiva (Frei) 210

Luiz (D.) (Rei) 55

M

Manoel Duarte d'Almeida 84

Manoel Faria 31

Marcelina Saraiva (D.) 31 , 41 , 198 e 210

Marcelino de Mattos (Dr.) 144

Maria Cabral de Noronha (D.) 18

Maria Xavier de Lima Hohenloe (D.) 18

Manoel Alves da Silva 108

Manoel de Arriaga 85 e 89

Manoela Rey 147

Maria Amália Vaz de Carvalho (D.) 238

Maria José Deslandes Caldeira (D.) 45 e 196

Maria da Silva Baptista Rocha (D.) 124

Maria Theresa Deslandes Caldeira (D.) 219

Marianna Povoas (D.) 70

Marianno Machado de Faria e Maia 83, 91 e 92

Marqueza de Alorna 33

» de Pomares 235

261

Pags.

Marquez de Chaves 4

» de Fronteira , 33

» de Loulé 41

Michelet 96

Miguel (D.) 136

Mendes Leal 36 e 55

Mousinho da Silveira 9

N

Nicolau Callieiros 1 57

Noailles (Duque e Marquez de) 14

O

Oliveira (Dr. Manoel de) 20 e 26

Oliveira Martins 77 e 96

Oliveira Valle 122

Osório de Vasconcellos (Alberto) 6

Palmella (Duque de) 7

Passos Manoel 56

Pedro Alvares Cabral 2 e 17

Pedro 5." (D.) 55

Pereira Caldas 177

Pereira Lima (Monsenhor) 198

Petrarcha 87

Pinheiro Chagas 46, 169, 179 e 184

Pinho Leal 11

Pizarro (Joaquim de Sousa Quevedo) 6

Q

Queiroz Ribeiro 164

262

R

Pags.

Rachel Xazareth (D.) 69

Ramalho Ortigão 48 e 147

Raymundo Capella 83

Rebello da Silva (Luiz Augusto) 55, 36 e 55

Ricardo Guimarães (Visconde de Benalcanfôr) 165

Rodrigues Cordeiro 132, 163, 164 e 166

Rodrigo da Fonseca Magalhães 36, 38 e 39

Rodrigo Velloso 13, 57, 60 e 98

Roque Barcia 52

da Bandeira 6 e 137

de Miranda 1 63

Santa Thereza dfe Jesus 169

Santos e Silva 136, 137 e 139

Santos Valente 83 e 1 05

Sebastião de Almeida e Brito 143

Serra e Moura 1 38

Silva Mattos 163, 223 e 237

Silva Tullio 55

Simão de Novaes (Frei) 78

Simões (actor) 94

Soares Luna 195

Soares de Passos 133, 141, 163 e 179

Souza Martins 97

Tavares Crespo 223

Tavares Ferreira (José Maria) 138

Telles de Vasconcellos 132

Teixeira de Vasconcellos 147

Theophilo Braga 61, 65, 67, 83, 163 e 212

Thomaz José Xavier de Lima de Vasconcellos de Brito No- gueira Telles da Silva (D.) 2 e 19

Thomaz de Lima Vasconcellos Brito Nogueira (D.) 18

265

Pags.

Thomaz Ribeiro 76 e 165

Thomaz Xavier de Lima Nogueira Telles da Silva 19

Tolentino 32

Torres e Almeida 131 e 140

V

Venâncio Jacintho Deslandes Caldeira 45

Vicente Ferrer 36

Victorino da Conceição Rebello (D.) 62

Victor Hugo 100, 105, 115, 186, 191, 224 e 245

Victoria Linda 222

Vieira (Padre António) 78

Vieira de Castro 53,54,56,98, 116 e 118

Virieu 14

Visconde de Faria e Maia 78

ERRATAS

A paginas 11, linha 8, onde sele: -D. José Xavier de Lima , deve lêr-se: <^D.João Xavier de Lima .

A pagina 43, linha 9, onde se lê: nada melhoraram», deve lêr-se: ^màA melhoram^ .

A paginas 47, linha 13 e a paginas 48, linha l.a, onde sele: «Ruado Carrerido», deve lêr-se: «Rua do Carracido ^ .

A paginas 105, nota, onde se lê: «Function du Poete, deve lêr-se: ■'Fonction du Poetei.

A paginas 168, linha 13 (legenda da gravura), onde se lê: Campo do Arnêdo»,deve lêr-se: «Campo do Arnado*.

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CT Pinto Osório, Augusto Carlos 1372 Cardoso

P$5 Figuras do passado por Pedro Eurico

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