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Full text of "Figuras do passado por Pedro Eurico"

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M.  Corrêa  oos  Santos 

P40ELAH1A,    TYPOORAPHIA 
E    ENCAOERNAÇAO 

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TELEPHONS    3350 
10.    RUA    DA    PRATA,    16 

LISBOA 


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Figuras  do  Passado 


Figuras 


DO 


Passado 


POR 


PEDRO    EURICO 

J 


Composto  e  impresso   na  Typo- 

graphia  Editora  JOSÉ   BASTOS 

—  Rua  da  Alegria,  100  —  Lisboa 

1915 


CT 


Unn   EXPLICAÇÃO 


Um  pseudonymo  é  um  disfarce.  E'  a  mascara,  muitas 
Vezes  tão  transparente  e  diaphana,  que  não  occulta  o 
rosto  do  que  a  usa. 

Mas,  inda  assim,  mascara  conveniente!  Mascara  res- 
peitosa e  necessária! 

E'  o  nosso  caso. 

O  que  isto  escreve  presou,  acima  de  tudo,  a  sua  pro- 
fissão e  o  seu  nome  de  magistrado. 

Zelou  este  como  devia  a  si  e  á  sua  classe. 

Quando,  por  distracção  e  desenfado  do  seu  espirito, 
como  remédio  morai  para  intimas  dores,  se  entreteve 
com  bugigangas  litterarias,  não  quiz  assigná-las  com  o 
mesmo  nome  com  que  assignava  as  graves  decisões  de 
um  tribunal  respeitável. 

Assignou-as  com  o  pseudonymo  de  Pedro  Eurico. 

O  pseudonymo  de  novo  apparece  agora. 

Porquê? 

Porque  se  chega  a  alturas  da  vida  e  a  situações  n'ella,. 
em  que  não  são  permittidas  cavaliarias  e  extravagâncias, 
nem  mesmo  litterarias! 

O  coração  nunca  envelhece:  poderia  allegar.  Mas 
quantos,  por  formas  bem  diversas,  repelliriam  a  m.axima? 

O  auctor  nunca  ambicionou,  nem  podia  ambicionar,  o 
titulo  de  homem  de  letras.  Simples  curioso  d'ellas  o  foi 
pelas  necessidades  do  espirito. 

As  suas  faculdades  exerceram-se  em  um  campo,  cujo 
cultivo  esterilizava  todo  o  pendor  litterario. 


VI 


Amando  o  Bcllo,  teVe  —  por  obrigação  legal  e  por 
Índole  —  de  cultivar  o  Bem! 

Lenibrou-se  sempre  d'aquelle  conselho,  que  Jiiles  Le- 
maitre  tão  bellamente  exprimiu  dizendo: 

«Uma  boa  acção  moral  é  a  única  obra  de  arte  que  pode 
"fazer  quem  não  é  artista*. 

Mas,  ás  vezes,  da  pedra  bruta  salta  uma  faisca  de  luz! 


Voltando  agora  de  novo  aos  devaneios  litterarios,  de 
novo  retoma  o  pseudonymo,  porque,  além  do  que  fica 
dito,  elle  tem  ainda  outra  utilidade. 

E'  como  que  o  bordão  de  quem,  sentindo-se  pouco 
seguro  de  si,  receando  a  queda,  a  elle  se  ampara  para 
que  essa  queda  seja  menos  desastrosa  e  menos  promova 
o  riso  do  publico. 

Quer  dizer :  se  a  critica  tiver  de  ser  severa  e  de  mal- 
tratar o  livro  e  o  auctor,  que  tenha  a  caridade  de  o  fazer 
contra  o  nome  litterario  e  não  contra  o  verdadeiro  e 
authentico. 

Presa  este  e  desdenha  aquelle. 


Á  MEMORIA 

DE 

Amélia  Coutinho  Filgueiras  Osório 


Não  pode  .profanar-se  com  a  publicidade  o  que  é- 
sagrado  e  intimo ! 

Mas  n'este  livro,  em  que  revivem  tantas  memorias 
queridas,  pertence  —  não  pode  deixar  de  pertencer  —  a 
primeira  pagina  d'elle  á  que  me  é  mais  querida  de  todas  l 
A  que  mais  tem  vivido  em  mim! 

Á  da  pessoa,  que  mais  influiu  nos  destinos  da  minha 
vida! 

Á  d'aquella,  a  quem  estive  ligado  pelos  laços  da  Igreja; 
e,  já  antes,  pelo  parentesco  do  sangue  e  —  muito  mais  do 
que  por  este  —pelo  parentesco  das  almas! 

Á  da  formosa  e  valente  rapariga,  que  tudo  —  tudo!  — 
sacrificou  por  mim...  morrendo  em  Africa...  aos  vinte 
e  cinco  annos. .  .  com  dois  de  casada. . .  depois  de  haver 
sido  mãe! 

E,  n'esses  breves  dias,  elia  não  foi  só  o  ser  idola- 
trado, a  companheira  de  coração  de  seu  marido!  Foi 
também,  pela  cultura  do  seu  espirito,  um  companheiro- 
nas  letras  e  um  auxiliar  dos  seus  trabalhos  officiaes! 

Nobre  e  santa  amiga! 

Pertence-te  este  humilde  livro,  porque  n'elle  se  presta 


VIII 


homenagem  a  affectos  e  sentimentos,  que  também  foram 
teus! 

Ensineí-te  a  amar  João  de  Deus  e  os  seus  versos,  os 
quaes,  quando  eu  os  publicava,  tu  os  coligias,  ainda  antes 
da  nossa  união,  na  casa  que  foi  dos  nossos  Avós,  onde 
nasceu  miniia  Mãe  e  onde  nasceste  tu! 

Os  que  agora  ahi  apparecem  saiiiram  da  mesma  pasta 
de  veliudo  —  a  minha  pasta  de  estudante— onde  foram 
coliocados  pelas  tuas  mãos  delicadas:  as  mãos  que  sabiam 
tirar  do  piano  maravilhosas  melodias! 

No  reverso  do  teu  retrato  a  óleo,  estão  —  transcriptas 
de  um  d^aquelles  livros  que  liamos  em  commum  —  estas 
palavras  de  Lamartine,  que  contêm  outro  retrato,  porque 
são  o  teu  retrato  moral: 

«Cette  jeune  personne  avait  reçu  de  la  nature  un 
esprit  délicat. 

«Elle  descendait,  sans  fausse  honte,  aux  plus  humbles 
fonctions  du  ménage;  et  elle  se  livrait  aux  lectures  les 
plus  solides  et  les  plus  elegantes  de  la  Vie  lettrée.»" 

Sobre  a  pedra  do  teu  jazigo  puderam,  com  justiça, 
ser  gravadas  — copiando-as  de  um  livro  de  tristes  memo- 
rias —  estas  palavras :  Quando  a  mulher  alia  ás  virtudes 
da  alma  os  dotes  da  intelligencia,  é  o  ideal  do  bel  lo  e 
também  o  ideal  do  bem.  ' 

Já  lá  vão  tantos  annos!  Tem-me  sido  longa,  áspera, 
por  vezes  tempestuosa,  a  jornada  caminhando  para  ti! 

Mas  já  me  não  demoro...  approxima-se  o  momento 
do  encontro  das  nossas  almas ! 


*  Bulhão  Pato,  Sob  os  Cyprestes,  pag.  128. 


o  Ultimo  Marquez  de  Ponte  de  Lima 


(Esboço  biográphico  e  histórico) 


O  ultimo  Marquez  de  Ponte  de  Lima  foi  uma  figura 
originalíssima,  que  deveria  apparecer-nos  naquelia  galeria 
de  typos  de  raridade  humana,  que  Champfleury  celebri- 
sou  no  seu  interessante  livro  —  Les  Excentriques. 

Esboçada  a  sua  phisionomia  moral  pela  penna  elegante 
do  escriptor  francez  —  que  foi  um  dos  iniciadores  do  rea- 
lismo—ficaria o  seu  retrato  como  de  um  dos  mais  sym- 
pathicos  e  de  mais  formosa  alma ! 

Ao  lado  do  illustre  portuguez  Gama  Machado,  ficaria 
bem  este  outro  portuguez,  por  tantos  titulos  mais  illus- 
tre ainda! 

No  Marquez  verificava-se  aquella  regra  formulada,  para 
os  excêntricos,  por  um  celebre  observador:  Uhomme  ex- 
térieur  est  moulé  sur  Vhomme  intérieur! 

É  que  á  originalidade  de  proceder  e  de  pensar  corres- 
pondia a  originalidade  do  trajar  e  vestir! 

Sempre  de  sobrecasaca  comprida  de  briche,  ou  de  ca- 
saca preta;  e,  raras  vezes,  no  inverno,  um  capote,  á  antiga, 
do  mesmo  panno  nacional  da  sobrecasaca!  Um  inalterável 
chapéu  de  feltro  de  copa  baixa  e  abas  largas.  Bengalão  de 

1 


canna  da  índia!  Era  assim  que  o  Marquez  percorria  as 
ruas  e  ia  tomar  assento  na  Camará  dos  Pares,  de  que  foi 
secretario,  e  a  cujas  sessões,  durante  certo  período,  com- 
parecia com  assiduidade. 

Nascido  em  berço  de  oiro,  no  meio  da  opulência;  se- 
nhor de  uma  grande  fortuna  herdada  e  de  um  herdado 
poderio,  fidalgo  por  nascimento,  e  da  mais  antiga  e  authen- 
tica  linhagem  histórica,  ninguém  foi  mais  despido  do 
amor  das  grandezas  e  mais  alheio  ás  vaidades  humanas ! 

Democrata  pelo  coração  e  instincto,  foi  um  fiel  obser- 
vante dos  mais  rigorosos  e  radicaes  preceitos  da  fraterni- 
dade e  egualdade  humanas! 

Cidadão  integro,  coração  bondosíssimo,  alma  cândida, 
foi  o  amigo  dos  pequenos,  dos  pobres,  dos  humildes,  com 
os  quaes  de  preferencia  vivia  e  se  irmanava! 


II 


D.  José  Xavier  de  Lima  Vasconcellos  de  Brito  No- 
gueira Telles  da  Silva,  que  este  foi  o  seu  nome,  nasceu 
na  Praça  de  Almeida  em  12  de  novembro  de  1807. 

Pertencia  á  mais  antiga  nobreza  do  reino.  Na  lingua- 
gem heráldica  era  azulissimo  o  seu  sangue.  Girava-lhe  nas 
veias  o  de  .Affonso  de  .Albuquerque,  o  do  chronista  João  de 
Barros,  e  era  descendente  e  directo  representante  de  Pe- 
dro Alvares  Cabral,  o  descobridor  do  Brazil  (1).  Seu  pae, 
D.  Thomaz  José  Xavier  de  Lima,  fallecido  aos  45  annos, 
militou  com  o  posto  de  coronel  na  legião  extrangeira,  que, 


(1)  Veja-se  no  fim  a  nota  \. 


em  1808,  foi  para  França,  distinguindo-se  em  alguns  com- 
bates. Sendo  ajudante  do  Duque  de  Ragusa,  quando  as 
tropas  francezas  vinham  invadir  Portugal,  patrioticamente 
desertou  e  foi  apresentar-se  ao  Duque  de  Wellington  para 
combater  pela  pátria. 

Tinha  o  3.°  Marquez  de  Ponte  de  Lima  a  mais  illustre 
ascendência  por  armas  e  letras. 

O  titulo  de  Visconde  foi  o  primeiro,  que  houve  em 
Portugal,  concedido  ao  seu  ascendente  D.  Leonel  de  Lima, 
a  quem,  no  século  xv,  o  Rei  Affonso  V  fez  Visconde 
de.  Villa-NoVa  da  Cerveira  e  Alcaide-Mór  de  Ponte  de 
Lima  (1). 

O  titulo  de  Marquez  d'esta  villa  foi  concedido  a  seu 
Vis-avô,  quando  primeiro  ministro  da  Rainha  D.  Maria  I. 
Succedeu  n'elle  a  seu  pae  em  1822. 

Era  o  17.''  Visconde  de  Villa  NoVa  da  Cerveira;  o 
5.*'  Marquez  de  Ponte  do  Lima;  o  21.°  senhor  do  mor- 
gadio de  Soalhaes,  no  Minho;  o  20.*'  do  de  S.  Lourenço, 
em  Lisboa;  e  senhor  também  dos  morgadios  da  Casa  de 
Mafra.  Disfructava  os  bens  da  commenda  de  Santa  Maria 
de  Borba  e  de  Santa  Maria  de  Satam  (Vide  B.  de  S.  Cle- 
mente, tomo  4.°  pags.  448  e  450). 

Outhorgada  a  Carta  Constitucional  em  29  de  abril  de 
1826,  logo,  no  dia  seguinte,  escolhidos  os  membros  da 
nobreza  que  haviam  de  constituir  a  Camará  dos  Pares, 
foi,  apesar  da  sua  menoridade,  nomeado  par  do  Reino. 
Apresentada  a  carta  regia  da  sua  nomeação  na  respectiva 
Camará,  em  7  de  dezembro,  não  tomou  posse,  n'essa 
legislatura,  por  falta  de  edade  (2). 


(1)  Veja-se  a  nota  B. 

(2)  Diz  assim  a  Carta  Regia : 

Honrado  Marquez  de  Ponte  de  Lima,  amigo.  Eu  EI-Rei  vos  envio 
muito  saudar,  como  aquelle  que  muito  amo. 

Attendendo  aos  vossos  merecimentos  e  qualidades,  hei  por  bem 
nomear-vos  par  do  reino.  O  que  me  pareceu  communicar-vos  para 
vosso  conhecimento. 

Escripta  no  Palácio  do  Rio  de  Janeiro,  a  30  de  abril  de  1826. 
Rei  com.  guarda. 


Assim  reunia  á  nobreza  herdada  a  nobreza  própria  e 
legal  de  novo  regimen  constitucional. 


4- 


Pois  este  Grande  do  Reino,  este  fidalgo  de  raça.  este 
nobre  de  uma  fidalguia,  que  era  até  principesca,  e  mais 
que  quatro  vezes  secular,  praticou  mais  a  democracia  e 
foi  mais  apaixonado  observante  dos  preceitos  da  egualdade 
de  que  uns  certos  plebeus  do  nosso  tempo,  que,  pelos 
acasos  da  fortuna  ou  da  politica,  adquiriram  posições,  que 
os  fazem  arrotar,  por  toda  a  parte  e  por  todas  as  for- 
mas, a  sua  importância,  olhando-nos,  impertinentes  e 
impertigados.  d'alto,  por  cima  do  hombro,  e  como  que 
intimando  toda  a  gente  a  reconhecer-lhes  a  sua  pretenciosa 
superioridade! 


II 


Espalhadas  em  Portugal,  no  primeiro  quartel  do  sé- 
culo XIX,  as  ideas  liberaes,  commungou  n'ellas. 

Dotado  de  viva  intelligencia,  seguia,  aos  dezenove 
annos,  os  estudos  litterarios,  próprios  da  sua  cathegoria 
social,  quando,  depois  de  jurada  a  Carta  Constitucional, 
na  regência  da  infanta  D.  Izabel  Maria,  se  levantou  a 
insurreição  absolutista  do  Marquez  de  Chaves  e  outros 
caudilhos  anti-liberaes. 

Immediatamente  o  joven  Marquez,  interrompendo  os 


seus  estudos,  foi  tomar  logar  entre  os  defensores  da  nova 
ordem  de  cousas,  alistando-se,  como  cadete,  no  regimento 
de  cavallaria  n.°  4. 

Pelo  seu  nascimento  e  senhor  de  uma  grande  e  opu- 
lenta casa,  á  qual  andavam  inherentes  extraordinários  pri- 
vilégios; estando,  além  d'isso.  já  nomeado  par  do  reino, 
podra,  desde  logo,  ser-lhe  dado  o  posto  de  official.  Mas 
não!  Foi  como  cadete,  isto  é,  como  simples  soldado  com 
algumas  distincções,  que  se  alistou. 

N'essa  obscura  e  humilde  qualidade  fez  toda  a  campa- 
nha de  1826  a  1827,  nas  provincias  do  Minho  e  Traz-os- 
Montes,  sujeitando-se  a  todos  os  perigos  e  duros  trabalhos 
da  guerra,  como  qualquer  outra  praça  de  pret  sem  diffe- 
rença  alguma. 

Tomou  parte  nos  combates  da  Ponte  do  Prado  e  da 
Ponte  da  Barca,  e  seguiu  a  sorte  dos  seus  companheiros 
de  armas,  que,  sob  o  commando  do  Conde  de  Villa-Flôr, 
perseguiram  os  absolutistas  até  Melgaço,  obrigando-os  a 
transpor  a  fronteira  do  território  portuguez. 


Quando  o  seu  regimento  entrou  em  Villa  Nova  da  Cer- 
veira, a  Camará,  sabendo  que  estava  dentro  dos  muros 
da  villa  o  titular  d'ella,  o  representante  dos  seus  nobres 
solarengos,  resolveu  ir,  em  corporação,  cumprimentá-lo. 
Um  dos  Vereadores  preparou-se  para  lhe  lêr  uma  alocução 
de  boas-vindas. 

Procurando-o  no  quartel,  onde  estava  instalado  o  seu 
regimento,  indicaram-lho.  Os  vereadores  ficaram  atónitos! 
CustaVa-lhes  a  acreditar  que  fosse  quem  lhes  indicavam  o 
personagem,  que  procuravam ! 

E'  que  foram  encontrar  o  Marquez,  em  mangas  de 
camisa,  a  limpar  o  seu  cavallo !  Foi  assim,  de  ferro  em 
uma  das  mãos,  e  de  brossa  na  outra,  que  recebeu  os 
representantes  do  município!  Agradeceu  os  cumprimen- 


6 


tos,  que  lhe  dirigiam;  fez-lhes  uma  cortezia  e  continuou 
na  limpeza  do  animal. 

Para  elle  as  obrigações  de  soldado  eram  todas  egual- 
mente  dignas!  (1) 

Rechaçados  os  absolutistas,  obrigados  a  passar  a  fron- 
teira e  a  internarem-se  em  Hespanha,  despiu  a  farda  de 
soldado  e  voltou  para  a  sua  casa  de  Lisboa. 

Mas,  logo  no  anno  seguinte,  em  1828,  proclamado  o 
absolutismo  de  D.  Miguel,  correu  de  novo  ás  armas, 
ainda  como  soldado  cadete  do  mesmo  regimento  de  cava- 
laria 4. 

N^esta  qualidade  fez  parte  das  tropas  liberaes,  que, 
depois  dos  combates  do  Vouga,  da  Ega  e  da  Cruz  de 
Morouços,  tiveram  de  retirar  sobre  o  Porto  e  em  seguida 
emigraram  atravez  da  Galliza,  sob  o  comando  do  briga- 
deiro Joaquim  de  Sousa  Quevedo  Pizarro  e  do  heróico 
Bernardo  de  Sá  Nogueira,  já  então  notável  por  feitos 
illustres  e  que  tão  gloriosamente  figura  depois  na  historia 
com  os  nomes  de  Visconde  e  Marquez  de  Sá  da  Ban- 
deira. 

Assim  soffreu  todos  os  duros  transes,  privações  e 
maus  tractos  desse  triste  êxodo,  que  são  descriptos  por 
todos  os  historiadores.  Embarcou  depois  para  Inglaterra 
com  os  seus  2.Ò80  companheiros  de  armas,  que  a  tantos 
ficaram  reduzidos  os  5.000,  que,  antes  de  passar  a  fron- 
teira, se  reuniram  na  Portela  do  Homem. 


(1)  Foi  narrado  este  facto  e  outros  respectivos  á  vida  do  Marquez 
de  Ponte  de  Lima,  por  ocasião  da  sua  morte,  no  jornal  A  Democra- 
cia, de  que  era  redactor,  com  Elias  Garcia,  o  meu  muito  talentoso  amigo 
Alberto  Osório  de  Vasconcellos,  de  illustradissima  e  preclara  memoria. 
Creio  não  me  enganar  julgando  ser  narrador  ou  informador  daquelles 
interessantes  factos  um  distincto  e  muito  instruído  official  de  enge- 
nharia, camarada  e  amigo  de  Osório  de  Vasconcellos,  e  que  com  elle 
vivia  muito  em  contacto. 

Por  vezes  escrevia  no  jornal  curiosas  narrativas  do  passado  sob 
o  pseudonymo  de  Velho  Democrata.  Era  o  coronel,  depois  general  e 
ministro  da  guerra,  Francisco  Pereira  Sanches  de  Castro,  natural  de 
Villa  Nova  da  Cerveira,  e  que  ali  tinha  casa  e  família. 


Por  despacho  do  governo  miguelista  de  20  de  agosto 
de  1828  lhe  foram  mandados  sequestrar  todos  os  bens 
com  o  fundamento  de  haver  sahido  do  reino  sem  li- 
cença (1). 

Quem  era  senhor  de  tão  opulenta  fortuna  achou- 
se  assim  reduzido  á  pobresa  de  qualquer  outro  emi- 
grado! 

Em    1851    partiu  de   Inglaterra  para  a  Ilha  Terceira, 


nini^MRií 


Restos  do  Paço  do  Marquês,  em  Ponte  de  Lima 

onde   se   congregavam   os   defensores   da   liberdade   que 
para  ella  pretendiam  conquistar  a  pátria. 

Tomou  parte  nos  combates  dos  Açores  e  foi  um  dos 
7500.  que  desembarcaram  no  Mindelo  e  entraram  no 
Porto. 


(1)  Carta  do  Marquez  de  Palmela,  datada  de  Londres,  em  5  de 
setembro  e  dirigida  a  D.  Pedro  4.°.  Vid.  Barão  de  S.  Clemente,  Vol.  5.° 
pag.  247. 


Durante  o  cerco,  fez  serviço  em  artilharia  com  o  posta 
de  alferes,  destinguindo-se  pela  certesa  dos  seus  tiros. 

O  regente  D.  Pedro,  attendendo  á  alta  hierarchia  social 
do  Marquez  de  Ponte  de  Lima  e  á  sua  valentia  de  soldado, 
quiz  promovê-lo  a  mais  elevado  posto.  Quiz  fazê-lo  seu 
ajudante  de  campo.  Pediu  escusa  e  nào  acceitou  (1).  Quiz 
também  fazê-lo  seu  camarista.  Não  acceitou  ainda ! 

Somente  lhe  acceitou  o  presente  de  um  fardamento  nôvo 
e  a  condecoração  da  Torre  e  Espada  (2). 

Esta  e  a  commenda  de  Christo,  que  lhe  pertencia  por 
successão  de  seus  maiores,  foram  as  únicas  condecora- 
ções, que  teve  e  de  que  fêz  uso. 

Facto  digno  de  registo  é  que,  quer  na  campanha  de 
1826  a  1827,  quer  na  de  1828,  quer  na  emigração  (onde 
tantas  paixões  e  luctas  se  levantaram!),  quer  depois  no 
Porto,  o  titular,  o  marquez,  o  grande  senhor,  com  privilé- 
gios quasi  realengos,  desapparece !  Ninguém  o  Vê  !  Nunca 
se  salienta !  Só  se  conta  com  elle  como  um  soldado  obs- 
curo, firme,  disciplinado,  prompto  e  fiel  cumpridor  das 
ordens  dos  seus  chefes  ! 


IV 


Terminada  a  guerra  civil,  restaurada  a  Carta,  não  alar- 
deou serviços,  nem  pediu  recompensas.  Sem  se  ligar  a 
partidos,  limitou  sua  acção  politica  ao  exercicio  das  func- 


(1)  Democracia  cit. 

(2)  Idem. 


ções  legislativas,  como  membro  da  Camará  dos  Pares, 
da  qual,  como  fica  dicto,  foi  secretario.  O  seu  voto,  livre 
sempre  de  compromissos  partidários,  era  dado  com  a 
mais  rara  isenção  e  independência ! 

Por  Vezes  ficava  isolado  e  único !  Só  obedecia  á  sua 
convicção. 

Era  dos  que  nada  lucravam  e  pessoalmente  tudo  per- 
diam com  o  novo  regimen !  Acceitou-o  porém  com  todas 
as  suas  consequências,  por  mais  contrarias  que  ellas  lhe 
fossem ! 

Donatário  da  Coroa,  dahi  lhe  provinha  uma  grande  parte 
das  suas  rendas.  Tinha  o  privilegio  de  nomear  tabelliães 
de  notas  em  alguns  concelhos. 

Era  também  padroeiro  exercendo  o  direito  de  apresen- 
tação de  parochos  em  numerosas  freguezias  (1). 

Estas  grandes  regalias  regeitou  !  A  todos  os  enormissi- 
mos  privilégios  da  sua  casa,  voluntária  e  abnegadamente 
renunciou  ! 


Ha  esse  respeito  um  facto,  que  o  caracterisa. 

O  decreto  de  15  de  agosto  de  1832,  chamado  dos 
foraes  e  doações  regias,  foi  uma  das  benéficas  providen- 
cias de  Mousinho  da  Silveira,  que  mais  clamores  levantou. 

Foram-lhe  feitas  acerbas  criticas  e  soffreu,  durante 
muitos  annos,  uma  grande  impugnação  dentro  e  fora  do 
parlamento  (2). 

iMuito  especialmente  a  soffreu  nas  discussões,  que  pre- 
cederam a  approvação  da  carta  de  lei  de  22  de  junho  de 
1846  para  o  explicar  e  esclarecer. 

Era  a  camará  dos  pares,  onde  principalmente  se  encon- 


(1)  Veja-se  a  nota  C. 

(2)  Veja-se  o  livro  —Repertório  Comentado  sobre  Foraes  e  Doa- 
ções Regias  por  Francisco  António  Fernandes  da  Silva  Ferrão,  1848. 


10 


travam  os  privilegiados  feridos,  o  ponto  em  que  estavam 
concentrados  os  elementos  que  pretendiam  destrui-lo ! 

Uma  Vez  porém,  que  o  espirito  do  decreto  foi  posto 
em  discussão,  ou^^iu-se  uma  voz  mais  vibrante  e  mais  alta 
dizer  —  Approvo  /. . . 

Era  a  Voz  do  Marquez  de  Ponte  de  Lima ! 

Pois  a  medida  legislativa,  que  o  Marquez  assim  applau- 
dia,  extinguia  onerosos  privilégios,  aliviava  a  terra,  favo- 
recia o  povo,  mas  deixava-o  sem  uma  grande  parte  dos 
rendimentos,  que  elle  e  os  seus  ascendentes  haviam  uso- 
fruído!(l). 

Um  raro  altruista!  Um  espartano!  Um  estóico,  que 
merece  a  admiração  da  posteridade ! 


V 


A  sua  antiga  nobresa  chamaVa-o  à  corte.  Mas  o  ultimo 
Marquez  de  Ponte  de  Lima  não  tinha  feitio  para  cortesão, 
nem  pulmões  para  respirar  entre  aulicos. 

Viveu  sempre  afastado  dos  paços  reaes,  e  não  por 
despeitos,  ou  ambições  insatisfeitas,  pois  excepcionalisi- 
mamente,  se  julgava  dever  comparecer,  lá  comparecia. 

Quando,  ha  poucos  annos,  falleceu  a  ultima  filha  da 
Rainha  D.  Maria  2.''^,  a  que  foi  a  formosa  infanta  D.  An- 
tónia, relembrou  a  imprensa  a  pomposa  solemnidade  do  seu 
casamento  com  o  príncipe  Leopoldo  de  Hohenzollern ;  e 
n'essa  descripção  figura  o  Marquez  de  Ponte  de  Lima, 


(1)  Veja-se  a  nota  D. 


11 


como  um  dos  dignatarios  da  corte,  a  quem,  na  solemnidade 
religiosa,  coube  uma  das  principaes  funcções. 

Afastava-se  da  corte,  como  das  reuniões  da  aristocracia 
pela  força  dos  seus  instinctos  e  dos  seus  iiabitos. 

Comprazia-se  em  viver  antes  de  preferencia  com  os 
modestos  e  os  humildes. 

Celibatário,  Viveu  sempre  na  terna  e  doce  companhia 
de  seus  dous  irmãos,  D.  José  Xavier  de  Lima  e  D.  Anna 
de  Lima,  simples  e  bondosos  como  elle. 

Residiam  todos  três  n'esse  grande  palácio  de  S.  Lou- 
renço (não  longe  do  qual  estou  escrevendo),  que  passou 
depois  para  sua  sobrinha,  a  Marqueza  de  Castello  Melhor, 
D.  Helena  de  Vasconcellos  e  Sousa. 

A  capella  do  palácio  é  tão  vasta  que  serve  hoje  de 
egreja  parochial  á  freguesia. 

Faz  o  palácio  frente  para  o  Largo  da  Rosa  e  occupa  a 
maior  parte  da  rua,  que  actualmemte  se  chama  de  Mar- 
quez de  Ponte  de  Lima. 

A  ruína  dessa  grande  e  fidalga  habitação  era  tal  que  o 
Marquez,  diz-se,  por  vezes,  tinha  de  abrir  um  guarda-chuva' 
para  passear  nos  seus  salões! 

Na  mesma  ruína  cahiu  uma  parte  desse  nobre  edifício, 
de  grande  e  sumptuosa  fabrica,  que,  em  Ponte  de  Lima, 
se  chamava  o  Paço  do  Marquez,  e  de  que  hoje  só  exis- 
tem uns  deturpados  restos,  que  serão  a  quinta  parte  do 
que  ainda  conhecemos. 

O  Paço  de  Giela,  nos  subúrbios  da  vila  dos  Arcos  de 
Vai  de  Vez,  é  que  ainda  formosamente  se  ostenta,  mos- 
trando o  que  foi  (1). 

Mas,  n'esse  arruinado  palácio  de  S.  Lourenço,  abri- 


(1)  O  Paço  de  Giela,  com  metade  do  termo  dos  Arcos  e  outras 
terras,  foi  doado  pelo  Rei  D.  João  1.°  a  Fernão  Annes  de  Lima  por 
se  haver  passado  da  Qalliza  quando  elle  conquistou  Tuy.  Esse 
fidalgo  veiu  a  ser  o  tronco  da  familia  dos  Viscondes  de  Villa  Nova 
da  Cerveira,  que  depois  muito  augmentou  o  edificio  e  a  matta. 

(Chorografia  Portuguesa  pelo  Padre  António  de  Carvalho  da  Cos- 
ta, tomo  1.°.  pag.  223;  Pinho  Leal,  Porto  Ant.  e  Moder. 


12 


gava  quantos  pobres  lhe  pediam  albergue  e  que  elle  podia 
albergar. 

Pouco  tempo  antes  da  sua  morte,  seguindo  os  costu- 
mes antigos,  ceava,  uma  noite,  com  seus  irmãos,  quando 
sentiram  um  extraordinário  barulho  no  tecto,  e  delle  viram 
cahir.  . .  uma  grande  cobra  (1). 


Paço  de  Giela,  em  Arcos  de  Vai  de  Vez.  —  Primitiio  solar  da  família 

Determinaram-se  então  a  ir  fazer  uma  exploração  e 
pesquisa  aos  altos  do  palácio. 

Foram  e  ali  encontraram  um  individuo  deitado  em  cama 
bem  preparada  a  lêr  um  jornal ! 

Interrogado,  respondeu-Ihes  que  era  um  operário  hon- 
rado, que,  em  uma  noite,  não  tendo  onde  pernoitar,  viera 
para  ali,  e,  não  havendo  sido  por  ninguém  incommodado, 
comprara  aquella  cama  e  mobilia  e  ali  se  instalara :  que 
já  ali  estava . . .  havia  três  meses !  » 

O  Marquez  riu-se  e  pediu-lhe  desculpa  de  o  haver  in- 
commodado (2). 


(1)  Democracia,  cit. 

(2)  Idem. 


15 


Não  tinha  um  inimigo,  nem  mesmo  um  adversário! 
Apesar  do  seu  feitio  original,  era,  pela  sua  bondade,  em 
toda  a  parte  onde  apparecia  saudado  e  respeitosamente 
tractado. 

Um  anno  resolveu  perdoar  metade  das  rendas  a  todos 
os  inquilinos  pobres. 

No  dia  do  pagamento,  disse  a  todos:  «ganhamos  a 
meias;  «vocês  ficam  com  uma  metade  e  eu  com  outra. > 

Por  vezes  — diz-se — se  sujeitou  a  grandes  privações  e  as 
fêz  soffrer  á  sua  virtuosa  familia,  porque  dava  aos  pobres 
o  que  era  indispensável  para  si  e  para  os  seus! 


Facto  característico  da  sua  despretenciosa  e  despren- 
dida originalidade  é  o  seguinte  : 

Estava  em  um  estabelecimento  de  trens  de  aluguer, 
quando  ali  foram  procurar  uma  carruagem,  para  ir  bus- 
car um  medico  reclamado  para  um  doente  em  perigo  de 
vida. 

Procurou-se  o  cocheiro,  mas  estava  ausente.  Por  mais 
que  se  buscasse,  nào  appareceu.  Havia  trens  mas  faltava 
cocheiro. 

Então  o  Marquez  promptificou-se  a  substitui-lo !  Prepa- 
rado o  trem,  saltou  para  a  boleia,  foi  buscar  o  medico, 
levou-o  ao  doente  e  voltou  a  conduzir  o  trem  para  o  esta- 
belecimento (1). 


(1)  Idem. 


14 


VI 


Como  explicar  o  extraordinário  modo  de  sentir  e  Viver, 
os  hábitos  adoptados  por  fidalgo  tão  opulento  e  tão  illus- 
tre? 

E'  porque  era  baixo  ou  grosseiro  de  espirito  e  senti- 
mentos ? 

Não !  Era  intelligente !  Tinha  uma  distincta  apresenta- 
ção! Era  uma  alma  nobre  e  delicada! 

E'  que  elle  era  o  producto  de  uma  lei  sociológica,  de 
uma  lei  talvez  providencial ! 

Era  a  sociedade  antiga,  que  desapparecia,  e  a  moderna 
que  surgia  na  mesma  pessoa! 

Era  um  dos  mais  altos  representantes  dos  privilégios 
e  das  desegualdades  sociaes,  que  se  tornava  o  represen- 
tante da  egualdade  civil,  da  egualdade  politica  e  da  egual- 
dade  christã ! 

O  principio  da  fraternidade  humana  encarnou  n'elle  I 
Tomou  todo  o  seu  sêr ! 

Havia  no  coração  desse  opulentissimo  fidalgo  a  paixão 
da  egualdade ;  o  desdém  e  o  aborrecimento  enjoativo  pelas 
grandesas  e  vaidades  humanas ! 

Repetiam-se  n'elle,  mas  com  maior  serenidade,  os  sen- 
timentos daquelles  membros  da  aristocracia  franceza  —  os 
Noailles,  os  Châtelet,  os  Virieu,  os  Blacons  —  que  na 
noite  celebre  de  4  de  agosto  (chamada  na  historia  a  Saint- 
Barthelemy  dos  abusos)  renunciaram  aos  lucrativos  privi- 
légios e  excepcionaes  prerogativas  seculares,  que  lhes 
pertenciam  ! 

Nenhum  porém  o  fez  como  o  iMarquez  de  Ponte  de 


15 


Lima,   sem  alarde  politico,  sem  segundas  vistas,  sem  o 
amor  ou  especulação  da  popularidade. 

Se  nunca  foi,  nem  quiz  ser  cortezão  dos  reis,  também 
não  quiz  nunca  ser  cortezão  do  povo,  este  novo  soberano, 
ao  qual  não  faltam  nem  cortezãos  nem  especuladores  a 
lisonjea-lo. 


Elle,  que  se  humilhava  com  os  humildes,  que  tratava 
de  egual  para  egual  os  pequenos,  sabia  elevar-se  a  toda  a 
altura  da  sua  hierarchia  social  e  da  dignidade  da  sua  posi- 
ção com  os  pretenciosamente  Vaidosos! 

Anda  narrado  um  caso,  que  bem  pinta  essa  sua  feição 
moral. 

Deparou-se-lhe  um  doestes  fidalgotes  de  província,  que 
espremidamente  se  dizem  primos  de  todos  os  authenticos 
fidalgos  e  parentes  de  algum  grande  sancto  da  christan- 
dade !  Typos,  cuja  prosápia  heráldica  está  na  razão  inversa 
da  pobreza  de  miolos  e  até,  muitas  vezes,  compensando-a 
por  essa  forma,  com  a  de  bens  de  fortuna. 

Dirigindo-se  ao  Marquez,  que  o  recebeu  com  a  sua 
natural  bonhomia,  deu-lhe  o  tratamento  á^  primo,  que  elle 
acceitou.  Mas,  no  proseguimento  da  conversa,  empregou 
o  Marquez  o  tratamento  de  senhoria,  a  qual,  posto  que  já 
andasse  pelo  preço  dos  tremóços,  como  diz  um  soneto  do 
satyrico  Paulino  Cabral,  era  comtudo  o  tratamento  geral, 
porque  a  excellencia  só  então  ainda  era  dada  aos  que 
legal  e  rigorosamente  tinham  direito  a  ella ! 

O  provinciano,  que,  como  primo,  se  julgava  de  fidal- 
guia não  menor,  deu  também  senhoria  ao  Marquez,  o 
qual  mudou  immediatamente  dando  e.icellencia  ao  seu 
interlocutor. 

Este,  lambendo-se  com  a  elevação,  emendou  a  lingua 
e  passou  a  dar  também  excellencia  ao  Marquez.  Mas  logo 
Voltou  este  á  senhoria!  E  sempre  assim,  no  decorrer 
d^essa,  ou  de  outra  conversação ! 


16 


Até  que  o  desmiolado  e  vaidoso,  interrompendo,  disse 
que  nào  sabia  como  queria  que  o  tractasse,  pois  que  tinha 
notado  a  variação  do  tractamento. 

«Como  quizer,  como  quizer  — replicou  — é  indifferente; 
mas  o  mesmo  tratamento  é  que  nós  não  podemos  ter!» 

Assim  espirituosamente  amarrotou  o  vaidoso,  que  era 
da  laia  de  outros,  que  snobicamente  por  ahi  se  exhibem  e 
abundam,  com  sapinhos  nojentos  em  tarde  chuvosa  de 
maio ! 


VII 


Estava-se  no  fim  do  anno  de  1877. 

Apesar  da  robusta  saúde,  que  sempre  tinha  gozado,  a 
morte  approximava-se. 

A  missão  do  3.°  Marquez  de  Ponte  de  Lima  estava 
cumprida.  Tinha  findado  o  seu  bem  extraordinário  papel 
no  mundo.  Os  seus  dois  irmãos  e  companheiros  queridos 
iam  soffrer  um  golpe,  que  os  lançaria  na  mais  profunda 
consternação. 

Os  pobres,  perdendo  um  grande  amigo,  iam  também 
derramar  sinceras  lagrimas! 

Na  fria  manhã  do  dia  21  de  dezembro,  na  simplicidade 
e  despretenção  dos  seus  hábitos,  entreteve-se,  ainda  muito 
cedo,  olhando  de  uma  das  janellas  do  seu  palácio  para 
um  pateo  interior  a  ver  chamuscar  um  porco. 

Depois,  recolhendo-se,  sentou-se  junto  de  uma  meza, 
e  conversou  com  seu  irmão.  Reclinou  a  cabeça  e  serena- 
mente, para  sempre,  adormeceu  no  Senhor! 

A  sua  alma  pura  acolheu-se  ao  seio  de  Deus'. 


NOTA   A 

(Pag.  2) 


Na  Memoria  Apresentada  á  Academia  Real  das  Sciencias  pelo 
Visconde  de  Sanches  de  Baêna  sobre  o  Descobridor  do  Brazil,  Pedro 
Alvares  Cabral  e  no  artigo  do  sr.  Júlio  Mardel,  no  «numero  extraor- 
dinário» da  revista  Brazil-Portugal ,  destinado  á  commemoração  do  4.° 
centenário  do  Descobrimento  do  Brazil,  encontra-se  a  seguinte  linha 
genealógica  descendente  do  grande  navegador : 


VI  —  Pedro  Alvares  Cabral,  ou  de  Gouveia,  Descobridor  do  Bra- 
zil, casou  com  D.  Izabel  de  Castro,  5.^  neta  de  El-Rei  D.  Fernando 
de  Portugal  e  de  El-Rei  D.  Henrique  de  Castella,  filha  de  D.  Fer- 
nando de  Noronha  e  de  sua  mulher  D.  Constança,  de  Castro,  que 
era  irmã  do  grande  Affonso  d'Albuquerque  e  que  foi  camareira-mór 
da  infanta  D.  Maria. 

Jazem  em  Santarém  na  Igreja  da  Graça. 

VII  —  Fernão  Alvares  Cabral,  teve  varias  mercês,  foi  moço 
fidalgo,  etc.  .  .  Foi  grande  valido  de  D.  João  III.  Morreu  n'um  nau- 
frágio no  Cabo  da  Boa  Esperança;  casou  com  D.  Margarida  de 
Castro,  filha  do  commendador  d'Arruda,  alcaide-mór  da  mesma  villa, 
e  de  sua  mulher  D.  Brites  de  Castro,  filha  de  Ayres  da  Silva, 
5.°  Senhor  de  Vagos. 

Tiveram  entre  outros  filhos : 

VIII  — João  Gomes  Cabral,  que  foi  Capitão  das  Guardas  dos 
Reis  D.  João  III  e  D.  Sebastião.  Morreu  em  Alcacer-Quibir.  Foi 
cazado  com  D.  Brites  de  Barros,  neta  do  chronista  João  de  Barros. 

Houveram  entre  outros  herdeiros : 

IX — Fernão  Alvares  Cabral,  que  casou  com  D.  Joanna  Carva- 
lhosa da  Maya,  filha  herdeira  de  Ruy  Gomes  Carvalhosa,  thesoureiro- 
raór  do  reino,  senhor  do  morgadio  de  Palhavã,  e  de  sua  mulher 
D.  Maria  de  Maya  de  Lemos.  D'este  casamento  nasceram  duas  filhas 
e  herdou  a  casa  de  seus  pães  a  primogénita. 

2 


18 


X  — D.  Maria  Cabral  de  Noronha,  senhora  da  grande  casa  de 
seus  pães  e  avós.  Casou  pelo  anno  de  1622,  com  o  senhor  da  casa 
de  Mafra,  da  Enxara  dos  Cavalleiros  e  dos  Concelhos  de  Aregos  e 
Soalhães,  alcaide-mór  de  Castello-Bom,  governador  e  capitào-general 
de  Mazagào,  D.  João  Luiz  de  Vasconcellos  e  Meneses,  que  morreu 
em  15  de  maio  de  1648. 

Foi  sua  herdeira : 

XI  —  D.  Joanna  Cabral  de  Vasconcellos  e  Menezes,  que  além- 
dos  senhorios  da  casa  de  seus  pães,  teve  o  senhorio  da  ilha  do  Fogo. 

Esta  senhora  foi  primeiro  casada  com  o  infeliz  Conde  de  Arma- 
mar,  decapitado  com  o  Duque  de  Caminha  e  Marquez  de  Villa-Real, 
na  Praça  do  Rocio,  em  Lisboa,  e  a  segunda  vez  com  o  9."  Visconde 
de  Villa-Nova  da  Cerveira,  D.  Diogo  de  Lima  Brito  Nogueira,  nas- 
cido em  1615. 

Foi  do  Conselho  de  Estado  e  do  da  Guerra,  governador  das 
Armas  de  Entre  Douro  e  Minho,  estribeiro-mór  de  El-Rei  D.  Af- 
fonso  VI,  senhor  de  varias  alcaidarias-móres,  commendador  de  Chris- 
to.  Morreu  no  seu  Palácio  da  Rosa  em  24  de  Abril  de  1665  e  sua 
mulher  havia  morrido  no  seu  solar  de  Ponte  de  Lima  em  o  anno 
de  1653. 

Um  filho  d'este  matrimonio,  o  primogénito,  morreu  afogado  no 
Tejo,  quando  em  companhia  de  El-Rei  D.  Affonso  VI,  navegavam 
em  frente  de  S.  José  de  Ribamar.  Parece  que  este  teve,  em  vida  de 
seu  pae,  o  titulo  de  Visconde,  porque  seu  irmão  João,  que  lhe  suc- 
cedeu,  era  o  11.°  Visconde  e  seu  pae  fora  o  9."  na  ordem  numérica 
dos  Viscondes. 

XII  — D.  João  Fernandes  de  Lima  Vasconcellos  Brito  Nogueira,, 

11.°  Visconde  de  Villa  Nova  da  Cerveira,  nasceu  em  Ponte  de  Lima, 
a  12  de  outubro  de  1655.  Casou  com  a  Condessa  de  Athouguia, 
D.  Victoria  de  Bourbon,  viuva  do  Conde  D.  Manuel  Lima  de  Athaide. 
Do  casamento  com  o  Visconde  houve,  entre  outros  herdeiros : 

XIII  —  D.  Thomaz  de  Lima  Vasconcellos  de  Brito  Nogueira,  12.° 
Visconde  de  Villa  Nova  da  Cerveira,  que  morreu  em  26  de  abril  de 
1674.  Casou  com  a  princêza  Maria  de  Hohenloe,  filha  de  Luis  Gus- 
tavo, Conde  de  Hohenloe  e  Príncipe  do  Sacro  Romano  Império,  etc, 
etc.  (Vid.  Os  Grandes  de  Portugal,  por  D.  António  Caetano  de 
Sousa).  Tiveram:  D.  João  de  Lima,  que  morreu  menino,  e  a  filha 
que  lhes  succedeu. 

XIV  — D.  Maria  Xavier  de  Lima  Hohenloe.  Foi  13. ^  Viscondessa 
de  Villa  Nova  da  Cerveira.  Nasceu  no  1."  de  Dezembro  de  1697,  e 
casou  em  28  de  Outubro  de  1720  com  Thomaz  da  Silva  Telles,  filha 
dos  2.°*  Marquezes  de  Alegrete;  morreu  a  5  de  julho  de  1730. 


19 


D'este  casamento  nasceram  vários  filhos,  seguindo  a  linha  com 
o  primogénito. 

XV  — D.  Thomaz  Xavier  de  Lima  Nogueira  Vasconcellos  Telles 
da  Silva,  nascido  em  Ponte  de  Lima  a  12  de  outubro  de  1727,  foi 
14.°  Visconde  de  Villa  Nova  da  Cerveira,  L°  Marquez  de  Ponte  de 
Lima,  1."  ministro  de  D.  Maria  1."  e  seu  mordomo-mór.  Foi  soba  sua 
gerência  que  Diogo  Ignacio  de  Pina  Manique  fundou  a  Casa  Pia. 
Casou  em  4  de  julho  de  1745  com  D.  Eugenia  Maria  Josefa  de  Bra- 
gança, nascida  em  1725,  filha  dos  Marquezes  de  Alegrete  e  neta 
materna  dos  Duques  de  Cadaval.  Marido  e  mulher  morreram  em 
1780.  D'este  enlace  nasceu,  entre  outros,  o  filho  primogénito. 

XVI  — D.  Thomaz  Xavier  de  Lima,  15.°  Visconde  de  Villa  Nova 
da  Cerveira,  que  morreu  em  vida  de  seu  pae  em  1780,  tendo  casado 
com  D.  Maria  José  de  Assis  Mascarenhas,  em  1777,  filha  dos  5.°^ 
Condes  de  Óbidos. 

Teve  d'este  casamento  um  filho,  com  o  qual  segue  a  linha, 

XVII  — D.  Thomaz  José  Xavier  de  Lima  Vasconcellos  de  Brito 
Nogueira  Telles  da  Silva,  nascido  a  12  de  dezembro  de  1779,  e  f oi 
16."  Visconde  de  Villa  Nova  da  Cerveira  e  2°  Marquez  de  Ponte  de 
Lima.  Casou  em  1807  com  D.  Helena  José  de  Assis  Mascarenhas, 
que  nasceu  a  21  de  fevereiro  de  1784,  sendo  filho  dos  4.°*  Condes 
de  Óbidos.  D'este  casamento  nasceu 

XVIII  —  D.  José  Xavier  de  Lima  Vasconcellos  Brito  Nogueira 
Telles  da  Silva,  17.°  Visconde  de  Villa  Nova  da  Cerveira  e  5."  Mar- 
quez de  Ponte  de  Lima. 

Este  foi  o  ultimo  Marquez  d'este  titulo,  de  que  nos  occupâmos. 


20 
NOTA    B 

(Pag.  3) 

No  Almanach  de  «O  Commercio  de  Lima^ ,  de  1909, 
o  sr.  Dr.  Manoel  de  Oliveira,  distinctissimo  medico 
municipal  em  Ponte  de  Lima,  deputado  e  senador  ao 
Congresso  da  Republica,  iilustre  pelos  dotes  da  sua  intei- 
ligencia  e  variada  iliustração,  escreveu  um  artigo,  a  que 
devemos  fazer  honrosa  referencia,  e  seria  graVe  falta  não 
a  fazer  n'este  nosso  estudo. 

Nesse  artigo,  que  tem  por  titulo  Pro  Veritate,  se  lê  o 
seguinte: 

«Os  municipios  na  Edade  Média,  revoltando-se  contra 
«as  exigências  legaes  dos  senhores  de  Juro  e  herdade, 
«evidenciavam  essa  força  mysteriosa  de  vida  e  revolução, 
«mais  por  instinto  do  que  por  consciência  nitida  de  seus 
«direitos,  mais  em  defeza  natural  de  seus  interesses  do 
«que  em  ódio  a  seus  senhores. 

«A  critica  parcelar  da  Historia,  baseada  nessas  luctas 
«titânicas  do  município  de  Ponte  de  Lima,  aponta  D.  Leo- 
«nel,  o  visconde,  e  seus  descendentes  mais  próximos, 
«como  tyranos  desta  nossa  terra,  tão  encantadora  e  tão 
«linda.  Quem  assim  a  ouvir  julgará  que  esses  homens  só 
«de  extorsões  viviam,  ignorando  os  enormes  serviços  que 
«prestavam  á  Pátria  e  que  se  elles  exigiam  tributos,  estes 
«lhes  eram  facultados  pelas  leis  e  costumes  da  Edade-Me- 
«dia,  nas  doações  de  juro  e  herdade  que  lhes  faziam  os 
«monarchas,  como  paga  de  seus  trabalhos  nas  conquistas 
«e  descobertas  marítimas.  ^ 

A  estes  períodos,  acrescentou  o  distincto  escriptor 
uma  erudita  nota  histórica,  que  julgamos  dever  transcre- 
ver na  integra. 


21 


E'  a  seguinte: 


De  um  códice  dos  fins  do  século  xvi  vamos  transcrever  o  sum- 
mario  dos  principaes  serviços  prestados  á  Pátria  por  D.  Leonel  de 
Lima  e  seus  descendentes  immediatos.  É  o  duplicado  d'um  requeri- 
mento feito  por  D.  Luiz  de  Brito  Nogueira  ao  cardeal  rei,  pedindo- 
Ihe  para,  a  despeito  da  lei  mental,  ser  encorporada  na  sua  casa,  a  de 
seu  sogro  D.  Francisco  de  Lima,  que  foi  o  ultimo  representante  va- 
ronil no  ramo  direito  da  sua  linhagem. 

-. .  .Lionel  de  Lima  foi  na  tomada  de  Ceita,  he  em  tempo  d'el 
Rey  Dom  Duarte  foi  cos  Iffantes  a  Tamgere  com  muita  gente  he 
alguns  de  seus  filhos  co  elle.  He  sendo  hum  dia  a  guarda  do  palan- 
que sua,  elle  cos  seus  sosteve  não  ser  emtrado  aquelle  dia,  onde 
ganharão  muita  honra. 

He  foi  mais  he  alguns  de  seus  filhos  co  elle,  he  com  muita  gente 
com  el  Rey  dom  Afonsso  o  quinto  na  tomada  Dalcaçere. 

He  foi  na  tomada  de  Tamgere  he  na  Darzilla,  em  que  levava 
seiscentos  de  pé,  he  sesenta  de  cavallo,  he  os  seiscentos  erão  bes- 
teiros,  lanceiros  he  escudados,  he  muitos  navios,  he  mantimentos. 

He  se  achou  em  todas  as  guerras  de  Castella.  que  o  mesmo  Rey 
teve  onde  fez  muitos  e  valiosos  serviços. 

He  foi  muito  estimado  de  quatro  Reys  que  sérvio,  por  que  todos 
sérvio  sempre  co  a  lança  na  mão,  he  foi  o  capitão  que  mais  vitorias 
teve  na  fronteira  de  galiza,  onde  estava,  he  que  mais  terras  tomou 
por  que  emtrou  por  galiza  até  o  Padrão  seis  legoas  de  Santiago,  he 
tomou  he  destruhio  muitas  villas  he  lugares,  he  os  trouxe  á  obediên- 
cia dei  Rey  de  Portugal. 

He  foi  mandado  por  embaixador  a  Castella  por  mandado  dei  Rey 
Dom  Afonsso  o  quinto  no  tempo  dei  Rey  dom  João  o  segundo  de 
Castella.  He  na  batalha  Dulmedo  que  El  Rey  teve  cos  Iffantes  seus 
cunhados  pelejou  elle  tam  valerosamente,  he  fez  taes  cousas  que  lhe 
fez  o  dito  Rey  de  Castella  mercê  de  duzentos  mil  reis  decostamento. 

He  em  tempo  dei  Rey  Dom  João  o  segundo  se  fez  prestes  para 
o  socorro  Da  graciosa  com  perto  de  mil  homens  de  pé,  antre  escu- 
deiros e  peães,  he  muitos  navios  que  mandou  á  sua  custa  fretar  a 
galiza;  he  sendo  muito  velho,  he  co  huma  espingarda  por  uma  perna 
que  lhe  derão  nas  guerras  de  Castella,  de  que  nunca  foi  são,  lhe  não 
safreo  o  coração  ficar  n'este  Reyno,  he  mandou  levar  uma  tumba 
cuberta  de  veludo  preto,  em  que  o  enterrassem  se  lá  morresse.  He 
este  foi  o  primeiro  Bisconde. 

—  Dom  João  de  lima  seu  filho,  herdeiro  de  sua  casa  he  Titollo,  foi 
guarda  mor  dei  Rey  Dom  João  o  segundo;  foi  em  vida  de  seu  pae 
cos  Iffantes  a  Tamgere,  he  co  el  Rey  Dom  Afonsso  o  quinto  na 
tomada  Dalcaçere,  he  assi  se  achou  na  tomada  de  Tamgere,  he  na 
tomada  Darzilla,  he  em  todallas  guerras  de  Castella,  he  na  entrada 
da  ponte  de  Samora  foi  muito  mal  ferido  dhuma  espinguardada. 


22 


—  Dom  francisco  de  lima  seu  filho  herdou  sua  casa  he  Titollo, 
mandou-ho  el  Rey  Dom  Manoel  Azamor  quando  foi  o  Duque  de  Bar- 
guança  que  levasse  trezentos  homens:  e  assi  o  mandou  Arzilla  co 
sessenta  de  pé  he  oito  de  cavallo.  He  assi  foi  ao  cerco  Darzijla  co 
cento  e  çimcoenta  de  pé  he  corenta  de  cavallo,  onde  esteve  hum 
anno  e  se  achou  com  o  Conde  de  Borba  em  todas  as  emtradas  que 
fez.  He  em  huma  foi  por  Capitão  só  coa  sua  gente  he  co  corenta  de 
cavallo  que  lhe  o  Conde  deu,  he  nella  tomou  e  çaqueou  algumas  aldeãs 
de  que  trouxe  muito  grande  preza  sem  perda  de  nenhum  dos  seus. 

—  Dom  João  de  Lima  seu  filho  herdou  sua  casa  he  Titollo,  foi 
por  mandado  d'el  Rey  Dom  João  o  terceiro,  quando  mandou  os 
morgados  a  Ceita  co  muita  gente,  he  navios  he  mantimentos  co 
muito  gasto  de  sua  fazenda,  e  assi  sérvio  sempre  em  todas  as  mais 
cousas  que  socederão  he  que  o  mandarão  .  . .- 

A  muitos  d'estes  factos  summariados  por  D.  Luiz  de  Brito  no 
seu  memorial,  referem-se,  e  por  vezes  largamente,  os  nossos  velhos 
chronistas.  A  seguinte  resenha  bibliographica  servirá  de  roteiro  aos 
estudiosos  e  de  justificação  ás  palavras  acima  transcriptas: 

D.  Leonel  de  Lima: 

Expedição  a  Ceuta:  Chronica  de  D.  Duarte,  por  Nunes  de  Leão, 
cap.  VIII,  pag.  23.  Chronica  de  Duarte,  de  Ruy  de  Pina,  cap.  xv. 
Africa  Portugueza,  por  Faria  e  Souza,  cap.  iii,  pags.  37  e  41. 

Expedição  de  Tangere  e  guarda  do  palanque :  Chronica  de 
D.  Duarte,  por  Nunes  de  Leão,  caps.  xi  e  xii  ;  Chronica  de 
D.  Duarte,  de  Ruy  de  Pina,  caps.  xxvii  e  xxx. 

Embaixada  de  Castella  em  1443 :  Europa  Portugueza,  por  Faria 
e  Souza,  tom.  ii,  part.  iii   cap.  iii,  pag.  370. 

Leonel  de  Lima  foi  uma  das  principaes  personagens  que  figura- 
raram  no  pomposo  baptisado  de  D.  João  II  (vide  Europa  Portu- 
gueza, cap.  IV,  pag.  428),  e  foi  uma  das  mais  notáveis  da  corte  de 
D.  Affonso  V  (vide  Historia  Genealógica  da  Casa  Real,  tom.  iii. 
pag.  8).  —  Alguns  dos  filhos  segundos  de  Leonel  de  Lima  praticaram 
também  actos  de  bravura  na  Africa.  Lembraremos  Pedro  de  Lima, 
em  Alcácer  (Chronica  de  D.  Duarte  de  Menezes,  pag.  227)  e  Álvaro 
de  Lima,  que  foi  captivo  na  expedição  de  Tangere  em  1464  (Africa 
Portugueza,  cap.  vi,  pag.  59)  e  foi  na  entrada  de  Merida  em  1476 
(Europa  Portugueza,  tom.  ii,  part.  iii,  cap.  iii,  pag.  420).  A  res- 
peito 4e  D.  Leonel  de  Lima,  veja-se  ainda :  Chronica  da  Conceição, 
tom.  II,  cap.  II  e  seguintes.  Escola  da  Penitencia,  cap.  xxiv,  pag.  395. 

D.  João  de  Lima,  o  ii  visconde: 

Jornada  de  Alcácer:  Chronica  de  D.  Duarte  de  Menezes,  por 
Azurara,  pag.  170. 


23 


Tomada  de  Tangere,  o  velho:  idem,  idem,  pag.  242. 

Entrada  da  Ponte  de  Çamora;  Chronica  de  D.  Affonso  V,  de 
Ruy  de  Pina,  cap.  184;  Chronica  dei  Rey  Affonso  V,  por  Nunes  de 
Leão,  cap.  iv;  Chronica  do  Principe  D.João,  por  Dameào  de  Qoes, 
cap.  Lxviii;  Europa  Portugueza,  tom.  ii,  part.  iii,  cap.  iii,  pag.  402. 

D.  Francisco  de  Lima,  o  iii  visconde : 

Sobre  a  ida  a  Arziila  e  as  entradas  nas  fronteiras  mouriscas, 
veja-se  Chronica  de  D.  Manuel,  por  Dameão  de  Góes,  ò.^  parte, 
caps,  VIII  e  XI.  Sobre  esta  aparatosa  expedição,  veja-se  também  a 
interessantíssima  noticia  dada  pelo  sr.  dr.  Figueiredo  da  Guerra,  no 
seu  notável  Archioo  Viannense,  pag.  75,  noticia  extrahida  do  Memo- 
rial de  Calheiros.  Ha  na  apreciação  dos  factos  certa  divergência 
entre  Góes  e  o  auctor  do  Memorial.  Vide  ainda  Africa  Portugueza, 
por  Faria  e  Souza,  pag.  90. 

D.  João  de  Lima,  o  iv  visconde: 

Ia  por  capitão  á  índia  em  1518,  quando  lhe  sobreveio  um  desas- 
tre no  navio  próximo  do  Cabo  da  Boa  Esperança,  estando  a  ponto 
de  perder-se  e  tendo  por  isso  de  regressar  a  Portugal.  Ásia  Portu- 
gueza, tom.  I,  cap.  II),  pag.  185.  —  Voltou  á  índia  como  capitão,  em 
companhia  de  Diogo  Lima,  em  1522.  —  i4s/a  Portugueza,  tomo  i, 
cap.  VII,  pag.  217.  —  Foi  governador  de  Calecut,  onde  praticou 
actos  de  subido  grande  valor.  Ásia  Portugueza,  tom.  i,  cap.  ix, 
pag.  236  e  seguintes.  —  Chronica  de  D.  João  III,  por  Francisco  de 
Andrade,  1.^  parte,  cap.  57,  70  a  75,  78  a  84,  88  a  91,  etc. 


24 


NOTA    C 

(Pag.  9) 


Da  Chorografia  Portugueza  do  Padre  Carvalho,  vê-se  que  os 
Viscondes  de  Villa-Nova  da  Cerveira  tinham  a  prerogativa  realenga 
do  direito  de  apresentação  de  muitos  parochos  e  da  nomeação  de 
officiaes  de  justiça. 

No  concelho  de  Arcos  de  Vai  de  Vez  apresentavam  os  parochos 
das  seguintes  freguezias : 

Sancta  Comba  de  Guilhafonce. 

S.  Jorge. 

Nossa  Senhora  do  Valle. 

Sancta  Maria  da  Oliveira. 

Sancta  Eulália  de  Gondariz. 

S.  Cosmêde. 

S.  Salvador  de  Cabreiro. 

Sancta  Maria  de  Mei. 

Sancto  André  da  Portela. 

Nossa  Senhora  das  Neves  de  Padrôso. 

Sancta  Comba  de  Eiras. 

Sancto  Estevão  de  Aboim. 

S.  Salvador  de  Sabadin. 

Sancta  Vaia  de  Rio  de  Moinhos. 

Sancta  Maria  de  Prozêlo. 

S.  Bartholomeu  de  Monte-Redondo. 

Sancta  Maria  de  Távora. 

S.  Paio  de  Jolda. 

S.  João  de  Villar  do  Monte, 

No  concelho  de  Coura : 

Sancta  .Maria  de  Paredes. 
S.  Pedro  de  Castanheira. 
S.  João  de  Bico. 
S.  Miguel  de  Christelo. 
Sancta  .Marinha  de  Padornêllo. 
S.  Pedro  de  Formariz. 


25 


S.  Paio  de  Aguas  Longas. 
S.  Pedro  de  Ruivães. 

No  concelho  de  Famalicão : 

S.  Salvador  de  Ruivães. 

Mais: 

Sancta  Cruz  do  Douro,  no  concelho  de  Baião. 

S.  Martinho  de  Soalhaes  (no  concelho  d'este  nome). 

Sancto  André  ds  Portel. 

Priorado  de  Alemquer. 

S.  Lourenço,  em  Lisboa. 

S.  Miguel  de  Barrio  (em  Ponte  de  Lima). 

Apresentavam  os  Viscondes  de  Villa  Nova  da  Cerveira  seis  íabel- 
liães  e  um  alcaide,  no  concelho  de  Arcos  de  Vai  de  Vez ;  e  pagavam- 
Ihe  pensão  os  seis  tabelliães  do  concelho  de  Ponte  de  Lima. 

Tinham  o  senhorio  da  villa  dos  Arcos  de  Vai  de  Vez;  o  (dos 
então  concelhos)  de  Santo  Estevão  de  Facha  e  de  Geraz  do  Lima,  o 
do  concelho  de  Coura,  o  das  terras  do  Beiral  do  Lima  e  Couto  de 
Nogueira,  em  Villa  Nova  da  Cerveira,  que  era  a  cabeça  do  Viscon- 
dado.  Era  donatário  e  Capitão-general  da  ilha  do  Fogo  (Vid.  Carva- 
lho, cit.  e  a  Resenha  das  Fam.  Titul.  e  Grandes  de  Portugal  por 
Albano  da  Silveira  e  Sanches  de  Baêna,  Tomo  2.°)  fora  as  diversas 
commendas,  como  a  de  Sancta  Maria  de  Passos,  de  Valongo,  S.  Mi- 
guel da  Foz  de  Arouce  (Cron.  cit.)  e  as  de  Sancta  Maria  de  Borba 
e  Sancta  Maria  de  Satam,  como  já  dissemos  no  texto. 


26 


NOTA    D 
O  decreto  de  13  de  agosto  e  as  rendas  que  elle  aboliu. 

(Pag.  lOj 


No  já  citado  artigo  — Pro  Veritate—áo  Dr.  Manoel 
de  Oliveira  — que  diz  possuir  parte  dos  papeis  do  archivo 
dos  antigos  donatários  de  Ponte  de  Lima,  os  quaes  pas- 
saram para  o  adquirente  do  grandioso  edificio  d^aquella 
villa  e  lhe  foram  cedidos  pelas  senhoras,  representantes 
e  herdeiras  d'aquelle  adquirente,  —  indica  o  distincto  es- 
criptor  qual  a  importância  das  rendas,  que  cobravam  os 
Marquezes  naquella  qualidade  de  donatários. 

Em  face  de  taes  documentos,  pôde  dizer  o  seguinte : 

cRecebiam  o  quinto  de  todo  o  trigo,  centeio,  cevada,  milho, 
«painço,  aveia,  vinho  e  linho  produzidos  dentro  dos  limites  marcados 
«pelo  foral  de  D.  Thereza  confirmado  por  D.  Manoel  e  verificados 
«em  1626  e  1640.  Alem  d'estes  direitos  recebiam  tributos  em  dinheiro 
«de  todas  as  casas  de  Ponte  de  Lima,  excepto  das  privilegiadas. 

«Em  1814,  a  avença  do  quinto  rendia  para  o  donatário  330$250  réis 
«em  metal  e  150  alqueires  de  pão.>^ 

Vamos  para  aqui  transcrever  o  texto  dos  principaes 
artigos  do  decreto  que  aboliu  todas  essas  onerosas  ren- 
das e  excepcionaes  alcavallas,  e  que  o  Marquez,  que  as 
perdeu,  foi  um  dos  primeiros  a  applaudir.  Tem  18  arti- 
gos. Copiaremos  os  artigos  desde  2  a  9,  que  são  os  que 
mais  interessam  ao  nosso  intento : 


Art.  2.°  — Os  bens  da  nação,  tomada  collectivamente,  são  os 
bens  do  uso  geral,  e  commum  dos  habitantes,  como  portos,  canaes, 
rios  navegáveis,  estradas  geraes,  e  pontes  n'ellas  construídas,  cães, 
e  edifícios  destinados  para  a  residência  do  rei,  ou  para  as  sessões 


27 


das  camarás,  secretarias,  tribunaes,  aquartelamentos,  estaleiros, 
arsenaes,  e  outros  semelhantes.  Os  bens  da  nação,  adquiridos  por 
títulos  de  successâo,  e  execução  fiscal,  e  não  destinados  ao  uso  geral, 
e  commum,  serão  regulados  pelas  leis  da  fazenda,  e  formarão  parte 
do  thesouro  publico  disponível :  a  nenhuma  d'estas  espécies  de  bens 
he  applicavel  a  jurisprudência  dos  bens  chamados  — da  coroa—:  a 
natureza  d'estes  bens  fica  extincta,  bem  como  todas  as  leis  relativas 
a  elles,  e  á  sucessão  d'elles. 

Art.  5."  — As  doações  feitas  pelos  reis  d'estes  reinos  de  bens 
chamados  da  coroa;  de  bens  da  fazenda  publica;  de  direitos  cha- 
mados—  direitos  reaes— ;  do  gozo  exclusivo  de  bens  destinados  ao 
uso  geral,  e  commum  dos  habitantes;  os  foraes  daáos  ás  terras  do 
reino,  ou  pelos  reis,  ou  pelos  donatários;  e  os  foros,  pensões,  quo- 
tas, rações  certas,  e  incertas,  laudemios,  luctuosas,  e  mais  direitos, 
e  prestações  de  qualquer  denominação  que  sejão,  impostas  pelos 
reis,  ou  pelos  donatários  em  virtude  de  suas  respectivaas  doações, 
ou  pelos  foraes,  ainda  que  estejão  reduzidos  a  emprazamentos,  ou 
sub-emprazamentos,  ou  a  censos,  são  por  sua  natureza  revogáveis. 

Art.  4."  -As  contribuições,  e  tributos  pagos  pelos  povos,  sendo 
essencialmente  destinados  para  as  despezas  publicas,  não  podem 
fazer  o  património  de  alguma  corporação,  ou  individuo  de  qualquer 
hierarchia  que  seja :  as  contribuições  e  tributos  serão  de  sua  natu- 
reza geraes,  e  devem  ser  repartidas  entre  todos  os  habitantes  da 
monarchia,  segundo  as  leis  geraes.  Os  direitos,  foros,  pensões,  e 
mais  prestações  enumeradas  no  art.  3.",  e  impostos  pelos  donatários, 
ou  pelos  foraes,  são  verdadeiros  tributos  e  contribuições,  que  nem 
todos  pagavão,  nem  de  todas  as  terras,  e  não  podem  continuar  a 
subsistir. 

Art.  5.°— Ficão  por  conseguinte  cassadas  e  revogadas  todas  as 
doações  de  quaesquer  dos  bens  enumerados  no  art.  3.°,  feitas  pelos 
reis  a  qualquer  corporação,  ou  individuo  de  qualquer  hierarchia  que 
seja  ;  e  extinctos  todos  os  foraes  dados  ás  differentes  terras  do  reino, 
ou  fossem  dados  pelos  reis,  ou  pelos  donatários  da  coroa. 

Art.  6.°  —  Ficão  extinctos  todos  os  foros,  pensões,  quotas,  cen- 
sos, rações  certas  e  incertas,  jugadas,  teigas  de  Abrahão,  laudemios, 
luctuosas  e  mais  direitos  e  prestações  de  qualquer  denominação  que 
sejão,  impostos  nos  bens  enumerados  no  art.  3.",  ou  pelos  reis,  ou 
pelos  donatários,  ou  por  contractos,  de  emprazamento,  ou  sub-empra- 
zamento,  ou  de  censo,  fundados,  em  doações  regias,  ou  em  foraes, 
ou  em  sentenças,  ou  posses,  ainda  que  sejam  immemoraveis,  ou  por 
outro  qualquer  titulo,  posto  que  não  especificado. 

Art.  7."  — Ficão  extinctos  os  prazos  da  coroa,  os  relegos,  os 
reguengos,  os  senhorios  das  terras,  e  as  Alcaidarias  mores,  salva  a 
conservação  puramente  honorária  dos  titulos. 

Art.  8."— As  terras  e  os  edifícios,  e  demais  bens  enumerados 
no  art.  3  °,  em  que  estavão  impostos  os  tributos  e  prestações  e  mais 


28 


direitos  extinctos,  pelos  arts.  6."  e  7.°,  ficão  livres  e  allodiaes  em 
poder  de  quem  pagava  esses  tributos,  prestações  e  mais  direitos 
extinctos,  para  poder  dispor  delies  como  quizer  em  todo,  ou  por  par- 
tes, ou  transmitti-los  a  seu*  herdeiros  e  successores  e  dividi-los  por 
elles  como  seus  próprios,  ou  os  houvesse  dos  reis,  ou  dos  donatários, 
ou  d'aquelles,  que  os  tivessem  havido  dos  reis,  ou  dos  donatários. 

Art.  9.°— Ficào  revogados,  a  beneficio  dos  gravados,  todos  os 
impostos  cobertos  com  os  nomes  de  emprazamento,  ou  sub-empraza- 
mento,  ou  de  censo,  ou  de  retro  aberto,  ou  de  outra  qualquer  deno- 
minação, feitos  sobre  os  bens  especificados  no  art.  3.°,  ou  fossem 
feitos  pelos  reis,  ou  pelos  donatários,  ou  por  os  que  d'elles  obtiverão 
esses  bens  ou  por  qualquer  titulo. 

Art.  10."— Fica  revogada  a  lei  mental  e  todas  as  leis  que  regu- 
lavào  a  successão  dos  bens  da  coroa. 

Paço  na  cidade  do  Porto,  13  de  agosto  de  1852. 

D.  Pedro,  Duque  de  Brag.\nça. 
José  Xavier  Mousinho  da  Silveir.^. 


António  Corrêa  Caldeira 


(Esboço  biográphico) 


O  Conselheiro  António  Corrêa  Caldeira  (António  José 
Marques  Corrêa  Caldeira,  nos  registos  universitários), 
doutor  pela  Faculdade  de  Direito  da  Universidade  de 
Coimbra,  lente  substituto  ordinário  da  mesma  Faculdade, 
secretario  do  governo  civil  de  Lisboa,  secretario  do  Con- 
selho de  Estado,  deputado  em  muitas  e  successivas  legis- 
laturas, conselheiro  do  Tribunal  de  Contas,  vice-presidente 
da  Camará  dos  deputados  nas  sessões  legislativas  de  1872, 
1875  e  1874,  Par  do  Reino,  nasceu  na  villa  de  Ponte  de 
Lima  em  13  de  outubro  de  1815  e  ali  passou  os  primeiros 
annos  da  sua  mocidade. 

Foi  um  homem  illustre  por  talento  e  virtudes,  tendo 
uma  grande  notoriedade  e  consideração  politica  desde  1842 
até  1876,  em  que  falleceu. 

Era  filho  de  José  Marques  Caldeira,  official  do  exer- 
cito, oriundo  de  uma  familia  das  proximidades  de  Coim- 
bra, o  qual  morreu  no  posto  de  general  de  brigada,  e  da 
Senhora  D.  Anna  Ephigenia  Rita  Corrêa,  dama  limiense, 
sobrinha  de  Frei  Francisco  de  S.  Luiz. 

Pertencia  assim,  por  sua  mãe,  o  nosso  biographado  á 


50 


familia  do  glorioso  monge  benedictino,  que  patrioticamente 
abandonou  o  recolhimento  e  obscuridade  do  claustro,  bem 
como  os  estudos,  em  que  nelle  tanto  se  comprazia,  para 
se  pôr  á  frente  da  revolução  de  1820! 

O  sábio,  que  foi  escolhido  para  redigir  o  manifesto  ás 


Igreja  Matriz,  onde  foi  baptizado 


nações,  explicando  as  causas  d'esse  grande  movimento 
nacional,  tornando-se  a  voz  da  revolução!  O  varão  insigne, 
que  foi  um  dos  membros  do  governo  superior  do  reino  na 
ausência  do  rei!  O  patriota,  que  presidiu,  com  Manoel 


31 


Fernandes   Thomaz,    ás   cortes   constituintes   de   1822  e 
depois  á  legislatura  de  1827! 

Frade  liberal  e  frade  catholico  e  virtuosíssimo,  que  veio 
a  ser  Bispo-Conde  de  Coimbra,  ministro  de  Estado,  rei- 
tor da  Universidade,  Patriarcha  de  Lisboa  e  Cardeal  da 
Sancta  Igreja  Romana ! 


Tendo,  pelas  exigências  da  Vida  militar,  sabido  seus 
pães  da  villa  de  Ponte  de  Lima,  ficou  o  filho  entregue  aos 
cuidados  de  suas  tias,  irmãs  do  futuro  cardeal,  D.  Joanna 
e  D.  Marcelina  Saraiva,  que  o  crearam  e  educaram  como 
seu  filho  predilecto  e  estremecido. 

Frequentou  a  aula  de  latim  na  casa  situada  no  Largo 
do  Adro  da  Matriz,  que  faz  esquina  para  a  Rua  do  Souto 


Caza  onde  foi  a  aula  de  latim 


(hoje  de  Vieira  Lisboa),  a  qual  é  actualmente  habitada 
pelo  bondoso  homem  e  honrado  negociante,  o  Sr.  Manoel 
Faria. 

N'ella  ensinava  a  lingua  de  Virgílio  e  Horácio  o  pro- 


52 

fessor  Falcão,  um  d'estes  mestres  de  ríspido  focinho  — 
na  phrase  de  Tolentino— ,  dos  quaes  tanto  abundava  a 
épocha. 

Pode  dizer-se  que  madrugaram  no  nosso  biografado  as 
scintillações  de  uma  intelligencia,  que,  mais  tarde,  tanto 
havia  de  preluzir ! 

Sendo  dos  mais  novos  era  o  primeiro  e  mais  distincto 
dos  aiumnos! 

Não  obstava  porém  isso  a  que  o  professor,  odiento  e 
fanático  absolutista,  o  maltractasse  e  lhe  dirigisse  chufas 
e  motejos,  allusivos  ao  tio,  o  respeitável  e  virtuoso  Bispo 
resignatario  de  Coimbra,  cujo  liberalismo  havia  concitado 
os  ódios  de  todos  os  retrógrados  da  épocha! 

Teve  por  isso  que  abandonar  a  aula,  onde  já  não  tinha 
que  aprender  e  que  só  frequentava,  porque  as  angustio- 
sas circumstancias  da  familia  lhe  não  permittiam  ir  cursar 
os  estudos  superiores,  para  os  quaes  o  estavam  impellindo 
as  aptidões,  que  já  se  evidenciavam  n'elle. 


II 


Cedo  lhe  começou  a  vida  do  trabalho. 

Acabada  a  guerra  civil,  estabelecida  a  ordem  legal, 
chamado  até  á  gerência  da  pasta  do  reino  o  Bispo-Conde 
resignatario,  seu  tio,  obteve  um  pequeno  logar  na  perfei- 
tura  do  Minho,  donde  passou  para  a  de  Coimbra  e  depois 
para  a  secretaria  do  respectivo  governo  civil. 

Foi  assim  que  pôde  seguir  os  estudos  universitários, 
matriculando-se  na  Faculdade  de  Direito,  em  novembro 
de  1856  e  concluindo  a  formatura  em  1841. 

Estudante,  que  desde  logo  se  revelou  muito  distincto, 


oo 


obteve  o  primeiro  premio  pecuniário  no  4.°  e  5.°  anno  do 
-seu  curso.  Nos  annos  anteriores,  por  virtude  dos  aconte- 
cimentos políticos,  não  houve  classificações  pecuniárias 
,nem  honorificas. 

Frequentou  o  6.°  anno  e  recebeu  o  capello  com  o 
•grau  de  doutor  em  24  de  Julho  de  1842. 

Já  depois  do  exercício  dos  cargos  officiaes  e  das 
funcções  legislativas,  a  que  vamos  referir-nos,  conquis- 
tou, em  brilhante  concurso,  o  logar  de  lente  substituto 
extraordinário  da  faculdade  em  que  se  doutorou  (1854) 
■e  foi  ainda  promovido  a  lente  substituto  ordinário  (1855). 


As  seducções  da  politica  e  da  vida  da  capital,  afasta- 
ram-n'o  de  Coimbra  e  do  professorado  universitário. 

Em  1844  havia  sido  nomeado  secretario  geral  do  go- 
verno civil  de  Lisboa,  e  conservou  esse  cargo  até  1851. 
N'elle  foi  —  como  se  diz  vulgarmente  —  o  braço  direito  do 
governador  civil,  Marquez  de  Fronteira,  honrado  soldado 
da  liberdade,  fidalgo  de  antiga  linhagem,  neto  daquella 
encantadora  mulher  e  gloriosa  poetisa,  que  se  chamou 
D.  Leonor  de  Almeida,  Condessa  de  Oeyhansen  e  de 
Assumar,  Marqueza  de  Alorna,  e  que  teVe,  no  mundo  da 
elegância  e  das  lettras,  o  nome  de  formosa  Alcipe! 

De  1845  a  1846  foi  governador  civil  interino,  conser- 
vando o  logar  de  secretario,  que  depois  voltou  a  exercer. 

Demittiu-se  deste  cargo,  quando,  triumphante  a  revo- 
lução do  Duque  de  Saldanha,  em  1851,  se  inaugurou  o 
governo  chamado  da  regeneração,  ao  qual,  como  depu- 
tado, fez  intransigente  opposição. 


34 


Em  1856  foi  nomeado  secretario  do  ConseFho  de  Es- 
tado, que  então  reunia  também  as  attribuições,  que  hoje 
pertencem  ao  Supremo  Tribunal  Administrativo.  Exerceu 
esse  logar  até  1859,  em  que  foi  nomeado  conseliíeiro  do 
Tribunal  de  Contas,  cargo  que  desempenhou  até  ao  seu 
fallecimento. 


Era  extremamente  cuidadoso  no  desempenho  das  suas 
funcções  officiaes.  Considerava  uma  deshonestidade  o- 
recebimento  dos  ordenados  sem  o  correspondente  traba- 
lho. Detestava  os  parasitas  do  orçamento,  que  sempre 
lhe  repugnaram.  Professando  estes  sentimentos,  exerceu 
os  seus  cargos  com  o  maior  cuidado  e  brio. 


IV 


Posto  fosse  assim  funcionário  muito  distincto  e  que^ 
como  tal,  conquistasse  nome  honroso  pela  sua  inteligên- 
cia, illustração  e  integridade,  foi  comtudo  o  parlamento  o 
campo  onde  mais  se  manifestaram  as  altas  qualidades  do 
seu  espirito  e  o  brilho  do  seu  talento. 

Entrando  pela  primeira  vez  na  Camará,  em  1848,  foi 
successivamente  eleito  deputado  em  onze  legislaturas, 
desde  a  daquelle  anno  até  á  de  1871  a  1874,  em  que, 
sendo  vice-presidente,  foi  nomeado  par  do  reino. 

Desde  que,  pela  primeira  vez,  tomou  a  palavra,  em 
1848,  marcou  distinctamente  o  seu  logar  no  parlamento 
portuguez. 

A  sua  estreia,  precedendo  poucos  dias  a  de  Luiz  Au- 


35 


gusto  Rebello  da  Silva  —  que  foi  um  dos  principes  da  elo- 
quência parlamentar  nos  tempos  áureos  d'ella, — foi  de 
maiores  effeitos  politicos  do  que  a  deste,  como  consta  dos 
jornaes  da  épocha. 

E  mais  augmentou  depois  o  prestigio  da  sua  palavra  e 
a  auctoridade  d'ella. 

A  um  dos  seus  companheiros  de  parlamento,  grande  e 
insuspeita  auctoridade  para  o  apreciar,  o  sr.  José  Luciano 
de  Castro,  ouvi  dizer  o  seguinte: 

«Tinha  um  grande  valor  parlamentar;  falava  com  grande 
facilidade  e  correcção.» 


Foi  nas  legislaturas  de  1852  e  de  1855  a  1856,  como 
deputado  da  opposição,  que  mais  se  salientou  a  sua  figura 
de  orador. 

Em  um  opúsculo  d'essa  épocha,  que  se  intitula  Apon- 
tamentos sobre  os  oradores  parlamentares  de  1853  por 
um  deputado,  apparece  o  seu  perfil. 

Posto  não  traga  esse  opúsculo  o  nome  do  auctor,  sa- 
be-se  que  o  foi  o  Dr.  Joaquim  Heliodoro  da  Cunha  Rivara, 
erudito  homem  de  letras,  então  bibliothecario  da  Biblio- 
theca  de  Évora,  e  depois  secretario  geral  do  governo  da 
índia.  Apparece  até,  mais  tarde,  esse  opúsculo  enumerado 
entre  as  suas  obras  (1). 

Cunha  Rivara  era  deputado  da  maioria  e  Corrêa  Cal- 
deira da  mais  intransigente  opposição. 

Apezar  de  escripto  por  adversário  politico,  o  perfil  tem 
alguns  traços  verdadeiros,  e  por  isso  o  vamos  transcrever: 


(1)  É  opúsculo  raríssimo  e  muito  difficil  de  encontrar.  Tendo-o 
lido  na  longiqua  colónia,  onde  Cunha  Rivara  muitos  annos  viveu,  só 
podemos  obter  uma  copia  manuscripta  da  parte  consagrada  a  Corrêa 
Caldeira  por  obsequioso  favor  do  nosso  erudito  amigo  dos  tempos  de 
Coimbra,  o  sr.  António  Francisco  Barata,  antigo  conservador  da  Bi- 
bliotheca  de  Évora,  fallecido  pouco  depois  de  nos  ter  feito  esse  favor. 


56 


Diz: 

«O  sr.  Corrêa  Caldeira  não  tem  quarenta  annos.  Tem 
phisionomia  agradável,  que  todavia  obscurece  e  carrega 
pelo  uso  de  óculos  muito  escuros,  que  lhe  encobrem  com- 
pletamente a  expressão  dos  olhos. 

«Parece,  quando  ora,  que  tem  o  rosto  coberto  com 
uma  mascara,  posta  de  propósito  para  amedrontar  o  adver- 
sário. 

«Tem  sido  Varias  vezes  deputado,  mas  é  agora  a  pri- 
meira Vez  que  se  encontra  collocado  na  opposição. 

«Fala  com  desembaraço  e  argumenta  menos  mal. 
Tem  Voz  soffrivel  e  é  ouvido  com  attenção.  De  ordi- 
nário offende  os  seus  adversários  com  a  aspereza  e 
desabrimento  das  suas  palavras.  Interpelador  infantiga- 
vel,  persegue  os  ministros  nos  seus  últimos  entrincheira- 
mentos. 

«É  longo  em  seus  discursos,  d'onde  vem  que  ás  vezes 
cae  em  frouxidão  e  suscita  uma  tal  ou  qual  impaciência 
na  assembleia,  mas  nunca  a  ponto  de  lhe  negar  attenção.» 


Cumpre  registar  que  nunca  lhe  era  negada  attenção 
em  uma  camará  onde  se  sentavam  oradores,  como,  José 
Estevão,  Passos  Manuel,  Rebello  da  Silva,  Avilla,  Vicente 
Ferrer,  Cunha  Souto  Maior,  Mendes  Leal,  Carlos  Bento, 
Casal  Ribeiro  e  outros;  e  estando  na  bancada  do  governo 
Rodrigo  da  Fonseca  Magalhães,  Garrett,  António  Luiz  de 
Seabra  e  Fontes  Pereira  de  Mello. 

Mas  Vejamos!  Corrêa  Caldeira  era,  n'aquelles  tempos, 
considerado  orador  aggressivo  e  Violento ! 

O  que  seria  justo  dizer  é  que  elle  era  um  orador  vehe- 
mente  por  ser  homem  de  arreigadas  e  profundas  convic- 
ções. Obedecia  apaixonadamente  a  estas! 

Mas  as  paixões  —  disse  Garrett  —  são  a  poesia  da  po- 
litica.  São  matéria  d'ella  o  amor  da  pátria,  da  justiça  e 


37 


da  liberdade,  que  com  ardor  costumam  ser  amadas!  Fácil 
é  que  esse  ardor  aqueça  e  incendeie  os  ânimos. 

Ser  apaixonado  não  é  ser  baixo,  nem  grosseiro  na  lucta 
dos  partidos ! 

Não  foi,  nem  podia  ser  Corrêa  Caldeira  um  declama- 
dor  de  facécias,  nem  um  insultador  parlamentar. 

Não  podia  sê-lo,  porque  tinha,  no  mais  alto  grau,  um 
sentimento  necessário  em  todas  as  situações  da  vida. 
Nunca  o  abondonava.  Era  o  respeito  por  si  próprio! 

Era  este  sentimento  que  lhe  dava  uma  grande  nobreza 
de  porte  e  uma  aristocracia  de  maneiras,  que  se  manifes- 
tavam em  todos  os  seus  actos,  em  todas  as  suas  relações 
sociaes. 

Bondoso,  afável,  delicadissimo,  não  facilitava  familiari- 
dades. A  sua  mesma  primorosa  delicadeza,  que  dulcifi- 
cava  o  aprumado  do  seu  trato,  distanciava. 

Mas  é  que  era  um  vaidoso?  Um  fátuo? 

Não !  Largamente  demonstrou  o  seu  desdém  pelas 
fúteis  e  estéreis  Vaidades  humanas. 

Nunca  quiz  ser  ministro.  Por  mais  de  uma  vez  rejeitou 
sê-lo. 

Com  grandes  dotes  de  parlamento,  experiência  de  ne- 
gócios e  perfeito  conhecimento  dos  serviços  públicos,  era 
geralmente  indicado  para  a  gerência  das  pastas  da  justiça 
ou  do  reino. 

Convidado  pelo  duque  da  Terceira,  em  1859,  para 
fazer  parte  do  ministério,  a  que  o  honrado  general  presi- 
dia, recusou-se ;  e,  por  mais  de  uma  vez,  oppôz  inven- 
cível resistência  aos  convites,  que  lhe  fez,  para  aquellas 
pastas,  o  Conde,  depois  Duque  de  Ávila,  com  quem  cons- 
tantemente manteve  estreitas  relações  politicas  e  — mais 
ainda  —  pessoaes. 

Sempre  declinou  esses  oíferecimentos. 

As  miragens  do  poder  não  o  seduziam.  Homem  de 
arreigadas  convicções,  não  as  sacrificava. 

Julgava  não  poder  servi-las,  nem  servir  utilmente  o  paiz, 
nas  situações  em  que  lhe  offereciam  aquelles  altos  cargos. 

D'ahi  o  seu  irreducíivel  retrahimento. 


58 


Mas  voltemos  á  sua  acção  parlamentar  nas  legislaturas 
de  1852  e  1855. 

Dia  a  dia  traVaVa  lucta  com  Rodrigo  da  Fonseca  Ma- 
galhães, que  foi  uma  das  grandes  figuras  do  nosso  parla- 
mento, «para  quem  (diz  Latino  Coelho)  a  tribuna  foi  a  sua 
«predilecção  e  a  sua  gloria,  e,  dispondo  de  uma  palavra 
«solemne  e  persuasiva,  foi  um  grande  e  exemplarissimo 
«orador.»  (1) 

Rodrigo  da  Fonseca  respeitava-o  e  temia-o.  Para  lhe 
desviar  os  golpes,  por  vezes,  recorreu  aos  expedientes  e 
habilidades,  em  que  era  fecundo  o  seu  engenho  e  que  lhe 
mereceram  o  epitheto  de  Raposa  politica. 

Uma  Vez  em  que,  antes  da  ordem  do  dia,  sobre  graVe 
assumpto,  Corrêa  Caldeira  havia  pedido  a  palavra,  Rodrigo 
da  Fonseca,  antecipando-se-lhe,  aproveitou  a  occasião 
para,  sobre  um  pretexto  qualquer,  fazer  o  mais  caloroso 
elogio  do  Cardeal  Saraiva,  D.  Francisco  de  S.  Luiz. 

Tocando-lhe  nos  seus  mais  queridos  affectos,  Corrêa 
Caldeira  commoveu-se,  e.  sob  essa  comoção,  levantou-se 
para  falar,  tendo  de  principiar  por  agradecer  ao  Ministro. 
O  seu  ataque  foi  mais  frouxo  n'esse  dia. 


Foi  ainda  com  o  mesmo  illustre  deputado  opposicio- 
nista  que  se  passou  o  conhecido  episodio  da  quebra  dos 
óculos  (2). 


(1)  Elogio  histórico  de  Rodrigo  da  Fonseca  Magalhães  por  J.  M. 
Latino  Coelho. 

(2)  Biographia  de  Rodrigo  da  Fonseca,  na  Revisto  Contemporâ- 
nea de  Portugal  e  Brasil,  tom.  3.°  por  J.  M.  Andrade  Ferreira. 


39 


Corrêa  Caldeira  atacou  violentamente  os  actos  de  uma 
auctoridade  administrativa,  de  que  o  governo  não  podia, 
ou  não  queria  separar-se. 

Rodrigo  da  Fonseca  defendeu-a,  e,  para  destruir  com- 
pletamente as  arguições  do  seu  adversário,  prometteu  tra- 
zer á  camará  documentos,  que  comprovavam  as  suas  affir- 
mações. 

Na  sessão  seguinte,  Corrêa  Caldeira  foi  mais  vehe- 
mente  ainda  e  convidou  o  ministro  a  destruir  os  factos 
•com  os  documentos,  a  que  tinha  feito  referencia. 

O  ministro,  levantando-se,  passou  a  dar  resposta  ás 
accusações  do  deputado;  e,  como  era  seu  costume  quando 
a  lucta  era  mais  viva,  tirou  os  óculos,  que  collocou  deante 
<Je  si. 

Os  documentos  tinha-os  ali  e  ia  lê-los. 

Falando  com  calor  e  alargando  o  gesto  das  occasiões 
solemnes,  acompanhava  as  suas  palavras  com  alguns 
murros  na  carteira. 

Um  d'elles  apanhou  os  óculos  e  partiu-os.  Quando 
•chegou  a  occasião,  em  que  devia  tirar  os  papeis  da  pasta 
e  lê-los,  pegou  nos  óculos.. .  inutilisados! 

Lastimou-se  do  desastre.  Mostrou-se  contristado.  Di- 
versos deputados  lhe  offereceram  os  seus  óculos,  que 
Rodrigo,  grande  actor,  experimentava! 

Não  lhe  serviam !  Não  via  por  elles. 

Mas,  voltando-se  para  a  opposiçào,  disse  o  que  conti- 
nham os  documentos  e  perguntou  quem  é  que  ali  duvi- 
dava da  sua  palavra. 

Os  seus  parciaes  applaudiram.  Estava  levantada  a  ques- 
tão pessoal  entre  um  deputado  e  um  membro  do  governo, 
que  era  a  verdadeira  alma  d'elle;  e  a  maioria  prompta  a 
•cobrir  o  ministro. 

Corrêa  Caldeira  mantinha-se  no  seu  logar  com  a  gra- 
vidade e  aprumo,  que  lhe  eram  habituaes. 

Era  incapaz  de  promover  ou  tomar  parte  em  scenas 
do  parlamento,  em  que  falam  os  pés! 


40 


Uma  das  honras,  que  mais  ambicionou  na  sua  vida,  foi* 
ser  eleito  deputado  pela  sua  terra  natal. 

Conseguiu  sê-lo  duas  vezes. 

Promulgada  a  lei  de  25  de  novembro  de  1859,  que, 
pela  primeira  vez,  estabeleceu  círculos  uninominaes,  ficou' 
o  concelho  de  Ponte  de  Lima  constituindo,  só  por  si,  um 
circulo  eleitoral.  TornaVa-o  assim  aquella  lei  independente 
dos  outros  concelhos  do  districto,  a  que  até  ali  tinha 
andado  eleitoralmente  ligado  e  que  supplantavam  os  votos- 
dos  seus  eleitores. 

Veiu  logo  á  geral  lembrança  escolher  para  representar 
o  circulo  eleitoral  o  filho  do  concelho,  que  mais  se  havia 
assignalado  nas  luctas  da  representação  nacional. 

Todos  os  politicos  cahiram  de  accôrdo.  Todos  tiveram' 
essa  opinião.  Nem  mesmo  d'ella  discordaram  os  partidá- 
rios, ainda  importantes,  do  velho  regimen. 

Nunca  eleição  alguma  ali  suscitou  maior  enthusiasmo! 
O  prestigioso  candidato  não  teve  concorrente. 

Chegado  o  dia  da  eleição,  de  1551  eleitores,  que  con- 
correram ás  assembléas  primarias,  obteve  1558  votos.  Só 
treze  votos  discordantes! 

Philarmonicas  á  noite  percorreram  as  ruas!  O  fogue- 
torio  e  vivorio  atroaram  os  ares! 

Mas  o  enthusiasmo  não  se  limitou  a  isso.  Quizeram 
mais.  Um  grande  banquete,  por  subscripção,  devia  coroar 
e  solemnisar  a  obra  da  fraternidade  eleitoral. 

Teve  de  realisar-se  ao  ar  livre,  porque  não  havia  casa 
que  pudesse  conter  os  convivas. 

Effectuou-se  na  matta  dos  extinctos  frades,  ainda  então- 
povoada  de  grandes  arvores. 

Reinou  a  alegria.  O  enthusiasmo  electrisava  os  espí- 
ritos! Todos  se  sentiam  por  elle  dominados! 

Chegada  a  altura  própria,  começaram  os  brindes.  Fo- 
ram innumeros! 


41 


Brindou-se  primeiro,  já  se  sabe,  peio  ilJustre  deputado 
eleito:  peio  filiio  mais  distincto  da  formosa  terra!  Pelo 
que  mais  a  honrava  e  ia  eleva-la  e  brilhantemente  repre- 
senta-la. 

Brindou-se  pela  independência  e  authonomia  eleitoral 
do  concelho. 

Brindou-se  pela  harmonia  e  união  das  vontades  para 
os  progressos  locaes. 

Brindou-se  por  cada  um  dos  chefes,  influentes  e  ma- 
gnates, que  mais  tinham  concorrido  para  tão  feliz  resul- 
tado eleitoral! 

E  quando  já  não  havia  a  quem  brindar;  quando  o 
enthusiasmo,  como  fogo  que  já  nào  tem  combustível,  se 
ia  apagando,  um  conviva  bateu  as  palmas  para  chamar  a 
attenção,  e,  de  copo  na  mão,  pediu  mais  um  ultimo  e  der- 
radeiro brinde: 

Brindou  pelo  deputado  perpetuo  pelo  circulo  de  Ponte 
de  Lima! .. . 

Una  você  calorosamente  todos  o  applaudiram,  e  assim 
o  proclamaram!  O  enthusiasmo  redobrou.  Os  copos  mais 
retiniram. 

Assim  terminou  a  festa. 

Corrêa  Caldeira  podia  julgar-se  satisfeito  e  saturado 
com  as  honras  alcançadas  e  conferidas  pelos  seus  patrí- 
cios! 


Reunida  a  camará  dos  deputados,  tomou  assento  n'ella 
em  janeiro  de  1860. 

Volvidos  porém  alguns  mezes,  em  julho  d'esse  anno,  o 
ministério,  que  se  havia  organisado  sob  a  presidência  do 
Duque  da  Terceira,  e  que,  depois  da  morte  d'este  illustre 
general,  passou  a  ser  presidido  por  Joaquim  António  de 
Aguiar,  foi  substituído  por  outro,  que  tinha  por  chefe  o 
Marquez  de  Loulé. 

Corrêa  Caldeira  enfileirou  logo  na  opposição. 


42 


Foi  dissolvida  a  camará  dos  deputados  por  decreto  de 
27  de  março  de  1861. 

As  novas  eleições  fizeram-se  em  28  de  abril  desse 
armo. 

Apresentado  candidato  novamente  pelo  circulo  da  sua 
naturalidade,  os  eleitores,  seus  patrícios,  ainda  se  lhe 
mostraram  firmes  e  fieis! 

De  1526  listas,  que  entraram  nas  urnas  das  assmbleas 
primarias,  1525  continham  o  seu  nome!  Só  uma  lista  dis- 
cordante (Diário,  n.°  125,  de  5  de  junho)! 

Incrivel ! 

Até  parece  que  só  houve  eleição  fingida  e  actas  pin- 
tadas! Mas  não!  Parece  que  ainda  se  não  usava  disso! 
Houve  realmente  eleição,  e  as  philarmonicas  e  o  foguetorio 
ainda,  desta  vêz,  perturbaram  a  tranquilidade  dos  ares! 
Banquete  é  que  já  não  houve ! 

Nenhuma  significação  porém  tinha  essa  falta  de  liba- 
ção pelas  taças  da  amisade! 

Devia  julgar-se  cimentada  em  solidas  bases  uma 
duradoura  solidariedade  eleitoral  entre  os  eleitores  e  o 
eleito! 

Erro !  Illusão! 

Nunca  mais  foi  eleito!  Nunca  mais  pôde  lembrar-se  de 
o  sêr! 

Os  eleitores  retrahiram-se.  Na  eleição  seguinte  de  1864 
ficou  fora  da  camará.  Nunca  isso  lhe  havia  succedido 
desde  que  nella  entrou  pela  primeira  vêz! 

Como  se  explica? 

Ora . . .  como  se  explica ! . . .  Explica-se  reflectindo  que 
a  popularidade  politica  é  uma  dama,  sem  virtudes,  que 
tanto  beija  como  atraiçoa  e  repele  aquelles  a  quem  uma 
vêz  concedeu  os  seus  favores ! 

E'  sempre  aquella  volúvel  dona,  de  quem  se  canta  no 
Ri golét  O.- 
La donna  è  mobile, 
Qual  pluma  ai  viento, 
Muda  d'assiento 
E  di  pensieri ! 


43 


E'  que  durante  a  larga  legislatura  de  1861  a  1864, 
manteve-se  na  opposição  e  elle  não  era  homem  que  se 
-dobrasse  a  pedir  favores  a  adversários. 

E  assim  não  pôde  fazer  abbades,  nem  satisfazer  com 
•despachos  a  emprego-mania !  Nem,  ao  menos,  arranjar 
dinheiro  para  algumas  estradas  com  que  a  sciencia  e  amor 
de  arte  das  engenharias  d'este  paiz  entortassem  e  des- 
ieiassem  as  entradas  da  villa !  Nem  emfim  para  alguns  d'es- 
tes  melhoramentos,  que  nada  melhoraram,  mas  que  cons- 
pícuas pessoas  da  terra  dizem  serem  bellos  e  utillissimos, 
■e  desde  logo  passa  a  ser  acto  de  estupidez  e  —  o  que  é 
peor  —  de  falta  de  patriotismo  dizer  que  o  não  são ! 

Podiam,  para  attenuante,  levar-lhe  em  conta  que  o 
dinheiro  não  era  então  preciso  para  os  rasgos  do  progresso 
material  da  villa,  pois  que,  por  essa  épocha,  —pouco  mais 
ou  menos  —  foram  derruídas  as  duas  torres,  que  comple- 
tavam a  harmonia  architectonica  da  monumental  e  famosa 
ponte  sobre  o  Lima,  que  dá  o  nome  e  o  brazão  á  villa. 

Bastaram  para  isso  os  recursos  do  município  e  a  ini- 
ciativa de  dois  vereadores,  pessoas  respeitabillissimas  e 
homens  ricos,  mas  castrados  do  sentimento  do  bello  e  do 
amor  das  tradições. 

Assim  estava  escripto  no  livro  dos  destinos! 

Assim  o  quizeram  os  fados,  que  ainda  hão-de  comple- 
tar aquela  obra  vandalica !  Só  admira  que  ainda  não  tenham 
conseguido  levá-la  a  effeito!  (1) 


(1)  Aqui  vou  fazer  uma  denuncia  e  que  me  perdoe  o  denunciado 
pela  intenção  com  que  a  faço. 

O  meu  illustre  amigo,  Dr.  António  Feijó,  poeta  consagrado,  honra 
da  iitteratura  nacional  e  gloria  authentica  da  terra  em  que  nasceu, 
disse-me  um  dia,  com  indignação  e  tristeza,  que,  contra  os  que  tal 
effectuassem,  elle  havia  de  escrever  um  artigo  tão  violento  que  se- 
riam obrigados  a  chamal-o  aos  tribunaes  e  a  mettêl-o  na  cadeia,  pois 


44 


Mas  foi  só  o  que  fica  dito  a  razão  do  desagrado  ? 

Diga-se  em  abono  da  verdade,  —não! 

Corrêa  Caldeira  não  tinha  feitio  para  a  cultura  da  vinha 
eleitoral !  Não  respondia  a  todos  que  lhe  escreviam !  Não 
se  prestava  a  quantos  pedidos  lhe  faziam !  Era  um  austero ! 


Ponte  sobre  o  rio  Lima 

Antes  de  fazer  qualquer  pedido,  queria" sempre  examinar 
se  era  justo.  É  este  um  dos  traços  do  seu  caracter. 

Mais : 

A  sua  palavra  havia  emudecido,  e  não  lh'o  levaram  a 
bem  os  seus  eleitores. 

Queriam  que  falasse  para,  ao  menos,  se  falar  na  terra, 
diziam ! 

Mas  elle  não  era  d'aquelles  que  falasse  só  para  falar! 


que  só  assim  se  julgaria  quite,  em  tal  caso,  da  sua  divida  para  com  a 
querida  terra  natalícia !  Por  tal  forma  quiz  exprimir  a  sua  repro- 
vação pelo  apregoado  projecto  do  alargamento  da  ponte  com  cachor- 
ros de  pedra  e  varandas  de  ferro ! 

Non  in  solo  pane  vioit  homo,  direi  eu  ! 


45 

Via  que  o  meio  politico  não  lhe  permittia  a  realização  das 
suas  ideas,  e  que  o  luctar  por  ellas  era  deslocado.  A  leal- 
dade politica  levara-o  para  as  bancadas  da  opposição,  mas 
sentia  que  qualquer  outro  governo  não  seria  melhor  de 
que  o  ministério  Loulé-Avila,  e  governaria  e  administraria 
pela  mesma  forma  que  esse. 

Assim  falar  era  inútil.  Nenhuma  consideração  humana 
o  levaria  a  desempenhar  o  papel  de  actor  ou  de  realejo 
parlamentar! 

D'ahi  a  perda  da  popularidade  e  a  incompatibilisação 
com  o  circulo. 


V 


Occupou  muito  o  seu  espirito  com  a  publicação  das 
•obras,  algumas  inéditas,  do  Cardeal  Saraiva,  que  levou 
^té  o  decimo  volume. 

Em  1860  casou  com  uma  distincta  e  virtuosa  senhora, 
felizmente  ainda  viva,  a  Senhora  D.  Maria  José  Deslandes 
Corrêa  Caldeira.  Desse  casamento  existem  duas  filhas  e 
um  filho,  o  sr.  Dr.  Venâncio  Jacintho  Deslandes  Corrêa 
Caldeira,  secretario  geral  do  districto  de  Beja- 

De  uns  seus  românticos  amores  da  mocidada  havia 
nascido,  em  Coimbra,  a  Senhora  D.  Amélia  Janny,  recen- 
temente fallecida,  a  qual,  herdando  de  seu  tio,  o  malo- 
grado poeta  das  Flores  da  Bíblia,  o  dom  privilegiado  da 
poesia,  foi  continuadora  dos  talentos  litterarios  de  sua 
família  e  legitima  e  autentica  gloria  d'ella. 

Homem  de  inexcedivel  lealdade  nas  suas  relações  pes- 
soaes,  modelo  no  lar  domestico,  a  vida  publica  doeste 
nllustre  limiense  foi  espelho  da  sua  vida  particular. 

Falleceu  repentinamente  no  dia  2  de  novembro  de  1876. 


46 


Pinheiro  Chagas,  no  Correio  da  Manhã,  do  dia  se- 
guinte, escreveu  um  sentido  artigo,  em  que  honra  a  me- 
moria do  homem  publico,  que  diz  ter  sido  «distinctissimo, 
«leal,  honrado,  de  uma  tempera  austera  e  nobre,  respei- 
«tado  até  pelos  adversários  pela  inquebrantável  firmeza 
«do  seu  caracter  e  das  suas  convicções.» 

Nesse  artigo  encontra-se  também  o  seguinte  periodo: 

«Seu  irmão  mais  novo,  Luiz  Corrêa  Caldeira,  poeta; 
^<de  um  raro  talento,  morrera  de  uma  meningite,  na  flor 
«da  vida,  e  essa  morte  causou  tão  viva  impressão  no- 
«animo  affectuoso  de  seu  irmão,  que,  ainda  ha  pouco- 
«tempo,  lembrando-a,  lhe  vimos  os  olhos  rasos  de  agua  e: 
ío  aspecto  profundamente  comovido.» 

Haviam  decorrido  iá  dezasete  annos! 


Foi  um  cidadão  illustre,  um  politico  honesto,  um  ho- 
mem de  distincto  mérito  e  um  homemi  de  bem,! 


NOTA 


Por  obsequioso  e  benevolente  favor  do  distinto  professor  e 
actual  Reitor  da  Universidade  de  Coimbra,  sr.  dr.  José  Alberto 
dos  Reis,  aqui  se  pode  publicar  uma  copia  da  certidão  do  assento 
de  baptismo,  que  foi  juncta  ao  requerimento  de  António  Corrêa 
Caldeira,  para  a  sua  matricula  no  primeiro  anno  da  faculdade  de  di- 
reito. 

CERTIDÃO 

João  Bento  de  Medeiros,  Parocho  da  Collegiada  Matriz  de 
Santa  Maria  dos  Anjos  da  Villa  de  Ponte  de  Lima,  e  Arcipreste 
d'este  Julgado,  etc. 

Certifico  que  revendo  hum  dos  Livros  dos  Baptisados  d'esta 
Villa,  nelle  a  pags.  157  achei  o  assento  do  theor  seguinte:  António, 
filho  legitimo  de  José  Marques  Caldeira  e  D.  Anna  Efigenia  Rita 
Corrêa,  da  rua  do  Carrerido  d'esta  Villa  de  Ponte  de  Lima;  neto 
paterno  de  José  Marques  Caldeira  e  de  sua  mulher  D.  Joaquina 
Thereza  de  Macedo,  da  Cidade  de  Coimbra;  materno  de  José  Ro- 
drigues Lima,  e  sua  mulher  D.  Marianna  Thereza  de  Jesus,  desta 
Villa.  Nasceu  aos  19  dias  do  mez  de  Outubro  de  1815;  e  aos  26  dias 
do  dito  mez  foi  solemnemente  Baptisado  na  Pia  Baptismal  da  Colle- 
giada Matriz  d'esta  Villa  por  mim,  e  lhe  administrei  os  Santos  Óleos: 
sendo  padrinhos  António  Lobo  Teixeira  de  Barros  e  Barbosa,  te- 
nente-Coronel  do  Batalhão  de  Caçadores  e  D.  Henriqueta  Malheiro, 
desta  Villa  ambos.  Em  fé  do  que  fiz  este  Assento.  O  Coadjutor  e 
Beneficiado  Manuel  José  d'Araujo.  E  não  contêm  mais  o  dito  as- 
sento, que  aqui  copiei  fielmente,  a  cujo  Livro  me  reporto.  Passo  na 
verdade,  por  me  ser  pedida.  Ponte  de  Lima,  2  de  Novembro  de  1836. 
(a)  O  Parocho  Arcipreste,  João  Bento  de  Medeiros. 


RECONHECIMENTO 

Reconheço  a  letra  e  assignatura  supra  por  verdadeira  de  que 
dou  fé.  Ponte  de  Lima,  2  de  Novembro  de  1836.  Em  testemunho  de 
Verdade  (logar  do  Signal  Publico).  O  Tabellião,  Francisco  José 
Moutinho. 


48 


Diz  o  assento  de  baptismo  que  os  pães  moravam  na  Rua  do  Carre- 
rido.  Tal  nome  era  o  da  torta  rua,  que  hoje  tem  o  nome  de  Rua  do 
Cardeal  Saraiva,  porque  n'ella  moraram,  durante  muitos  annos,  na 
casa  bem  conhecida  e  apontada,  as  irmãs  do  ilUistre  sábio. 

Creio  que  por  isso  se  pode  concluir,  com  a  maior  probabilidade, 
<]ue  na  mesma  casa  nasceu  António  Corrêa  Caldeira,  isto  é,  na  casa 
de  suas  tias,  D.  Joanna  e  D.  Marcellina. 

Na  mesma  casa,  por  vezes,  habitou  D.  Francisco  de  S.  Luiz, 
durante  o  tempo,  (que  por  certo  seria  curto),  em  que  se  afastava 
dos  conventos  da  sua  ordem,  onde  o  prendiam  não  só  os  votos  monás- 
ticos, mas  a  predilecção  dos  estudos,  a  que  constantemente  trazia 
preso  o  seu  espirito.  Mais  tempo  por  ali  se  demoraria  seu  irmão. 
Frei  Luiz  Saraiva,  ou  Frei  Luiz  dos  Seraphins,  que  a  pessoa  querida 
da  minha  familia  ouvi  dizer  que,  sendo  também  muito  inteligente,  era 
«m  espirito  mais  alegre  e  mais  mundano  do  que  o  irmão. 


Não  resisto  a  dizer  aqui  que,  quando  António  Caldeira  se  bapti- 
zou a  frontaria  do  famoso  templo,  cuja  gravura  publicámos,  era  bem 
mais  bella  e  harmónica! 

Mas,  passados  bastantes  annos,  a  torre  ameaçou  ruína.  Teve  de 
reedificar-se,  e  o  amor  das  commodidades  ou  a  preoccupação  d'ellas, 
que  lá  na  terra  supplanta  sempre  o  culto  do  bom  gosto,  resolveu  que 
•a  torre  se  elevasse  mais  para  .  .  .  melhor  se  ouvirem  as  horas! 

Assim  ficou  o  que  se  vê!  Escapou  esta  deturpação  a  Ramalho 
Ortigão,  que  nas  Farpas  escreveu  o  seguinte: 


«Em  Ponte  do  Lima  a  ponte  que  deu  o  nome  á  villa  é  um  dos 
mais  antigos  monumentos  do  seu  género  em  Portugal.  Assenta  em 
vinte  e  quatro  arcos,  dos  quaes  dezeseis  em  ogiva. 

«Foi  reconstruída  primeiramente  por  D.  Pedro  \,  talvez  sobre  a 
ponte  romana  da  épocha,  da  via  militar  de  Braga  a  Astorga,  e  depois 
por  D.  Manuel.  Era  entestada  por  duas  bellas  torres,  uma  do  lado 
-de  Arcozello,  outra  do  lado  da  villa,  a  que  dava  entrada  por  uma 


49 


porta  ogival.  As  guardas  da  ponte  assim  como  as  duas  torres  eram 
guarnecidas  d'ameias. 

«Com  essa  forma  se  conservou  este  curioso  monumento  até  1S34. 
Depois,  com  o  regimen  liberal,  Veio  uma  vereação  que  mandou  arra- 
sar as  duas  torres;  e  outra  vereação,  não  querendo  ficar  atraz  da 
primeira,  mandou  serrar  as  ameias  que  coroavam  as  guardas!  (1)  O 
•cinto  de  muralhas,  com  as  suas  cinco  portas,  as  suas  torres  e  as 
suas  barbacans,  com  que  D.  Pedro  I  fortificou  a  villa  reedificada  no 
século  XIV,  não  cahiu  também  inteiramente  de  per  si,  foram  ainda  as 
vereações  municipaes  que  successivamente  se  encarregaram  de  o 
fazer  desapparecer. 

«O  poder  central  em  sua  alta  e  suprema  indiferença  pelos  mais 
estúpidos  attentados  de  que  são  objecto  os  monumentos  mais  vene- 
ráveis da  arte  e  da  historia  nacional,  approvou  uma  por  uma  todas 
as  marradas  de  preto  capoeira  com  que  á  municipalidade  de  Ponte  de 
Lima  approuve  derribar  e  destruir  os  mais  bellos  vestígios  archite- 
ctonicos  da  gloriosa  historia  da  antiga  villa  e  o  próprio  sentido  herál- 
dico das  suas  armas,  nas  quaes  em  escudo  de  prata  figura  uma  ponte 
•entre  duas  torres;>. 


Occupa-se  depois  de  outras  mutilações. 


(1)  Foi  o  inverso:  primeiro  as  ameias  e  depois  as  torres. 


João  de  Deus 


Historia  de  duas  satyras  suas  (1) 


Atravessando  a  grande  nave  sombria  do  famoso  templo 
manuelino,  por  vezes  tenho  ido,  em  piedosa  romagem,  até 
junto  da  grade  da  ca- 
pella  dos  Jeronymos, 
onde  está  collocado  o 
ataúde,  que  contém 
os  restos  mortaes  de 
João  de  Deus. 

Parece-me  sempre 
que  aquelle  féretro  e 
o  de  Garrett,  cober- 
tos de  panos  negros 
com  algum  pó  e  flores 
sêccas,  estão  ali  pro- 
visoriamente, desde  a 
Véspera,  á  espera  — 
como  os  de  quaesquer 
outros  mortaes  —  do 
canto-chão  de  uns  pa- 
dres e  dos  braços  de 
uns  lagoias,  que  vão 
transportá-los  para 
sepulturasdefinitivas! 

Sepulturas,  que  eu 
quizera  que  fossem  em  estrophes  de  alvejante  jaspe,  cober- 
tas pela  cúpula  azul  dos  céus,  no  meio  de  muitas  flores. 


João  de  Deur,  1860 


(1)  Excerptos  de  um  livro,  que  não  chegou  a  ser  publicado. 


52 


que  atrahissem  o  cântico  das  aves,  musicas  da  natureza, 
sons  que  seriam  menos  harmoniosos,  menos  sublimes  do 
que  os  seus  versos! 

Tendo  de  falar  de  João  de  Deus,  faço  invocação  á 
sua  sombra  venerada  e  querida,  para  que  só  escreva  o 
que  seja  digno  d'elle! 

Em  uma  das  vezes,  que  me  encontrei  em  face  do  seu 
ataúde,  me  acudiram  á  memoria  os  versos  sublimes  de 
Roque  Bareia,  consagrados  a  Camões,  que  bem  posso 
applicar  ao  lyrico  genial,  que  é  também  o  auctor  da  Carti- 
lha Maternal  e  dizendo  com  o  poeta  hespanhol: 


Tremulo  llego  a  ti,  vate  sagrado ! 
Ayúdame  a  decir  lo  que  tu  fias  sido, 
Tu  que  á  la  tierra  lusitana  has  dado 
Lo  que  nunca  le  ha  dado  hombre  nacido  ! 

Párate,  sombra :  ci  mi  razoa  oscura 
Suspender  deja  un  formidable  velo, 
Y  déja  me  alentar  en  esta  altura 
Donde  parece  que  nos  mira  el  cielo. 

Sepulcro  colosal,  mundo  ignorado, 
Dime  como  decir  lo  que  tu  has  sido 
Tii  que  á  la  tierra  lusitana  has  dado 
Lo  que  nunca  le  ha  dado  hombre  nacido. 


55 


A  Deputação 


A  deputação,  satyra  infelizmente  perdida,  e  de  que 
apenas  andam  publicados  alguns  poucos  versos,  teve  por 
origem  a  denegação  do  indulto  ao  estudante  José  Car- 
doso Vieira  de  Castro,  quando,  pela  segunda  vez,  foi  ris- 
cado da  Universidade.  r 

Elle  havia  sido  expulso,  por  dois  annos,  em  1856,  por 
causa  da  falada  investida  da  Saía  dos  Capellos.  Voltou 
á  Universidade  no  anno  lectivo  de  1859-1860,  matriculan- 
do-se  no  5.°  anno  juridico. 

Voltava  com  o  prestigio,  que  lhe  daVa  a  sua  nobre 
independência,  o  seu  ostracismo  académico  e  também  o 
seu  indisputável  talento  e  grandes  dotes  de  orador. 

Basilio  Alberto  de  Souza  Pinto  que,  como  professor, 
tinha  adquirido  créditos  de  abalisado  criminalista,  havia, 
mezes  antes,  sido  nomeado  reitor. 

N'essa  qualidade,  encarnava  todas  as  velharias  dos 
rigorismos  universitários  com  os  estudantes. 

Por  um  edital,  afixado  logo  no  começo  d'aquelle  anno 
lectivo,  determinou  o  rigor  dos  trajes,  isto  é,  a  batina 
completamente  abotoada,  o  sapato  e  meia,  o  cabeção  e 
volta. 

Nada  de  gravata^  de  cores;  nada  de  botas  ou  calças 
cabidas  sobre  ellas,  o  que  tudo,  durante  o  doce  regimen 
do  vice-reitor,  José  Ernesto  de  Carvalho  e  Rego,  havia 
sido  tolerado  e  permittido. 


54 


Prohibiçào   completa!    Mudança  rápida  de  costumes! 

Mas  Vieira  de  Castro,  com  a  ousadia  que  lhe  era  pró- 
pria, apresentou-se  um  dia  na  Universidade,  com  a  calça 
cabida  sobre  botas  de  elásticos  com  gáspeas  de  Verniz! . . . 

Escândalo  de  lesa  disciplina! 

O  guarda-mór,  Basilio  José  Ferreira,  em  termos  mais 
ou  menos  inconvenientes,  admoestou  Vieira  de  Castro. 
Este  replicou-lhe  logo  com  a  palavra  que  é  attribuida  a 
Cambrone,  e  cuja  verdade  histórica  muito  tem  sido  dis- 
cutida. 

O  guarda-mór  intimou-o  a  ir  á  presença  do  Reitor. 

Vieira  de  Castro  recusou-se. 

D'ahi  um  conflicto,  cujas  proporções  pode  calcular 
quem  conheceu  o  génio  violentíssimo  do  ardente  man- 
cebo, que  depois  veio  a  ser  um  grande  infeliz! 

Formado  processo  académico,  foi,  como  reincidente, 
expulso  pela  segunda  Vez,  e  riscado  perpetuamente!  Pena 
de  morte  académica,  dizíamos  nós!. . . 

Tal  condemnação,  nas  circumstancias  em  que  foi  pro- 
ferida, e  pelos  precedentes  do  estudante  expulso,  desper- 
tou as  mais  acerbas  criticas  dentro  e  fora  da  Academia. 

O  estudante  do  5.°  anno  jurídico,  Bernardo  de  Albu- 
querque e  Amaral  (o  respeitabilissimo  lente  jubilado,  ainda 
hoje  felizmente  vivo)  escreveu,  no  jornal  académico  — 
Estreia  Litteraria  —  de  que  era  redactor,  um  vehemente 
artigo,  criticando  o  accordão  do  Conselho  dos  Decanos, 
demonstrando  ao  antigo  professor  de  direito  penal,  presi- 
sidente  d'elles,  os  erros  jurídicos  da  decisão;  e  concluindo 
que,  não  se  verificando  as  condições  da  reincidência,  a 
pena  applicada  era  manifestamente  illegal. 

Não  foram  precisas  reuniões. 

Amigos  de  Vieira  de  Castro  formularam  logo  um  elo- 
quente appello  ao  poder  moderador,  pedindo  o  indulto  e 
readmissão  do  talentoso  estudante,  cuja  esperançosa  car- 
reira assim  era,  com  tanta  dureza,  cortada. 

Toda  a  Academia  foi  espontaneamente  assignar  a  peti- 
ção. 

Também  a  assignaram  os  estudantinhos  do  Lyceu;  e 


55 


foi  esse  o  único  acto,  durante  toda  a  nossa  vida  acadé- 
mica, em  que  os  caloiros  do  Paieo,  como  então  se  dizia, 
foram  chamados  a  compartilhar  em  um  acto  dos  estudan- 
tes da  Universidade. 

Mas  a  representação  ao  Rei,  que  era  D.  Pedro  V, 
não  foi  só  assignada  em  Coimbra!  Resolveram  perfilhá-la 
e  assigná-la  muitos  homens  de  letras  e  jornalistas  de  Lis- 
boa. Tudo  quanto  havia  de  mais  notável,  n'este  paiz,  a 
assignou! 

N'ella  pozeram  os  seus  nomes  illustres:  Alexandre 
Herculano,  António  Feliciano  de  Castilho,  Luiz  Augusto 
Rebello  da  Silva,  José  da  Silva  Mendes  Leal,  Raymundo 
.António  Bulhão  Pato,  António  da  Silva  Tullio,  António 
Rodrigues  Sampaio,  LeVy  Maria  Jordão  e  muitos  outros. 

Mas  o  indulto  foi  negado!  Tantas  esperanças  foram 
malogradas! 

A  representação  da  Academia  e  dos  homens  de  letras 
e  jornalistas  foi  indeferida! 

O  desgosto  foi  grande  na  Academia-  Os  resentimentos 
profundos  e  duradoiros! 

Manifestaram-se  ainda  no  anno  seguinte,  quando  D.  Pe- 
dro Ve  seus  irmãos,  os  infantes  D.  Luiz  e  D.  João,  foram 
a  Coimbra  de  passagem  para  o  Porto.  Foi  a  derradeira 
vez,  que  ali  foi. 

Ao  approximar-se  a  visita  do  Rei,  alguns  rapazes  viram 
]i'ella  a  seductora  perspectiva  d'alguns  feriados. 

Hão-de  ser  sempre  assim! . . . 

Mas  para  obter  os  feriados  era  preciso  ir  cumprimen- 
tar o  Rei.  Prompto!  É  convocada  uma  assembléa  geral, 
no  saudoso  salão  do  Theatro  Académico,  para  nomear  a 
commissão  dos  cumprimentos. 

Reunida  a  assembléa  geral,  logo  Vários  oradores  pedi- 
ram a  palavra. 

Nenhum  contestou  que  devesse  ir  cumprimentar-se  o 
Rei.  Nenhum  soltou  para  com  elle  qualquer  phrase  gros- 
seira ou  offensiva.  Somente  os  oradores  falavam  em  todos 
os  assumptos,  menos  n'aquelle  para  que  havia  sido  convo- 
cada a  reunião. 


56 


Um  falava  no  Velho  e  no  Novo  Testamento;  outro» 
fazia  o  elogio  das  tricanas  de  Coimbra;  outro  nos  grandes 
homens  da  Grécia  e  Roma;  outro  nos  preços  dos  géneros 
do  mercado,  acompanhados  sempre  os  oradores  por  um 
coro  de  gargalhadas. 

Se  algum  tentava  falar  no  assumpto  para  que  fora 
convocada  a  assembléa,  era  logo  coberto  de  apoiadissi- 
mos,  cortado  de  interrupções,  impedido  de  falar. 

Um  dos  oradores,  que  mais  se  distinguiu,  interrom- 
pendo e  promovendo  a  troça,  foi  Fausto  de  Queiroz 
Guedes,  que  depois  veio  a  ser  o  benemérito  e  generosís- 
simo Visconde  de  Valmôr. 

Reuniu-se  segunda  assembléa  no  dia  seguinte.  Repeti- 
ram-se  exactamente  as  mesmas  scenas  da  véspera.  Grande 
bulha,  grande  risota ! 

Passaram-se  alguns  dias.  A  chegada  do  Rei  aproxima- 
va-se  e  conVocou-se  então  terceira  assembléa,  não  já  para 
o  salão,  mas  para  o  theatro  da  Academia. 

Apresentou-se  no  palco  e  foi  indicado  para  presidi-la  o 
estudante  do  6."  anno,  Bernardo  de  Albuquerque  e  Ama- 
ral, o  mesmo  que  tão  distincta  attitude  tinha  tomado  quando 
foi  riscado  Vieira  de  Castro. 

Esta  circumstancia,  a  geral  consideração  e  sympathia 
de  que  gosava,  pelo  seu  talento  e  seriedade  de  caracter, 
e  também  algumas  nobres  e  felizes  palavras,  que  proferiu, 
ao  assumir  a  presidência,  aplacaram  os  ânimos  e  impuze- 
ram  socego. 

A  assembléa  correu  plácida. 

Decidiu-se  nomear  a  commissão,  mas  não  só  para  fazer 
cumprimentos.  DeViamos  usar  do  direito  de  petição,  que 
era  uma  das  garantias  que  nos  estava  consignada  no  que 
então  se  chamava  o  sagrado  paládio  das  nossas  liberdades. 

Não  era  indigno !  Era  o  uso  dum  direito !  Por  isso  a 
commissão  devia  pedir : 

1.°  —  A  abolição  da  capa  e  batina,  que  era  traje  jesuí- 
tico. 

2."—  A  abolição  do  foro  académico  e  concessão  das 
garantias  do  foro  commum. 


57 


Os  rapazes  tiveram  sempre  a  mania  de  querer  ser  jul- 
gados pelas  infracções  de  policia  académica,  que  consti- 
tuem contravenções,  pela  mesma  forma,  e  no  mesmo  tri- 
bunal, em  que  se  julgam  os  vadios,  os  gatunos  e  os  ladrões 
de  profissão ! 

Mas  o  caso  é  que  aquellas  deliberações  foram  tomadas. 

João  de  Deus,  que  assistia  á  reunião  em  um  camarote 
de  1.''*  ordem  (ainda  deve  haver  quem  se  lembre),  por  uma 
das  distracções,  que  lhe  eram  tão  habituaes,  pediu  a  pala- 
vra, quando  já  tudo  estava  votado ! 

Ovação  a  João  de  Deus  ! 

Viva  João  de  Deus  !  Viva  o  nosso  João  ! 

Acciamação  geral  ao  grande  poeta ! 

Mas  vamo-nos  embora,  clamavam  também !  Tudo  está 
decidido !  Vá  a  commissão  e  venham  os  feriados,  que  é  o 
que  toda  aquella  bulha  queria  dizer ! 

João  de  Deus,  com  a  notável  veia  satyrica  que  pos- 
suía e  espontaneidade  genial,  disse,  nessa  mesma  noite, 
em  verso,  o  que  queria  dizer  como  orador.  Escreveu  a 
sat>Ya  A  Deputação,  jóia  litteraria  infelizmente  perdida. 

Delia  se  conservam  apenas  alguns  versos  publicados 
pelo  dr.  Rodrigo  Velloso,  reproduzidos  depois  na  penúl- 
tima edição  do  Campo  de  Flores,  os  quaes  quem  escreve 
estas  linhas  conservou  de  memoria. 

Começava  assim : 


Ouvi,  infância  epidemica, 
As  tristes  vozes  do  bardo, 
Que  resolve  em  papel  pardo 
Gritar  contra  a  pepineira  ! 

Teve  logar  a  terceira 

Das  assembléas  geraes, 

E  ouça  o  Mondego  os  meus  ais, 

Porque,  em  verdade,  oh  vergonha 

Pois  em  quanto  na  Gasconha 
Se  estão  nivelando  os  thronos. 
Quer  esta  sucia  de  monos 
Preparar  real  bexiga  ! 


58 

E,  em  verdade,  que  o  diga 
O  Albuquerque,  que  é  fino,  (1) 
P'ra  pedir  ao  deus-menino 
A  reforma  da  cadeia  ! 

Mas,  oh  mancebos !  que  ideia 
Não  farão  de  nós  lá  fora, 
Ao  saber  que  isso  já  agora 
Não  é  ao  rei  que  pertence. 

Para  o  que  bastará  só 
Da  Carta  do  pae-avô. 
Artigo  13  que  diz  : 
«Julgar  pertence  ao  juiz 
«E  legislar  á  nação  !» 


CondemnaVa  depois  que  se  fizessem  pedidos  ao  Rei. 
quando  elle  nos  tinlia  indeferido  um  pedido  santo  e  justo ! 
Dizia : 

«E  não  Íamos  nós  sós  ! 

<  Pois  em  nossa  companhia 

<  Ia  quanto  era  poesia 

«E  quanto  era  prosa  também  ! 

«Ia  o  pae  d'aquelia  pequena 
«Que  metteu  frade  o  Eurico  (2) 
«E  o  que  na  Ilha  do  Pico  (3) 
«Ensinava  agricultura ! 

«Ia,  em  summa,  quanta  figura 
«Quiz  entrar  nessa  comedia  ! 
«Quando  nós,  na  face  nédia 
«D'este  pachá  de  Janina, 
«Quizemos  Ver  se  a  botina 
«Era  lesa-magestade ! 


(1)  Referencia  a  Bernardo  de  Albuquerque,  presidente  da  3.' 
assembléa  geral. 

(2)  Refere-se  a  Alexandre  Herculano,  que  creou  a  Hermengarda 
do  romance  Eurico. 

(3)  Refere-se  a  António  Feliciano  de  Castilho,  que  escreveu  nos 
Açores  A  Felicidade  pela  Agricultura. 


59 

«E  ninguém  nos  disse  : 
«Volte  o  borrego  ao  rebanho, 
«E  esse  zagal  d'arreganho, 
«Que  ande,  se  quer,  de  sandálias. 

<íO  cothurno  é  das  Italias  ! 
«E  com  Veste  roçagante, 
<'É  além  de  mais  galarite, 
«Mais  decente  que  o  chinello  ! 

'Tão  decente  que  o  marmelo 
"Do  Camões  já  lá  dizia  : 
<'É  assumpto,  musa  fria. 
«De  cothurno  e  não  de  sócco. 

«Mostrando  n'isto  em  quão  pouco 
«Tinha  o  clássico  chinello 
«Destes  pegas  de  capêllo, 
Cabeças  de  tapadoura. 


Conheci  esta  satyra  — .4  Deputação  —pov  m"a  haver 
mostrado  Anthero  de  Quental.  Copiei-a  e  restitui-a. 

Tendo  divulgado  muitas  das  poesias  de  João  de  Deus, 
algumas  inéditas,  conservei  essa  comigo,  durante  largos 
annos,  por  uma  espécie  de  avareza  litteraria. 

Tal  era  o  apreço  em  que  a  tinha !  O  arrependimento, 
que  disso  tenho  tido,  tem-me  sido  severo  castigo. 

Desappareceu-me  em  alguma  das  mudanças  de  terra, 
a  que  fui  obrigado  pelas  exigências  da  vida  official,  ou  no 
quasi  naufrágio,  que  soffreram  os  meus  papeis  e  livros. 
Transportados  em  um  navio  de  vela,  tal  foi  o  temporal 
que  este  soffreu  que  chegou  a  ser  abandonado  pela  tripu- 
lação, e  foi  a  própria  tempestade  que  o  metteu  dentro  do 
porto !  Mas  toda  a  carga  ficou  avariada ! 

Também  me  desappareceu  a  Lata,  tal  como  primitiva- 
mente havia  sido  escripta.  Foi  também  Anthero  que  m'a 


60 


emprestou;  e  continha  mais  estrophes  de  que  as  que  an- 
dam publicadas. 

Julguei  que  podia  readquirir  a  Deputação,  visto  que 
apenas  tinha  possuido  uma  copia.  Foi-me  impossível. 

Recorrendo  ao  meu  amigo  muito  querido,  João  de 
Sousa  Vilhena  —o  integro  e  inquebrantável  magistrado  que 
falleceu  juiz  de  uma  vara  eivei  de  Lisboa — ,  companheiro 
dedicadíssimo  e  admirador  apaixonado  de  João  de  Deus; 
recorrendo  a  José  Sampaio  e  a  Frederico  Philemon,  com- 
panheiros de  Anthero  e  que,  como  eu,  haviam  tido  a  De- 
putação em  suas  mãos,  já  não  se  lembravam ! 

Desesperando  de  a  encontrar,  dei  a  outro  dedicado  e 
bondosíssimo  companheiro  de  mocidade,  Rodrigo  Velloso, 
cujo  amor  pelas  boas  lettras  nunca  se  apagou  até  os  seus 
últimos  momentos,  os  Versos  que  sabia  de  cór. 

Publicou-os  elle  na  sua  interessante  Bibliotkeca  da 
Aurora  do  Cavado;  e  d'ahi  passaram  para  a  penúltima 
edição  do  Campo  de  Flores,  mas  sem  a  historia  que  é 
indispensável  para  bem  comprehender  a  engraçadissima 
composição. 

Cabe-me  fazê-la  agora  a  mim,  o  ultimo  e  mais  obscuro 
dos  amigos  e  admiradores  de  João  de  Deus. 


II 


Os  Pires  de  Marmelada 


Fui  copista  e  Vulgarisador  dos  Pires  de  Marmelada. 

Ainda  a  famosa  e  formosa  satyra  não  tinha  acabado 

de  nascer,  ainda  não  estava  toda  escripta,  e  já  eu  conhe- 


61 


cia  a  parte  dada  á  luz  e  a  copiava  e  decorava !  Com  mais 
facilidade  — acreditem  —  do  que  todas  as  cousas  de  álge- 
bra e  geometria,  com  que  andava  atrapalhado  para  fazer 
o  meu  ultimo  exame  de  caloiro  e  poder  entrar  na  Uni- 
versidade. 

Corre  agora  na  edição  do  Campo  de  Flores,  coorde- 
nada pelo  Sr.  Theophilo  Braga,  com  variantes,  que  des- 
toam dos  primitivos  Versos,  taes  como  ainda  os  conservo 
na  minha  memoria. 

Parecem-me  menos  felizes  essas  variantes,  como  tan- 
tas outras  dos  versos  do  divino  poeta,  atrevo-me  a  dizer. 


João  de  Deus  era  um  pródigo  das  suas  preciosíssimas 
jóias  poéticas !  Anthero  não  era  menos  pródigo ! 

Um  e  outro,  muitas  vezes,  logo  em  seguida  á  sua  fei- 
tura, ou  passado  pouco  tempo,  rasgavam  ou  queimavam 
formosas  producções  do  seu  engenho,  porque  não  satis- 
faziam ao  seu  ideal  de  belleza. 

Outras  vezes  as  abandonavam  ou  perdiam!  Foram  sal- 
vas muitas,  porque  quando  elles  as  rasgavam,  já  estavam 
copiadas. 

João  de  Deus  nem  mesmo  era  muitas  vezes  quem 
escrevia  oè  seus  versos;  escreviam-nos  os  amigos  a  quem 
os  recitava  no  calor  e  borbulhar  de  inspiração. 

Foi  assim,  por  esta  forma,  que  foram  escriptos  por  Gui- 
marães Fonseca  —  um  mimoso  talento  litterario,  já  então 
revelado  —  ,  em  julho  de  1860,  os  Pifes  de  Marmelada, 
em  uma  casa  da  Rua  dos  Militares,  quasi  em  frente  dos 
Lázaros,  que,  creio,  é  a  terceira,  a  contar  da  que  faz 
esquina  para  a  Rua  do  Guedes,  com  entrada  por  esta 
rua,  onde  eu  morava.  Estreitas  como  são  as  intermediarias, 
podia  falar-se  de  janella  para  janella ! 

Tinha  aquella  então  o  n."  42.  E  digo  que  tinha  este 
numero,  porque  é  com  elle  que  vem  designada,  na  pauta 


62 


ou  relação  dos  estudantes  d'esse  anno,  a  morada  de  Antó- 
nio Joaquim  da  Fonseca  Pinto,  meu  condiscipulo  no  Lyceu, 
rapaz  muito  ligado  a  todos  os  amigos  de  João  de  Deus^ 
especialmente  a  Guimarães  Fonseca,  que  n'essa  epocha 
do  anno,  também  ali  morava. 

João  de  Deus  não  tinha  residido  n'essa  casa,  mas 
para  ella  foi  viver  nas  ultimas  semanas  d'esse  anno  lectivo. 

Com  amigos  e  admiradores,  que  disputavam  a  sua 
companhia,  tinha  Varias  casas.  Onde  mais  residiu  n'esse 
anno,  foi  na  Rua  da  Trindade,  n.°  30,  com  João  de  Sousa 
Vilhena. 

Também  morou  na  Rua  de  S.  Jeronymo,  n.°  6,  com 
outros  rapazes,  sendo  um  d'estes  o  estudante  de  theolo- 
gia,  cujo  R,  que  levou  no  acto  do  1.°  anno,  motivou  a 
satyra. 

Tendo  partido  para  férias  todos  os  seus  companheiros 
da  Rua  de  S.  Jeronymo,  foi  João  de  Deus  para  a  casa  da 
Rua  dos  Militares,  onde  chegou  sob  a  impressão  da  injus- 
tiça feita  ao  seu  amigo. 


A  satyra,  como  se  sabe,  teve  por  Victima  o  lente  de 
theologia,  antigo  frade  crusio,  D.  Victorino  da  Conceição 
Rebello,  a  quem  os  estudantes  puzeram  a  alcunha  de 
Besta  Sagrada  e  também  a  do  Marmelada! 

Como  ao  Conde  de  Santa  Maria  eram-lhe  attribuidas 
bernardices  e  necedades  imaginarias ! 

Foi  o  caso  que  Jayme  Cardoso  de  Gouveia  Corte- 
Real,  que  era  um  dos  rapazes  que  morava  na  Rua  de 
S.  Jeronymo,  n.®  6  leVou  um  R  (foi  só  um  R,  e  não  repro- 
vação) no  primeiro  anno  de  theologia. 

Attribuiram  essa  macula  académica  á  ousadia  de  ir  fa- 
zer acto,  não  de  cara  rapada  —  cara  ecclesiastica,  então, 
—  mas  com  bigode,  o  que  era  contrario  ás  praxes  dos  que 
se  dedicavam  ás  sagradas  letras  e  se  destinavam  á  Vida 
clerical. 


65 


O  bom  do  rapaz  não  queria  segui-la.  Frequentava  theo- 
logia,  porque  faltando-lhe  um  exame,  quiz  gozar  as  hon- 
ras de  estudante  da  Universidade. 

Devia  por  isso  estar  bastante  falho  nas  letras  sagradas. 

João  de  Deus,  magoado  com  o  que  julgou  uma  injus- 
tiça e  uma  affronta  ao  seu  companheiro  e  amigo  (hoje  não 
dão  tanta  importância  a  um  simples  R)  compôz  a  satyra. 

Compô-la,  ora  passeando,  ora  deitado  na  cama! 

Guimarães  Fonseca  escrevia. 

Era,  como  já  disse,  em  julho !  Julho  tropical  de  Coim- 
bra! João  de  Deus  nunca  sahia  de  dia  por  causa  do  calor  e 
parece  que  também  pela  pouca  riqueza  do  seu  guarda-roupa! 

A  sua  batina  —  que  as  leis  académicas  já  lhe  não  per- 
mittiam  usar  —  estava  no  estado  em  que,  muitos  mezes 
antes,  apparece  com  a  manga  rasgada,  no  retrato  que 
publicamos,  tirado  por  José  Alfredo  da  Camará  Leme 
(que  foi  conservador  em  Vianna  do  Castello)  em  um 
pequeno  quintal  da  primeira  casa,  que  fica  á  esquerda, 
descendo  a  ladeira  do  Arco  do  Castello. 

Só  sahia  á  noite,  ordinariamente  em  passeio  até  ao 
Penedo  da  Saudade,  vestindo  uma  forte  japona,  uma  ja- 
queta de  pelles. . .  em  julho  ! 

Guimarães  Fonseca,  por  essa  occasiào,  nem  de  dia, 
nem  de  noite,  punha  os  pés  na  rua!  Vivia  sob  a  ameaça 
do  chicote  de  um  outro  estudante  —  mais  tarde  muito  res-^ 
peitavel  e  muito  calvo  desembargador,  —  de  quem  tinha 
flagellado,  em  um  folhetim  do  Purgatório,  jornal  por- 
tuense, umas  infelizes  primícias  litterarias,  as  quaes  o 
outro  dizia  —  e  era  verdade  —  que  só  se  animou  a  publicar, 
instigado  pelos  louvores  e  auctoridade  do  Fonsequinha! 
Era  assim  que  lhe  chamávamos. 

Timido  e  nervoso,  só  se  arriscava  a  ir  até  á  minha  casa, 
onde  tinha  amigos,  depois  de  se  annunciar  da  janella  e  de 
explorados  os  arredores,  obtidas  que  fosse  a  segurança 
de  estar  longe  o  perigo  do  conflicto  (1). 


(1)  Veja-se  a  nota  no  fim. 


•     64 

Então  sim!  Elle  ahi  vinha,  sorridente  e  triumphante, 
com  os  versos  de  João  de  Deus,  como  que  ainda  quentes 
do  bafo  da  inspiração  ! 

Por  esta  forma  conheci  e  copiei  a  deh'ciosa  satyra, 
quando  ainda  apenas  estava  composta  a  primeira  parte  até 
aos  versos  que  dizem: 


Lê  o  propheta  Abacuc! 
E  lá  Verás  na  passagem, 
D'este  grande  personagem, 
Se  isto  assim  foi!  Continuo: 


Agora,  na  citada  edição  do  Campo  de  Flores,  a  pala- 
vra passagem  está  substituida  por  linguagem;  e  a  satyra 
não  tinha  a  divisão  de  1.°  e  2.^  Pires,  rimando  a  ultima 
palavra  continuo  com  o  verso  seguinte: 


Eu  dava  quanto  possuo 
Por  ter  a  fronte  rasgada; 


Veio  logo  depois  toda  a  satyra.  Toda  vulgarizei  por 
algumas  copias  e  principalmente  pela  recitação,  que  a  cada 
passo  me  era  imposta. 


G5 


João  de  Deus  e  a  Academia  de  seu  tempo 


Desde  os  meus  primeiros  tempos  de  Coimbra  até  que 
terminei  o  meu  curso  juridico,  versos  do  divino  poeta,  que 
■cahissem  debaixo  dos  meus  ollios,  inéditos  ou  publicados, 
copiava-os  ou  fixava-os  na  memoria. 

João  de  Deus  e  os  seus  Versos  foram  uma  das  maiores 
paixões  da  miniia  mocidade. 

Foi  no  Echo  do  Lima,  logo  depois  da  minha  forma- 
tura, que,  em  1866,  abri  o  meu  guarda-joias,  começando 
a  publicar  estas!  (1). 

Além  das  especialmente  indicadas,  o  Sr.  Theophilo 
Braga,  no  Escorço  Biographico  de  João  de  Deus,  con- 
fere ao  modesto  jornal  limiense  a  honra  de  n'elle  haverem 
sido  publicadas,  pela  primeira  vez:  A  Pomba  (que  são, 
talvez,  os  primeiros  versos  do  poeta),  A.  L.  C,  A  visi- 
nha  do  4°  andar,  A.  . .,  Desanimo,  De  lacto  e  Sonho. 

Publiquei  o  soneto,  ainda  inédito,  que  se  encontra  a 
paginas  163  da  edição,  já  referida,  do  Campo  de  Flores, 
com  o  titulo  Num  romance,  e  cujo  primitivo  titulo,  se- 
gundo o  meu  velho  caderno,  era: 

MARGARIDA 
(La  dame  aiix  camélias) 


(1)  Veja-se  a  nota. 


66 


Tinha  antes,  no  n.^  7  do  saudoso  jornal,  publicado^ 
acompanhado  de  um  folhetim,  consagrado  ãjoão  de  Deus^ 
a  formosíssima  poesia,  ainda  então  inédita,  chamada  La-^ 
grima  Celeste,  a  qual  aqui  vou  reproduzir,  porque  se 
encontra  no  Campo  de  Flores  com  variantes  em  muitos 
Versos,  que  vão  notados  com  o  signal  *,  e  com  a  omissão, 
de  uma  quadra,  que  vae  em  itálico: 


Lagrima  celeste, 
Pérola  do  mar, 
O  que  me  fizeste 
Para  me  encantar  ? 


Quando  o  néctar  chora 
Que  se  lhe  introduz 
Ao  romper  da  aurora, 
E  ao  nascer  da  luz  I 


Ah  I  se  tu  não  fosses. 
Lagrima  do  céu ! 
Lagrimas  tão  doces 
Não  chorara  eu. 


Por  entre  a  folhagem 
Onde  mal  se  vê, 
Como  eu  vejo  a  imagem- 
Da  que  eu  adorei! 


Se  eu  nunca  te  visse, 
Bonina  do  vai, 
Talvez  não  sentisse 
Nunca  dôr  egual. 


Que  esta  Voz  te  enleve 
Que  este  adeus  lá  sôe 
Que  o  senhor  te  leve, 
Que  Deus  te  abençoe-I 


*  Pomba  extraviada,  (') 
Que  é  dos  filhos  teus! 
Luz  da  madrugada, 
Luz  dos  olhos  meus  ! 


Que  o  Senhor  te  diga 
Se  te  adoro  ou  não. 
Minha  doce  amiga 
Do  meu  coração  1 


Meu  suspiro  eterno, 
Meu  eterno  amor, 
D'um  olhar  mais  terno 
Que  o  abrir  da  flor. 


Se  de  ti  me  esqueço 
Se  já  me  esqueci, 
Se  mais  céu  lhe  peço 
Que  o  de  ver-te  a  ti. 


Cl)  Pomba  debandada  está  no  Campo  das  Flores .'  Náo  posso> 
aplaudir  esta  variante ! 


67 


A  ti  que  amo  tanto  E  a  campa  o  cypreste, 

Como  a  flor  a  luz,  E  a  rola  o  seu  par.  ■  • 

Como  a  ave  o  canto.  Lagrima  celeste  I 

Jesus  Christo  a  cruz  1  Pérola  do  mar ! 


Publicou  depois  o  Echo  do  Lima  muitas  outras  poe- 
sias do  divino  lyrico  só  conhecidas  dos  leitores  dos  jor- 
naes  litterarios  de  Coimbra. 

O  sr.  Theophilo  Braga,  no  citado  Escorço  Biogra- 
phico,  que  precede  o  notável  livro,  que  se  intitula— O 
Festival  de  João  de  Deus  (pag.  xvi,  xxi,  xxiii)  por 
três  vezes  honra  o  jornal  limiense  e  o  ^eu  obscuro  redac- 
tor, mencionando  o  nome  deste  entre  os  dos  maiores 
admiradores  de  João  de  Deus,  e  um  dos  seus  coleccio- 
nadores e  vulgarisadores ! 

Éramos  muitos. 

E'  que  João  de  Deus  é  —  e  será  sempre  —  uma  das 
maiores  glorias  da  Academia  conimbricense ! 

Ligado  intimamente  a  ella.  continuou  sempre  a  perten- 
cer-lhe!  Continuou  a  ser  estudante  quando  já  não  era 
estudante! 

Formado  no  anno  lectivo  de  1858  a  1859,  só  em  1861 
é  que  desappareceu  de  Coimbra! 

Confinou-se  então  na  sua  terra  natalícia,  ou  nas  pro- 
ximidades, lá  para  o  sul. 

Mas  a  sua  alma  continuou  a  viver  na  academia  de 
Coimbra ! 

A  sua  lenda  de  poeta  e  de  artista  lá  é  que  existia ! 

O  facho  luminoso  do  seu  génio  lá  é  que  mais  ardia  e 
mais  deslumbrava! 

O  seu  novo  lyrismo  falava  ao  coração  da  mocidade! 

Era  neste  que  ficaram  como  que  depositados  os  seus 
versos  tão  novos  e  tão  sublimes! 

Era  ella,  -a  mocidade,  que  bem  os  entendia!  Era  essa 
mocidade  que  tinha  de  espaihá-los ! 


68 


Como  Homero,  João  de  Deus  era  um  divino!  E  não 
era  só  no  génio  que  o  lyrico  português  tinha  de  asseme- 
Ihar-se  ao  grande  poeta  grego. 


itáefFiUoj^ 


Como  os  rapsodes  ou  homerides;  como  esses  canto- 
res ambulantes,  que  foram  os  que  tornaram  conhecidos  os 
versos  do  divino  épico,  levando-os  a  todas  as  ilhas  e  cida- 
des da  Grécia,  os  contemporâneos  de  João  de  Deus,  em 


69 


Coimbra,  foram  também,  na  phrase  de  um  escriptor  illus- 
tre,  as  edições  vivas  que  espalharam  o  seu  novo  lyrismo 
por  todas  as  terras  do  paiz ! 

Essa  luz,  tão  suave  e  tão  intensa  de  poesia,  irradia  do 
centro ! 

Surge  em  Coimbra  nos  Prelúdios  Litterarios,  na  £5- 
treia  Litteraria,  no  Académico,  no  Atheneu  e  no  Phos- 
foro. 

Depois,  de  norte  a  sul,  no  Século  19  (de  Penafiel),  no 
Echo  do  Lima,  no  Bejense,  na  Folha  do  Sul. 

E'  por  esses  jornaes,  publicados  em  províncias  distan- 
tes, que  o  poeta  recebe  a  consagração,  que  lhe  era  de- 
vida! Que  adquire  novos  e  apaixonados  admiradores!  E 
que  os  seus  versos  se  tornam  conhecidos. 

E'  pela  reproducçào  da  publicidade  da  província  que  as 
suas  principaes  composições  poéticas  appareceram  depois 
na  capital  do  paiz ! 


Os  laços  que  prenderam  João  de  Deus  a  Coimbra  e  á 
sua  Academia  são  imperecíveis! 

Hão-de  sempre  existir ! 

E'  o  coração  da  mocidade,  que  lá  lhe  ha-de  render 
eterno  culto ! 

São  os  doutores  e  os  capêllos  das  suas  satyras ! 

São  pessoas  que  lá'  viveram  e  já  não  existem,  e  cou- 
sas que  sempre  hão-de  existir! 

E'  o  Mondego,  o  Penedo  da  Saudade,  a  Fonte  dos 
Amores  e  o  Penedo  da  Meditação! 

É  a  janella  do  Occidente,  que  tem  tão  melancholica 
referencia  na  sentidíssima  elegia  a  Rachel  Nazareth !  Ja- 
nella que  fica  a  uma  esquina  da  Rua  da  Sophia  e  se 
debruça  sobre  a  travessa,  que  d'ella  parte. 

É  o  Convento  de  Santa  The  reza,  ao  qual  anda  ligada  a 
lenda  de  uns  amores,  não  sei  se  verdadeiros  se  phantasticos, 


70 


a  que  foram  attribuidos  os  formosíssimos  Versos  da  Noite 

de  Amores: 

Mimosa  noite  de  ritnôres ! 
Mimoso  leito  de  flores  ! 
Mimosos,  languidos  ais! 

A  poetisa  da  Carta  Anonyma  julgou  (e  talvez  tivesse 
motivo  para  julgar. . .)  que  os  amores,  a  que  os  versos  se 
referem,  eram  verdadeiros  e  que  foi  profanado  o  segredo 
d'elles!  O  poeta,  em  versos  sublimes,  veio  affirmar  que 
eram  phantasticos ! 

Sempre  ouvi  dizer  que  a  poetisa  da  Carta  Anonyma 
era  uma  talentosa  mulher,  de  uma  família  fidalga  da  Beira, 
D.  Marianna  Povoas,  dotada  de  nobre  coração  e  nobre 
caracter,  segundo  me  disse,  muitas  vezes,  um  meu  sau- 
doso amigo,  que  foi  ornamento  distinctissimo  da  magistra- 
tura do  seu  tempo,  o  qual  a  conheceu  e  com  ella  tratou ! 

Deve  a  litteratura  a  essa  iilustre  dama  os  Versos  subli- 
mes da  resposta  de  João  de  Deus,  que  se  encontra  a 
fl.  10  do  Campo  de  Flores,  sob  o  titulo: 

Resposta  á  minha  bella  incógnita...  censora 

Primitivamente  tinha  este : 

Resposta  á  minJia  bella  incógnita  inimiga . . . 
Ech.  e  Narc. 


Sim;  deve-se  á  incógnita  poetisa  da  Carta  Anonyma 
o  ter  inspirado  a  mais  linda  quadra  que  os  meus  olhos  le- 
ram na  lingua  portugueza : 

Quando  a  mão  de  um  innocente 
Pede  a  estrella  que  o  seduz,  (1) 
Ninguém  ha  tão  inclemente, 
Que  no  ceu  lhe  apague  a  luz! 


(1)  No  Campo  de  Flores,  foi  substituída  no  segundo  verso  a  pala- 
vra Pede  pela  palavra  Quer.  Prefiro  aquella! 


71 


Só  podia  ser  composta  esta  quadra  no  Penedo  da  Sau- 
'dade  olhando  o  poeta  para  o  oiro  e  azul  do  firmamento ! 

É  lá,  é  em  Coimbra,  que  a  João  de  Deus  devia  ser 
erigido  o  seu  monumento ! 

Que  mais?. . .  Não  sei  dizer  mais. . .  Que  me  perdoe 
a  alma  gentil  do  divino  vate  e  a  sua  immortal  memoria  este 
pobre  tributo  de  uma  admiração  que  nem  o  largo  tracto 
prosaico  dos  negócios,  nem  o  gelo  dos  annos  poderam 
nunca  arrefecer  e  extinguir! 


NOTA    1." 
Francisco  Guimarães  Fonseca 


A  memoria  deste  pobre  companheiro  da  mocidade,  tão  distincto- 
e  tão  infeliz,  reclama  algumas  linhas  ! 

Era  natural  de  Guimarães.  No  anno  lectivo  de  1859  a  1860  havia 
frequentado  o  primeiro  anno  philosofico,  mas  na  occasião  em  que  ser- 
viu de  secretario  a  João  de  Deus,  na  feitura  dos  Pires,  preparava-se 
para  fazer  um  exame,  que  lhe  faltava  para  seguir  o  curso  jurídico, 
em  que,  no  anno  seguinte  e  nos  outros,  até  o  fim  do  4.°  anno,  fomos 
condiscípulos. 

O  estudante,  que  queria  tirar  atroz  vingança  da  sua  mordaz  caus- 
ticidade  litteraria  era  um  nosso  comprovinciano  minhoto,  de  nome 
Acácio  de  Carvalho  Fontes,  que  morreu  juiz  da  Relação  do  Porto. 

O  folhetim  do  Purgatório,  que  era  o  corpo  de  delicio  da  malfei- 
toria do  pobre  Guimarães  Fonseca,  intitulava-se  Acacius  Robur. 

Baixo,  franzino,  peito  curvo,  farta  cabeleira  annelada  não  escura, 
emquadrando  uma  larga  testa  e  um  alvo  rosto,  em  que  brilhavam  olhos 
de  um  azul  claro,  com  lábios  finos,  em  que  bailava  o  perenne  sorriso 
da  ironia,  Guimarães  Fonseca  era,  em  todo  o  seu  phisico,  attraente, 
distincto  e  muito  sympathico. 

Interessantíssimo  conversador,  quando  encolhia  os  hombros  e 
inclinava  a  cabeça  para  um  lado,  como  era  gesto  seu  habitual,  a  oerve 
e  a  graça  esfusiavam. 

Tinha  um  mimoso  talento  litterario  comprovado  nos  Prelúdios 
Litterarios,  no  Académico,  no  Phosforo,  no  Tira-Teimas,  no  Atti- 
la,  e  outros  jornaes  litterarios  e  políticos  de  Coimbra  e  de  fora  de 
Coimbra. 

Uma  grande  espontaniedade  no  verso  e  a  sua  prosa  era  um 
encanto ! 

Bastará  lêr  um  largo  escripto,  em  prosa  e  verso,  que  denominou 
A  Virtude  de  dous  Anjos,  e  se  encontra  desde  o  n.°  3  até  o  n.°  14 
d'aquelle  ultimo  jornal  litterario. 

Sendo  muito  inteligente,  nunca  foi  capaz  de  disciplinar  a  sua 
vontade  para  o  estudo  de  questões  positivas,  alheias  á  litteratura. 

Não  tendo  podido  conseguir  approvação  no  4.°  anno,  foi  para  o 
Brazil,  onde  se  dedicou  ao  jornalismo.  Não  foi  feliz.  Regressando, 


74 


obteve  um  logar  de  amanuense  em  una  secretaria  do  Estado,  e, 
durante  um  certo  período,  appareceu,  nos  principaes  jornaes  de  Lis- 
boa, a  sua  brilhante  colaboração  litteraria. 

Uma  vida  desordenada  de  bohemio  apa'^ou-llie  o  espirito  e  des- 
pedaçou-lhe  o  corpo!  Luctou  com  a  doença  e  com  a  pobresa;  e  teria 
morrido  ao  abandono  e  na  mais  extrema  penúria,  se  lhe  não  valesse 
a  bondosa  alma  de  um  outro  condiscípulo  nosso,  Luiz  Jardim,  Conde 
de  Valenças. 

Honra  seja  á  sua  memoria  ! 

Parece  que  o  destino  caprichou  em  tornar  negro  o  futuro  de  um 
rapaz  que,  pelo  talento,  se  nos  antolhava  áureo  e  brilhante! 


75 


NOTA  2.:' 


O  "Echo  do  Lima,,  e  António  de  Magalhães  Barros 


E  pois  que  falei  no  saudoso  jornal,  onde  foram  divulgados  muitos 
versos  de  Joào  de  Deus,  vou  consagrar-lhe  algumas  palavras. 

Era  bisemanal,  tendo  sahido  o  primeiro  numero  em  12  de  agosto 
de  1866. 

O  Echo  do  Lima  foi  destinado  a  ser  órgão  dos  interesses  locaes 
e  de  um  grupo  de  políticos  do  concelho,  que  eram  adversários  da 
politica  de  Fontes  Pereira  de  Mello,  então  no  poder. 

Estes  foram  os  seus  intuitos  ao  crear-se. 

Quanto  á  politica  de  princípios,  os  seus  redactores  —  que  tinham 
por  único  estipendio  o  prazer  de  expor  as  suas  convicções  —  gozavam 
de  toda  a  independência  e  liberdade. 


Aqueile  grupo  local  tinha  por  cabeça  e  alma  um  moço  advogado, 
morto  infelizmente  em  1888,  em  pleno  Vigor  da  vida,  deixando  uma 
perenne  saudade   no  coração  de 
todos  que  com  elle  trataram. 

Era  a  individualidade,  supe- 
riormente sympathica,  de  António 
de  Magalhães  Barros  de  Araújo 
Queiroz.  Formado  aos  vinte  e  um 
annos,  em  1859,  teve  por  condis- 
cípulos João  de  Deus  e  José  Dias 
Ferreira. 

Por  aquella  épocha  era  já 
advogado  famoso  pelo  saber,  pelo 
desprendimento  de  interesses, 
pela  bondade  angélica  e  inesgo- 
tável, com  que  a  todos  servia, 
com  que  zelava  os  direitos  e  in- 
teresses de  todos,  esquecendo-se 
somente  dos  seus  I 

Era  homem   para  tudo  na  sua  António  de  Magalhães  Barros 


76 


terra  e  amou-a  tanto;  tanto  se  prendeu  aos  negócios  delia  e  dos 
seus  amigos,  que  nunca  de  lá  o  deixaram  sahir ! 

Depois  de  formado  só  uma  vez  pôde  ir  ao  Porto ! 

Pôde  sempre  dizer,  como  Thomaz  Ribeiro,  aquelle  verso  do- 
D.  Jayme,  que  continha  uma  verdade,  quando  o  poeta  o  escreveu : 

Eu  nunca  vi  Lisboa  e  tenho  pena  ! 

Era  dotado  de  uma  distincta  intelligencia,  de  uma  feliz  e  rara 
memoria,  mas  tinha  um  coração  ainda  maior! 

Fui  dos  que  mais  o  amaram !  Entrando  pela  sua  mão  em  Coim- 
bra pela  primeira  vez,  fui  como  que  a  pedra  de  toque  dos  raros  qui-^ 
lates  da  sua  bondade ! 


Teve  o  Echo  do  Lima  por  seus  redactores,  quando  se  fundou,  o 
Dr.  Francisco  Roberto  de  Magalhães  Barros,  actualmente  juiz  de 
2.*  instancia  aposentado,  irmão  d'aquelle  nosso  querido  amigo  e  quem 
escreve  estas  linhas,  formados  no  anno  anterior,  e  ligados  por  fra- 
ternal amisade  desde  os  seus  primeiros  annos. 

Temperamentos  differentes,  completavam-se  um  pelo  outro. 

Se  um  tinha  a  intelligencia,  a  frieza  e  o  bom  senso,  tinha  o  outro 
a  paixão  e  a  impetuosidade. 

Era  correspondente  do  jornal,  em  Lisboa,  escrevendo  em  todos 
os  números  uma  carta  —  cartas  politicas  no  fundo  e  litterarias  na 
forma  -  -  o  Dr.  Alberto  Telles  de  Utra  Machado  (hoje  chefe  de  repar- 
tição no  Ministério  da  Justiça)  distincto  homem  de  letras,  e,  desde 
a  Universidade,  amigo  dos  seus  redactores. 

Alves  Matheus,  o  glorioso  orador  sagrado,  e  Manuel  Penha  For- 
tuna, amigo  e  condiscípulo  de  António  de  Magalhães,  quizeram  ma- 
nifestar a  sua  sympathia  pelo  incipiente  jornal  e  pela  sua  redacção, 
mandando  para  elle  alguns  artigos. 

José  Caldas,  hoje  grande  escriptor  pelo  talento  e  pela  erudição, 
e  já  então  primoroso  e  promettedor  cultor  das  boas  letras,  nossa 
amigo  e  companheiro  de  mocidade,  honrou  o  Echo  com  a  sua  coUa- 
boraçâo. 

O  jornal  fez  fortuna  em  popularidade  e  concorreu  para  con- 
quistar para  o  grupo  valiosas  adhesões. 

Fez  rude  e  intransigente  opposição  ao  ministério,  que  governou 
desde  setembro  de  1865  a  janeiro  de  186S,  de  que  era  alma  Fontes 
Pereira  de  Mello,  e  foi  um  dos  que,  no  norte  do  paiz,  preparou  a 
opinião  para  o  movimento  pacifico  do  1.°  de  janeiro  de  186S. 

Honra-se,  ainda  hoje,  quem  escreve  estas  linhas  da  pequena 
parte,  que  teve  n'essa  campanha ! 


Anthero  de  Quental 


. .  .agradeço  como  um  dos  muitos  dilectos  amigos  do 
defuncto  a  homenagem  posthuma  que  lhe  conferem, 
e  digo  muitos,  porque  o  numero  d'elles  conta-se  pelo 
dos  que  no  breve  decurso  da  sua  vida,  sempre  angus- 
tiada, tiveram  a  fortuna  de  conhecer  de  perto  a  candura 
quasi  santa  da  sua  alma,  a  nobreza  extrema  do  seu  sen- 
tir e  a  lucidez  cristalina  da  sua  ideia. 

(Oliveira  Martins,  Officio  á  Camará  de  Ponta  Delgada). 


Do  poeta  e  do  pensador  falam  os  seus  versos  e  os 
seus  escriptos: 

Do  homem,  porém,  é  preciso  que  fale  o  coração  dos 
seus  amigos. 

Luiz  de  Magalhães,  In  Mem. 


Anthero  Tarquinio  de  Quental,  que  este  é  o  seu  nome 
nos  registos  universitários,  nasceu  na  cidade  de  Ponta 
Delgada  em  18  de  abril  de  1842. 

Era  filho  de  Fernando  de  Quental,  que  deixou  fama  de 
homem  muito  intelligente  e  espirituosíssimo,  o  qual,  aos 
17  annos,  se  alistou  soldado-cadete  na  expedição  liberal, 
que  da  sua  terra  se  dirigia  ao  Porto  e  foi  um  dos  7500 
soldados  d'ella;  e  era  neto  do  celebre  morgado  André 
Ponte  de  Quental  da  Camará  e  Souza,  poeta  e  homem  de 
letras,  amigo  e  companheiro  de  Bocage,  que,  nas  cortes 
constituintes,  que  se  seguiram  á  revolução  de  1820,  foi  de- 
putado pela  ilha  de  S.  Miguel. 


78 


Por  sua  màe,  D.  Anna  Guilhermina  Maia,  procedia 
de  uma  distincta  familia  de  Thomar,  em  que  houve  magis- 
trados iilustres,  sendo  neto  do  respeitadíssimo  desem- 
bardor  Anthero  José  de  Maia  e  Silva,  do  qual  herdou  o 
nome. 

Provinha,  pelo  lado  paterno,  de  uma  das  mais  nobres  e 
antigas  famílias  açorianas  e  de  uma  fidalga  familia  da  ilha 
da  Madeira,  á  qual  pertencia  sua  avó. 

Tinha  também  na  sua  familia  a  nobreza  intellectual  de 
Frei  Simão  de  Novaes,  fundador  do  Convento  da  Praia, 
na  Ilha  Terceira;  e  de  Frei  Bartholomeu  de  Quental,  fun- 
dador da  Congregação  do  Oratório,  primoroso  escriptor 
místico  e  grande  orador  sagrado,  pregador  da  Casa  e  Ca- 
pella  Real,  que  o  sr.  Joaquim  de  Vasconcellos,  fundado 
em  Barbosa  Machado  e  outros,  diz  que,  por  seus  talentos 
e  virtudes,  não  teve  menor  importância  que  o  padre  An 
tonio  Vieira.  (1) 


Vindo  muito  novo  para  um  collegío  de  Lisboa,  matri- 
culou-se,  em  outubro  de  1858,  tendo  desaseis  annos,  no 
primeiro  anno  jurídico. 

Sem  me  aproximar  d'elle,  porque  o  não  permittia  a 
minha  humildade  de  estudante  recentemente  chegado,  pela 


(1)  Veja-se,  no  In  Memoriam,  o  Esboço  Genealógico  por  Ernesto 
do  Canto  e  o  artigo  do  Visconde  de  Faria  e  Maia. 

O  illustre  genealogista,  o  sr.  José  de  Azevedo  e  Menezes,  escre- 
veu o  seguinte: 

«A  familia  de  Anthero  é  de  origem  francesa,  e  o  primeiro  portu- 
«guez  que  usou  o  appelido  de  Quental  foi  Francisco  Botelho  de  No- 
«vaes,  pae  de  D.  Maria  de  Novaes  Quental,  dama  da  rainha  D.  Isabel, 
«mulher  de  D.  Affonso  V. 

'D.  Maria  casou  com  Ambrósio  Alvares  Homem  de  Vasconcellos, 
«muito  illustre  por  nascimento  e  pae  de  quatro  filhos,  que  o  fizeram 
«feliz.  Um  d'elles  Simão  de  Novaes,  foi  frade  franciscano  e  fundador 
«do  Convento  da  Praia,  na  Ilha  Terceira.  (In  Memoriam,  Apêndices). 


79 


primeira  vez,  a  Coimbra,  iembro-me  bem  da  sua  figura 
d'essa  épocha. 

Com  os  seus  cabelios  de  ouro  e  um  colete  verde  a 


Anthero  de  Quental,  1864 


querer  fugir-lhe  da  batina  negra  pelo  pescoço  e  pelo  peito, 
alegre,  inquieto,  Vivo  como  uma  travessa  creança! 


Mas  porque  é  que  ainda  hoje  —  dirão  —  não  conservas 
o  acanhamento  de  outr'ora,  e  ousas  pôr  mão  profana  em. 


80 


assumpto  tão  delicado  e  sagrado,  qual  o  da  memoria  do 
altissimo  poeta  e  profundo  pensador,  que  foi  Anthero  de 
Quental? 

Não  ouso,  não! 

Quero  apenas  trazer  aos  seus  admiradores  uma  pe- 
quena contribuição  de  factos  ignorados  ou  esquecidos 

Quero  offerecer-lhes  algumas  lembranças,  que  o  cora- 
ção, mais  que  a  memoria,  guardou. 

Não  é  um  artigo  que  escrevo,  é  um  depoimento  de 
factos  pessoaes  ou  presenciaes. 

Sou  como  que  um  rude  e  bem  fraco  operário,  que 
traz  nos  braços  uma  pequena  pedra  tosca  para  o  gran- 
dioso edificio,  que  ha  a  levantar  á  sua  memoria ! 


11 


Os  companheiros  e  amigos  de  Anthero 


Elle  tinha  em  Coimbra  um  tio  paterno,  personalidade 
muito  distincta  e  bondosa,  que,  quando  Anthero  se  matri- 
culou no  primeiro  anno  jurídico,  frequentava  o  5.^  anno 
de  medicina  e  foi  depois  professor  d'essa  faculdade. 

Era  Filippe  de  Quental.  Só  nos  primeiros  annos  viveu 
em  casa  do  tio.  Ahi  continuou  sempre  a  ser  a  sua  morada 
para  os  registos  e  effeitos  académicos.  Mas  onde  elle  ti- 
nha quarto,  cama  e  meza  era  na  casa  onde  moravam  José  e 
Alberto  da  Cunha  Sampaio. 

Não  sei  bem  desde  quando  este  facto  começou  a  exis- 
tir. Parece-me  que  foi  desde  o  anno  lectivo  de  1861  a 
.1862,  em  que  José  da  Cunha  Sampaio,  que  havia  sido  ris 


81 


cado  por  causa  de  uma  desordem  com  caloiros,  voltou  á 
Universidade  entrando  no  meu  curso. 

Estávamos  no  segundo  anno  d^elie.  Eram  também  com- 
panheiros na  mesma  casa,  Frederico  Philemon  da  Silva 
Avelino,  de  Lisboa,  e  Eduardo  de  Andrade,  de  Foscôa. 

Mas  porque  é  que 
Anthero  deixou  a  com- 
panhia do  tio  e  foi  para 
a   d'aquelles   rapazes? 

Foi  por  azedume  ou 
dissentimentos,  que  os 
separassem? 

Não.  Eram  incom- 
patíveis com  a  tole- 
rante bondade  e  reci- 
proca affectuosidade  de 
ambos. 

Nenhuma  nuvem  tol- 
dou nunca  a  pureza  do 
affecto  entre  elles. 

E'  que  Filippe  era 
tio  e  os  dois  Sampaios 
eram  os  seus  irmãos ! 

Elle  e  Alberto  Sam- 
paio e  Germano  Mey- 

relles  eram  como  aquelles  gémeos  siamezes,  que  não  po- 
diam separar-se  e  o  que  um  sentia  era  o  que  sentia  e  sof- 
fria  o  outro. 

Posto  não  vivesse  na  mesma  casa  com  Germano, 
constantemente  se  viam  juntos,  de  dia  e  de  noite. 

Alberto  Sampaio  era  o  seu  companheiro  e  confidente 
nas  letras;  era  bem  o  seu  irmão  pela  capacidade  intele- 
ctual, pelo  caracter  e  pela  bondade  de  coração. 

Já  então  se  entregava  a  sérios  estudos  económicos  e 
se  revelava  o  futuro  erudito  escriptor  da  Portugália  e  o 
auctor  do  notabilissimo  livro,  que  se  intitula  As  Villas  do 
Norte  de  Portugal.  Nunca  teve  por  familia  senão  o  irmão 
e  os  filhos  de  seu  irmão!  Um  sábio  e  um  santo! 

6 


meKTOSMStji,  í\. 


Alberto  Sampaio 


82 


Germano  Meyrelles,  intelligencia  superior,  talento  vi- 
víssimo, era,  em  todo  o  seu  ser,  originalíssimo! 

Baixo,  magro,  olhos  viVos,  beiços  finos,  cara  peque- 
nina, sem  barba  e  povoada  de  um  ligeiro  velo  claro,  grande 
mobilidade  de  physionomia,  havia  n'elle  alguma  cousa  que 
fazia  lembrar  um  pequenino  rato! 

Aleijado  dos  pés,  que  tinha  como  que  amputados  e 
voltados  para  traz,  o  que  o  fazia  caminhar  com  difficui- 
dade,  ondeante,  vivia  como  que  em  guerra  com  a  natu- 
reza, que  havia  tido  com  elle  aquella  enorme  crueldade! 

Era  azedo,  desdenhoso,  sarcástico! 

Um  sarcasmo  vivo  e  em  pé!  Palavra  fácil,  vibrante, 
ousadíssima,  como  a  sua  penna!  Secco  no  trato,  não  tinha 
a  communicativa  bondade  de  Anthero  e  Alberto  Sampaio. 


José  da  Cunha  Sampaio,  que  era  o  mais  velho,  era  o 
chefe.  Chefe  de  Alberto,  de  Anthero  e  dos  outros  compa- 
nheiros de  casa.  E  não  era  só  d'elles. 

A  outros  estendia  o  seu  ascendente  de  irmão  mais  Ve- 
lho, muito  querido  e  respeitado. 

Esse  José  Sampaio,  de  olhar  melancholico,  testa  alva 
e  altíssima,  donde  sabiam  abundantes  cabellos  de  ébano, 
com  o  rosto  ornado  de  fina  e  formosa  barba  negra,  typo 
de  homem  com  linhas  de  raça  árabe,  era  dotado  de  uma 
clara  intelligencia  e  de  um  espirito  muito  ponderado. 

Era  uma  das  mais  sympathicas  figuras  da  academia. 
A  sua  alma  tinha  ainda  maior  nobresa  do  que  o  seu  corpo. 

Era  já  então  e  foi,  durante  a  sua  vida,  um  espelho  mo- 
ral a  que  podiam  compôr-se  os  que  quizessem  ser  dignos. 

Estes  eram  como  que  a  familia  de  Anthero. 


85 


Mas  muitos  outros  frequentavam  a  casa,  e  viviam  liga- 
dos a  eile  pela  communhão  das  letras,  ou  peia  amisade. 

Eram:  José  Falcão,  António  de  Azevedo  Castello- 
Branco,  Santos  Valente,  Anselmo  de  Andrade,  Francisco 
Machado  de  Faria  e  Maia,  Alberto  Telles  de  Utra-Ma- 
chado,  Florido  Telles  de  Vasconcelios,  Marianno  Machado 
de  Faria  e  Maia,  Philomeno  da  Camará,  João  de  Sousa 
Vilhena,  João  Lobo 
de  Moura,  Guimarães 
Fonseca,  Theofilo 
Braga,  João  Machado 
de  Faria  e  Maia,  Fer- 
nando Rocha,  Manoel 
de  Arriaga,  José  Leite 
Monteiro,  José  Ber- 
nardino de  Abreu 
Gouveia  e  Raymundo 
Capella,  que  são  os 
que  agora  me  lembro. 

As  relações  com 
Guilherme  de  Vascon- 
celios Abreu,  então 
militar  e  estudante  de 
mathematica,  e  com 
Eça  de  Queiroz,  só 
começaram  mais  tar- 
de e  em  épocha  a  que 
ainda  me  referirei. 

Além  daquelles, 
cujos  nomes  citei,  ha- 
via a  plebe  dos  admiradores,  os  que  nos  diziamos  solda- 
dos do  seu  ideal  de  Justiça,  e  que  lhe  não  votávamos  um 
menos  quente  affecto. 


José  da  Cunha  Sampaio,  IS65 


Anthero  tinha  também  já  então  admiradores  nas  outras 
escolas  do  paiz. 


84 

Quando,  em  1864,  arrastados  pela  sua  palavra,  por 
occasião  da  Rolinada,  fomos  em  êxodo  para  o  Porto, 
viveu  lá  sempre  rodeado  dos  mais  distinctos  estudantes 
portuenses. 

Alexandre  da  Conceição,  Custodio  Duarte  e  Manoel 
Duarte  de  Almeida  viam-se  sempre  juncto  d'elle. 

Entào  conheci,  de  vista,  os  dois  primeiros,  dos  quaes 
depois  fui  amigo. 

Os  irmãos,  Custodio  Duarte  e  Manoel  Duarte,  seques- 
traram-no,  levando-o  e  a  António  de  Azevedo  Castello- 
Branco,  que  estavam  hospedados  na  Hospedaria  Esta- 
nislauy  na  Batalha,  para  a  casa  em  que  viviam. 


II 


Anthero  e  Filippe  de  Quental.  Uma  grave  doença. 


Foi  no  inverno  do  anno  lectivo  de  1863  a  1864  — pa- 
rece-me  que  em  dezembro  ou  janeiro  — que  tive  occasião 
de  conhecer  a  affectuosa  ternura,  que  ligava  os  dois. 

Marco  aquelles  dois  meses  desse  anno,  porque  na  pri- 
meira epocha  d'elle,  Alberto  Sampaio,  pela  atracção  pelo 
irmão  e  por  Anthero,  ainda  esteve  em  Coimbra  sob  pre- 
texto de  frequentar  uma  cadeira  do  curso  administrativo; 
e,  quando  se  passou  o  que  vou  contar,  já  não  estava. 

Chamado  pela  mãe,  tinha  ido  para  junto  d'ella.  Não 
tive  a  honra  de  conhecer  essa  senhora,  mas  ella  devia  ter 
as  Virtudes  da  mãe  dos  Gracchos. 

Ausente  de  Coimbra,  Alberto  achava-se  na  honrada 
casa  de  Boamcnce,  em  S.  Christovào  de  Cabeçudos  (Fa- 


85 


malicào),  onde  nasceu  José,  e  onde  depois  quando  residia 
em  Villa  do  Conde,  Anthero  tinha  um  quarto,  que  só  a  elie 
pertencia  e  sempre  preparado  para  recebê-lo. 
(Alberto  nasceu  em  Guimarães). 


Viviam,  n'esse  anno,  Anthero  e  seus  companheiros  na 
rua  da  Trindade  n."  16. 

E'  a  chamada  casa  da  ilha,  porque  fica  isolada,  sendo 
cortada  pela  rua  dos  Militares  e  pelo  prolongamento  da 
rua  do  Borralho. 

Anthero  sentiu-se  doente  e  teVe  de  recolher-se  á  cama. 
Julgaram  os  companheiros  que  seria  uma  grande  consti- 
pação, filha  de  resfriamento  e  proveniente  este  da  falta 
de  cuidados,  que  tinha  com  a  saúde. 

Inda  assim,  foi  participado  o  seu  estado  a  Filippe  de 
Quental.  Este  veiu,  como  medico,  vêr  o  enfermo. 

Assisti  á  visita.  Foi  no  começo  da  noite,  depois  do 
toque  da  cabra. 

O  tratamento,  que  entre  si  se  daVam  era  o  de  uma 
intimidade  de  irmãos,  ou,  melhor  ainda,  de  entre  pae  e 
filho  com  muita  ternura  e  desusada  confiança. 

Anthero  —  com  a  sua  doce  voz  que  nunca  mais  esque- 
ceu a  quem  se  acostumou  a  ouVi-la  —  chamava-lhe /^^^ 
Filippe ;  e  este  tratava-o  por  compadre  Anthero.  Nenhum 
d'elles  teve  filhos. 

Chegando  o  medico,  entrou  no  quarto  do  doente, 
tomou-lhe  o  pulso,  e,  com  o  seu  ar  bonacheirão,  disse : 
não  é  nada,  compadre  Anthero,  não  é  nada! 

Receitou  e  foi  para  o  quarto  de  José  Sampaio  conver- 
sar. Para  lá  fomos  todos. 

Digno  tio  de  Anthero  na  intelligencia  e  na  bondade, 
physicamente  era  um  typo  inteiramente  diverso :  alto, 
cheio,  bojudo,  suissas  e  cabellos  negros,  e  usando  óculos 
escuros. 


86 


Muito  iliustrado  e  possuindo  a  livraria  do  pae,  onde 
Anthero  muito' se  instruiu!  Muito  relacionado  com  polí- 
ticos e  litteratos. 

Havia  sido  no  Theatro  Académico,  um  actor  cómico 
de  distincío  mérito,  e  ninguém  contava  com  mais  espirito 
uma  anedocta,  sublinhando-a  apenas  com  um  ligeiro  e 
especial  tremer  dos  lábios. 

N'essa  primeira  noite  da  doença  de  Anthero,  elle  teve 
todas  as  honras  do  cavaco. 

Anedoctas ;  casos  da  academia  anteriores  á  nossa 
épocha.  de  que  era  chronica  viva ;  casos  picarescos  da 
sua  primeira  mocidade,  na  ilha  de  S.  Miguel ;  aventuras 
galantes  d"esse  tempo,  tudo  salgado  com  a  sua  graça,  para 
ali  trouxe  o  bom  Filippe. 


Voltou  na  noite  seguinte  e  repetiram-se  as  mesmas 
scenas. 

Anthero  tinha  febre,  mas  conversava.  Ao  terceiro  dia 
porém  o  doente  peorou  muito,  k  febre  era  muito  alta. 

Chegou  Filippe  com  a  sua  alegria  costumada. 

Tomou  o  pulso  ao  doente.  Examinou-o  muito  demorada 
e  cuidadosamente. 

De  repente  a  phisionomia  transtornou-se-lhe!  O  tremer 
dos  seus  lábios  não  era  o  que  tinha  quando  contava  casos 
alegres! 

Sahiu  do  quarto  e  desceu  as  escadas,  porque  isto  se 
passava  no  andar  superior. 

Em  Vez  de  se  dirigir  para  o  quarto  de  José  Sampaio, 
dirigiu-se  para  a  porta  da  sabida. 

Levantou  a  gola  do  sobretudo  como  para  esconder  o 
rosto.  Falando  baixo  a  José  Sampaio,  as  lagrimas  salta- 
ram-lhe  dos  olhos.  O  medico  exprimentado  sentiu-se  sem 
serenidade  para  o  combate,  que  havia  a  travar  com  a 
doença. 

Muito  enfiado,  ouvimos  dizer-lhe :  eu  mando  cá  o 
Lourenço. 


87 


N'essa  mesma  noite,  tomou  conta  do  enfermo  o  dis- 
tincto  professor,  grande  e  sympathico  clinico,  Dr.  Lou- 
renço de  Almeida  Aze- 
vedo. 

Anthero  tinha  um 
perigosíssimo  ataque 
de  bexigas  ! 

Os  frequentadores 
da  casa  offerecêmo- 
nos  para  auxiliar  os 
companheiros  em  to- 
dos os  serviços,  de  que 
precisasse    o    doente. 

Em  uma  noite, 
que  passei  junto  delle 
com  Frederico  Phile- 
mon,  o  enfermo  deli- 
rava. 

Conversava  com  os 
grandes  poetas :  com 
Camões,  com  o  Dante, 
com  o  Petrarcha,  que 
por  essa  occasiào  lia. 

Interrogava-os.    Exigia-lhes    que    lhe    respondessem! 

De  repente  teve  um  ataque  de  choro.  Quiz  levantar-se 
para  procura-la  —  dizia!...  porque  a  tinha  perdido...  e 
não  podia  viver  sem  ella.  . .  a  Consciência! 

E  chorava  muito...  porque  a  não  encontrava,  —  a 
Consciência! 


Frederico  Philemon 


Vieram  as  melhoras  depois  de  poucos  dias.  O  perigo 
passou. 


88 


Lembrando-nos  do  que  elle  depois  produziu;  do  papel 
moral  e  litterario,  que  desempenhou;  da  influencia  que 
teve  sobre  tantos  espíritos,  é  que  bem  pôde  apreciar-se  a 
perda  enorme,  se  elle  então  tivesse  succumbido. 


IV 


Anthero  aprendiz  de  dansa 


Anthero  tinha  por  vezes  simplicidades  de  creança. 

Elle,  que  era  um  triste,  tinha  também  alegrias  sinceras 
como  as  dos  annos  infantis!  Parece  próprio  da  maldicta 
doença,  que  lhe  amargurou  a  vida  e  afinal  o  Victimou! 

Ouviu-nos  falar,  uma  Vez  -a  mim  e  a  Philemon  — 
em  umas  dansas,  em  que,  com  outros  rapazes,  nos  andá- 
vamos a  exercitar  em  casa  de  um  nosso  condiscípulo, 
que  deve  ter  ido  desta  vida  para  outra  em  passo  de 
dansa!  Era  insigne  dansador,  e  morava  á  Sé  Velha,  na 
casa  da  esquina  vindo  da  rua  da  Ilha.  Anthero  disse-nos 
logo  que  também  queria  ir;  que  era  uma  prenda  que  lhe 
faltava  e  queria  completar-se! 

Lá  foi  duas  noites  para  entrar  no  regimen  constitucio- 
nal da  dansa,  que  era  como  elle  chamava  ás  quadrilhas  e 
lanceiros. 

Mas,  como  elle  esteve  alegre,  n'essa  noites!  Como 
brincou  e  riu ! .  . . 


89 


No  anno  de  1862-1863 


É  este,  quanto  a  mim,  o  mais  feliz  anno  da  vida  de 
Anthero,  em  Coimbra. 

É  o  anno  do  seu  maior  calor  pelas  cousas  da  acade- 
mia. É  o  da  sua  mais  radiante  gloria  e  predomínio  moral. 

É  o  anno  da  Fé  e  Esperança  no  futuro ! 

Morava  com  os  seus  companheiros  aos  Palácios  Con- 
fusos, ou  antes  na  travessa,  que  d'ali  segue  para  a  Cou- 
raça de  Lisboa,  perto  da  casa,  onde  tantos  annos  viveu 
e  morreu  a  pobre  Amélia  Janny. 

É  o  anno,  em  que  se  revela  a  existência  da  Sociedade 
do  Raio,  fundada  no  anno  anterior,  e  de  que  era  um  dos 
chefes  com  José  Sampaio  e  José  Falcão. 

Os  sócios  não  se  conheciam.  Reuniam  por  decurias 
em  casa  dos  chefes  destas,  e,  como  dez  estudantes,  em 
casa  de  um  outro  estudante,  não  causavam  reparo,  mante- 
ve-se  o  segredo.  Só  depois  de  8  de  dezembro  é  que 
houve  a  reunião,  a  que  se  refere  Marianno  Machado,  no 
seu  interessante  artigo  do  In  Memoriam,  escripto  com  a 
probidade  moral  e  litteraria,  que  sempre  o  distinguio. 
Muito  interessantes  as  surpresas,  a  que  este  se  refere! 
Nessa  reunião,  effectuada  na  casa  que  fica  ao  fundo  da 
rua  dos  Loyos,  e  presidida  por  Anthero,  este  revelou  o 
extraordinário  poder  de  sugestão  da  sua  palavra. 


90 


Logo  no  começo  do  anno  lectivo,  em  21  de  outubro, 
pelas  6  horas  da  tarde,  entrou  em  Coimbra  o  príncipe  real 
de  Itália,  que  depois  foi  Rei  Humberto.  Consta  das  noticias 
da  sua  viagem,  publicadas  no  Diário  do  Governo,  n."^  262. 
Dirigia-se  ao  Porto  a  visitar  os  logares,  onde  passou  os 
seus  últimos  dias  e  onde  morreu  seu  avô,  o  Rei  Carlos 
Alberto. 

A  unificação  da  Itália  e  as  épicas  façanhas  de  Gari- 
baldi, desde  os  annos  anteriores  que  despertavam  o  maior 
enthusiasmo  na  mocidade  de  Coimbra. 

Reuniu-se  uma  assembléa  geral,  no  Theatro  Académico, 
para  ser  nomeada  a  commissão,  que  havia  de  ir  cumpri- 
mentar o  príncipe  italiano  em  nome  da  Academia. 

Contra  a  praxe  de  escolher  só  ursos  (estudantes  pre- 
miados) para  essas  commissôes,  conseguimos,  pelas  dis- 
posições que  tomámos,  calor  e  energia  com  que  gritámos, 
eleger  Anthero  e,  na  quasi  totalidade,  rapazes  do  seu 
grupo. 

Vou  pôr  aqui  a  felicitação,  escripta  por  Anthero,  e 
copiada  por  mim  antes  de  assignada,  transcripta,  prosa 
única,  no  meu  caderno  de  Versos  de  João  de  Deus,  onde 
Vou  buscal-a.  Não  tinha  as  reticencias  e  parenthesis,  que 
lhe  pozeram  no  livro  consagrado  á  memoria  de  Anthero, 
como  —  hão-de  reconhecer  — não  era  próprio,  nem  deli- 
cado. 

Dizia  assim : 

Príncipe  : 

Os  estudantes  da  Universidade  de  Coimbra,  filhos  e  netos  dos 
heróicos  defensores  do  Porto,  saúdam,  em  nome  da  fraternidade  de 
dois  povos  irmãos,  o  neto  de  Carlos  Alberto :  a  mocidade  liberal  por- 
tugueza  saúda,  em  nome  da  liberdade  do  mundo  catholico,  o  filho  de 
Victor  Manuel. 

Á  mocidade  portugueza  não  lhe  soffre  o  coração,  que  não  recorde 
com  saudade  a  memoria  do  heroe  infeliz,  que,  escolhendo  por  ultimo 


91 


leito  uma  terra  de  hoir.ens  livres,  prestou,  ainda  na  morte,  homena- 
gem á  liberdade ;  não  lhe  soffre  o  espirito  impaciente,  ainda  que 
oppresso  por  um  phantasma  do  passado,  que  não  vire  os  olhos  para 
as  bandas  da  luz,  aonde,  no  meio  dos  combates,  se  enlaça  o  braço 
do  rei  com  o  braço  do  povo. 

Não  é  ao  representante  da  casa  de  Sabóia,  que  vimos  prestar 
homenagem  :  é  ao  filho  do  primeiro  soldado  da  independência  italiana, 
esse,  de  quem  os  reis  da  Europa  aprendem  como,  neste  século  ainda, 
se  pode  ser  popular  sendo-se  rei ;  de  quem  a  Itália  espera  resurreição 
completa :  de  quem  espera  a  Igreja  Christã  uma  nova  época  de  verda- 
deira grandeza  e  de  liberdade  verdadeira. 

Aos  votos  da  Europa  intelligente  :  aos  votos  da  Europa  popular ; 
aos  votos  dos  que  trabalham  pela  santa  causa  dos  povos,  unimos  os 
nossos,  sinceros  como  a  nossa  edade,  e  como  ella  cheios  de  muita  fé, 
para  que  a  pátria  de  Garibaldi  possa  rehaver  o  sagrado  património 
da  sua  nacionalidade ;  e  para  que  o  coração  da  Itália,  que  o  é  também 
do  mundo  christào,  pulse  com  egual  energia  pela  liberdade  politica  e 
pela  liberdade  religiosa. 


Pela  forma,  que  ah!  fica,  sem  discrepância  alguma,  foi 
publicada,  logo  depois,  no  n. '  915  do  Conimbricense  e  no 
n.°  247  do  Commcrcio  do  Porto,  do  dia  25  de  outubro  de 
1S62.  Verifiquei  agora. 

.■\  commissào  académica,  que  apresentou  esta  saudação 
ao  príncipe  italiano,  era  composta  dos  seguintes  estudan- 
tes: Anthero  de  Quental  (presidente),  José'  Falcão,  José 
da  Cunha  Sampaio,  José  de  Sá  Coutinho,  António  Ber- 
nardino Cerqueira  Lobo,  Henrique  de  Macedo  Pereira 
Coutinho,  Marianno  Machado  de  Faria  e  Maia  e 
Eduardo  David  e  Cunha.  (1) 


(1)  Entre  esses  nobres  rapazes,  signatários  da  mensagem  ao 
príncipe  italiano,  havia  um  que  não  só  não  estava  filiado  na  Socie- 
dade do  Raio,  mas  quasi  se  podia  considerar  o  chefe  do  grupo,  que 
lhe  era  hostil,  tendo  sido  até,  segundo  as  minhas  impressões  e  lem- 
branças, quem  deu  origem  ao  nome  d'ella.  Era  António  Bernardino 
Cerqueira  Lobo,  estudante  muito  distincto,  segundo  premiado  do 
seu  curso. 

Foi  elle  que,  em  virtude  de  umas  exclamações,  attribuidas  a  An- 
thero e  Germano,  em  tarde  de  trovoada,  começou  a  chamar-lhes  — 


92 


Os  cumprimentos  ao  príncipe  foram-liie  apresentados 
no  dia  22. 

Á  noite,  houve  recita  de  gala  no  The  atro  Académico, 
sendo  estudantes  todos  os  actores. 

O  enthusimo  foi  delirante  quando  um  dos  actores,  o 
estudante  do  5.*^  anno  jurídico  António  Filho  Machado, 
recitou  a  formosa  poesia  de  Anthero,  escripta  para  essa 
recita,   e   que  se   intitula  —  Itália  e   Portugal.  Começa 


assim 


Itália  e  Portugal !  que  duas  pátrias  ! 
Ambas  tão  bellas,  tão  amadas  ambas  ! 
Uma  a  pátria  do  berço ;  outra  a  das  almas 
Uma  a  das  artes  ;  outra  a  dos  combates  ! 


os  do  Raio  e  aos  rapazes  que  conviviam  com  elles  —  a  sociedade  do 
Raio  !  Perfilhou-se  a  denominação. 

D'aquelle  grupo  proveiu,  mais  tarde,  outra  denominação.  Passa- 
ram a  chamar-nos  o  grupo  dos  Traças,  isto  é,  pequeninos  bichos  de 
destruição. 

Como  tiniiamos  a  lingua  prompta,  démos-lhes,  alludindo  ao  seu 
conservantismo,  o  nome  de  Os  Sopas. 

Estas  divergências  e  denominações,  que  —  diga-se  em  honra  de 
todos,  —  nunca  chegaram  á  quebra  das  relações  pessoaes,  apparece- 
ram  na  imprensa  académica,  como  pode  ver-se  no  Attila. 


* 

* 


Dos  membros  da  commissão,  que  com  tanta  galhardia,  falou  ao 
príncipe  estrangeiro,  só  vive  um  que  era  então  rapaz  muito  sympa- 
thico  e  estudante  muito  laureado  e  é  e  tem  sido  engenheiro  distinctis- 
simo. 

Marianno  Machado  de  Faria  e  Maia  !  Permitia  Deus  que  a  sua 
vida  se  prolongue  para  continuar  a  honrar  a  geração  académica,  a 
que  pertenceu. 


93^ 

Tinha  versos  como  estes: 


Quem  derruba,  sobranceiro, 
Altos  colossos  por  terra? 
Quem  é  que  faz  d'uma  guerra 
A  festa  do  mundo  inteiro? 
Um  homem? 

Não! 

A  Justiça? 
Deus!  o  único  juiz 
Dos  povos  na  grande  liça! 


Anthero  e  Fialho  Machado  foram  depois  ao  camarote 
do  principe,  que  lhes  agradeceu  e  apertou  muito  a  mão. 


Foi  em  novembro,  e  não  em  uma  noite  de  maio  ou 
junho,  o  que  collocaria  o  acontecimento  no  anno  lectivo 
anterior  (como  inexactamente  se  diz  a  pag.  151  do  In  Me- 
moriam) que  se  realizou  a  primeira  manifestação  da  socie- 
dade do  Raio;  e  não  a  propósito  da  volta  de  Lisboa  do 
deputado  Bernardo  de  Albuquerque,  como  também  com 
esquecimento  se  diz.  Não  foi  este  que  chegou  de  Lisboa, 
mas  a  noticia  da  sua  nomeação  de  professor  da  Universi- 
dade, que  tem  a  data  de  27  de  novembro  de  1862,  como 
consta  do  Diário  do  Governo  e  do  Anmiarío  da  Univer- 
sidade de  1901  a  1902  (1). 

E'  que,  com  verdade  ou  sem  ella,  tinha  corrido  que  o 
reitor  era  hostil  a  este  candidato  e  que  desejara  que  elle 


(1)  Veja-se  a  nota  4.'''. 


94 


fosse  preterido  no  concurso,  filiando-se  essas  animosi- 
dades na  critica  por  elie  feita  á  decisão  dos  decanos, 
que  impoz  a  pena  de  expulsão  perpetua  a  Vieira  de 
Castro. 

Por  isso  os  dirigentes  da  sociedade  resolveram  que 
fossemos,  em  grande  manifestação,  felicitar  o  noVo  pro- 
fessor pela  sua  nomeação. 


Passou-se  isto  nos  últimos  dias  de  novembro.  Era  um 
ensaio.  Pouco  mais  de  uma  semana  depois  se  realizou  o 
grande  acto,  em  8  de  dezembro. 

Esse  acto  consistiu  na  assistência,  com  todo  o  socego 
e  compostura,  á  solemnidade  da  distribuição  dos  prémios 
na  Sa/a  dos  Capellos,  sendo  ouvido,  com  fingida  atten- 
ção,  o  longo  discurso  do  decano;  mas  voltando  as  costas 
e  sahindo  da  sala,  logo  que  o  reitor,  Basilio  Alberto, 
começou  a  falar  lendo  o  discurso  preparado  para  a 
occasião. 

O  caso  fez  ruido  e  teve  diversas  apreciações. 

O  manifesto  ao  paiz,  explicando-o,  e  tomando  a  res- 
ponsabilidade do  acto,  de  que  Anthero  foi  auctor  e  pri- 
meiro signatário,  é  um  documento  notabilissimo,  que  ainda 
hoje,  apezar  da  fria  velhice,  me  honraria  de  tornar  a  assi- 
gnar,  feitas  algumas  poucas  restricções,  que  uma  maior 
experiência  e  uma  menor  ignorância  me  levariam  a  fazer. 


Este  movimento  de  espíritos  foi  iniciado,  no  anno  an- 
terior, por  aquelles  bellos  versos,  que  Fialho  Machado, 
em  maio  de  1862  também  recitava,  nos  quaes  o  actor  Si- 
mões era  apenas  o  pretexto  para  esse  verdadeiro  hymno 
do  nosso  sentir. 


95 
Qual  de  nós,  d'esse  tempo,  se  não  lembra  d'elles 

O  sol  do  bello  a  todos  alumia ! 
Sua  aureola  cinge  cada  fronte. 
Bem  como  o  rei  do  dia,  mal  desponte, 
Dá  luz  egual  a  todo  o  ser  creado! 
Esse  baptismo  sancto  envolve  e  lava 
Todos  na  mesma  onda  inspiradora! 
Queima  com  a  mesma  chamma  abrazadora. 
Orvalha  em  egual  pranto  derramado ! 
Juntas  as  almas,  que  o  sentir  enlaça, 
Commungam,  como  irmãs,  na  mesma  taça. 


São  da  mesma  épocha  a  Beaticc  e  o  Fiat  Lux.  E 
ainda  aquelles  versos  de  tão  delicado  lyrismo,  que  tanto 
enthusiasmo  produziam,  quando  a  elegante  actriz,  a  quem 
foram  dedicados,  os  cantava  no  Thcatro  de  D.  Luiz. 

Quem  é  que,  n'esse  tempo,  não  trazia  nos  ouvidos  a  mu- 
sica d'estes  versos : 

O  beijo 

Pudesse  eu  nesses  teus  lábios, 
Filha!  dar-te  beijos  mil! 
Dar-te  a  morbidez  do  afago 
A  esse  teu  collo  gentil, 
Pudesse,  estrella  dourada, 
Arrancar-te  ao  ceu  de  anil ! 
Roubar-te,  cordeira  branca, 
E  trazer-te  ao  meu  redil. 

Eu  tenho  a  luz  dos  meus  olhos 
No  brilho  do  teu  olhar! 
Gemma!  Pérola!  Espelho! 
Onde  me  estou  a  mirar ! 
Tenho  tudo  isso,  tenho! 
Não  me  posso  contentar ! 
Meu  sonhado  paraíso 
Era  essa  bocca  beijar ! 


96 


Que  trovoada  de  palmas  quando  a  actriz,  que  tinha 
uma  agradável  voz  e  um  collo  gentil,  como  dizem  os  ver- 
sos,—t'o//o  de  garça  como  a  linda  Ignez,  —  acabava  de 
cantar! 

Falieceu.  ligada  a  familia  illustre,  ainda  não  ha  muito, 
rica  e  avó ! 

Sic  transiu  gloria  mundi! 


VI 


Sua  piedade  pela  mulher 


Anthero  tinha  uma  grande  piedade  pela  mulher.  Não 
menor  do  que  a  de  Michelet,  que  elle  tanto  admirava. 
Era  muito  apreciado  por  elle  o  La  Femme  do  grande  es- 
criptor  francez. 

Essa  piedade  era  acompanhada  de  um  sentimento  cava- 
lheiresco de  defesa  e  protecção  pelo  ser  fraco  e  delicado, 
que,  como  diz  Oliveira  Martins,  elle  considerava  o  sym- 
bolo  da  própria  Vida. 

Esse  culto  pela  mulher  manifesta-se  logo  nos  seus  pri- 
meiros annos  de  escriptor. 

Sinto  não  poder  transcrever  aqui  alguns  trechos  de 
dois  bellos  artigos  seus:  um  publicado  nos  Prelúdios  Lit- 
t  erários  e  outro  na  Estreia  LU  ter  ária. 

Intitula-se  o  primeiro  A  educação  da  mulher  e  o  se- 
gundo A  influencia  da  mulher  na  civilisação,  reprodu- 
zidos ambos  na  Bibliotheca  da  Aurora  do  Cavado. 

Contarei  um  facto  presencial.  Acompanhava-o,  uma 
noite,  por  uma  rua  de  Coimbra.  Em  certa  casa  habitada 


97 


por  casal,  que  nos  era  inteiramente  desconhecido,  senti- 
mos ralhar  e  depois  o  choro  de  uma  mulher. 

Suppozemos  que  o  homem  a  maltratava.  Anthero  com- 
moveu-se  logo  extraordinariamente!  Quiz  intervir!  Quiz 
bater  á  porta!  Queria  entrar,  queria  proteger  a  mulher, 
que  ali  chorava!  Tremia!  Custou-me  a  contel-o!  Era  uma 
desconhecida !  Se  fora  uma  sua  irmã,  que  ali  estivesse 
sendo  victima,  não  ficaria  mais  agitado!  Não  lhe  desper- 
taria maior  sensibilidade! 

Era  Um^-^Jgar  contenda  entre  esposos  de  certa  es- 
phera,  que  logo  se  apasiguou.  Restabeleceu-se  o  silencio. 
Mas,  só  passado  algum  tempo,  só  depois  de  bem  assegu- 
rado de  que  uma  mulher  não  estava  ali  sendo  victima  de 
maus  tratos,  é  que  consegui  arrancal-o  daquelle  logar. 


Contarei  um  outro  caso,  que  fez  ruído  no  meio  aca- 
démico. A  elle  se  faz  uma  escura  referencia  no  In  Memo- 
riam, e  merece  ser  conhecido  em  todas  as  suas  circums- 
tancias. 

Esse  caso  deu  origem  a  uns  formosíssimos  Versos 
bastante  desconhecidos.  Foram  depois  publicados  nas 
Primaveras  Românticas,  livro  muito  difficil  de  encontrar, 
e  estão  disfarçados  com  o  titulo  Une  femme  qui  tombe, 
que  não  era  o  primitivo.  Este  era  Ermelinda.  Para  bem 
apreciar  essa  formosíssima  poesia  é  preciso  conhecer-lhe 
toda  a  historia. 

Vou  contal-a: 

Anthero  foi  sempre  —  como  com  verdade  escreveu 
Vasconcellos  Abreu  —  uma  alma  pura  e,  em  toda  a  sua 
Vida,  um  idealista. 

Posso  unir  o  meu  testemunho  aos  invocados  por  Souza 
Martins  para  confirmar  a  apreciação  de  que  elle  não 
amava  com  interesse  da  posse;  amava  divinisando  a 
mulher. 

7 


98 


Uma  tarde,  dois  amigos  obrigaram-no  a  uma  apresen- 
tação a  uma  infeliz  rapariga,  recentemente  chegada  a  uma 
casa  da  Couraça  dos  Apóstolos.  Não  era  essa  infeliz 
destituida  de  dotes  de  beileza.  Chamava-se  Ermelinda. 

Antfiero,  mantendo-se  tímido,  conservou  para  com  a  des- 
venturada toda  a  innocente  delicadesa  da  sua  alma  de  poeta. 

Entrementes  ahi  appareceu  Vieira  de  Castro,  que  tinha 
temperamento  e  hábitos  muito  differentes.  Fez  e  disse-lhe 
cousas  Varias.  A  desgraçadinha  ainda  não  tinha  perdido 
inteiramente  o  pudor  de  mulher.  Saltaram-lhe  as  lagrimas  1 
Anthero  commoveu-se  e  fugiu  logo  d'aquella  casa! 


Na  mesma  noute  escreveu  os  versos,  que  poucos  dias 
depois  appareceram  no  Attila,  jornal  litterario  de  Rodrigo 
Velloso,  com  o  titulo  Ermelinda  e  uma  carta  dirigida  ao 
redactor  d'esse  jornal. 

Para  aqui  transcrevo  a  carta  e  os  Versos,  taes  como 
foram  publicados : 

Sr.  Redactor  (1) 

Peço-lhe  a  publicação  dos  versos  que  seguem.  É  a  poesia  mais 
sancta  que  jamais  escrevi,  porque  se  chama  consolação,  e  segura- 
mente a  mais  bella,  porque  é  uma  boa  acção. 

Não  sei,  nem  já  agora  espero  sabê-lo,  para  que  bandas  do  hori- 
sonte  fica  o  ceu,  que  Deus  nos  guarda.  Mas  deante  da  fatalidade  que 
a  terra  prende  á  barra  do  vestido  de  certas  mulheres,  como  um  lodo 
pesadíssimo,  que  as  puxa  para  baixo  a  cada  hora  e  as  calca  n'estes 
chafurdes  da  vida;  deante  d'esse  mysterio,  a  alma  vê  claro,  dentro  em 
si,  o  que  os  olhos  da  cara  não  alcançam ;  e  no  escuro  brilha  uma  luz. 


(1)  Tem  nota  no  fim. 


99 

como  nenhum  ceu  de  primavera  a  teve  jamais, —  a  luz  da  primavera 
das  almas,  chamada  esperança! 

No  meio  da  impotência  dos  systemas  dos  philosophos  e  das  reli- 
giões dos  theologos,  a  immortalidade  aparece,  como  uma  aurora  infi- 
nita, em  uma  pequena  gotta  de  agua,  n'uma  lagrima  de  mulher! 

Chega-se  á  crença  pelo  soffrimento.  porque  só  elle  nos  pode  dar 
a  impressão  profunda  da  necessidade  de  uma  compensação,  o  senti- 
mento da  justiça.  É  isto  exactamente  o  que  os  systemas  não  dão.  Se 
Christo  tivesse  philosophado  á  maneira  de  Hegel,  em  face  das  dores 
do  seu  povo,  não  passaria  o  seu  nome,  hoje,  de  um  d'esses  muitos  que 
lemos,  ou  antes  não  lemos,  nos  in-folios  que  tratam  de  archivar  as  ar- 
gucias  do  espirito  humano  para  riso  das  pessoas  das  gerações  futuras. 

Chorou,  sentiu,  soffreu  com  os  mais  tristes  e  os  mais  mesqui- 
nhos; é  por  isso  que  foi  Christo. 

Ha-de  parecer-lhe  extranho,  sr.  Redactor,  que  seja  eu  (que  ha 
tanto  tempo  perdi  o  nome  de  christão)  que  venha  falar  destas  cousas 
em  terra  onde  ha  tantos  e  tão  bons  I 

Que  quer?  este  século  é  um  paradoxo,  e  até  na  minha  fraca 
pessoa  quer  ter  mais  uma  prova  d'este  espirito  de  contradicção. 

Depois,  sr.  Redactor,  nós  outros,  os  excommungados,  quando 
nos  expulsam  da  Igreja,  temos  a  consolação  de  encontrar  á  porta  o 
christianismo,  o  que  nos  abre  o  seio  para  n'elle  escondermos  a  cabeça 
carregada  de  duvidas,  magoada  de  incertezas  e  dores  sem  conta.  Fi- 
cam-se  os  sacerdotes  e  os  eleitos  da  Fé  com  os  seus  templos,  os  seus 
altares,  a  sua  consideração  e  as  suas  prebendas,  nós  com  Jesus 
Christo.  Não  tendo  já  direito  de  vêr  e  amar  a  Deus  na  pedra  das 
aras,  na  lettra  gothica  dos  missaes,  ou  na  penumbra  dos  confissiona- 
rios,  soletramos  o  Evangelho  nos  olhos  dos  tristes;  e  palpamos  o 
vasto  coração  do  Nazareno  dentro  dos  peitos  que  as  tristezas  da 
terra  encheram  das  infinitas  esperanças  do  ceu. 

Isto  traz-me  ao  assumpto  d'estas  linhas. 

Eu  ouvi  uma  manhã  d'estas  falar  (1)  do  Christianismo,  como  um 
douctor  da  Igreja  (ou,  ao  menos,  como  um  doutor  da  Universidade)  a 
um  homem,  cuja  certidão  de  felicidade  lhe  anda  estampada,  desde  as 
faces  ao  ventre,  na  sanguínea  redondesa  de  uma  personalidade  de 
Imperador  Romano  de  outros  tempos,  ou  deputado  de  hoje,  o  que 
julgo  ser  tudo  um. 

Fêz-me  pasmar  aquillo!  Admirei,  na  minha  humildade,  o  século 
em  que  os  apóstolos  do  Christo,  sellada  emfim  a  paz  entre  o  corpo  e 
o  espirito,  podem  já  crear  ventre  e  faces  floridas  de  Pangloss,  sem 
que  com  isso  nada  percam  da  sua  seraphica  sublimidade. 

A'  noite,  esse  mesmo  apostolo  fazia  corar  uma  mulher  publica 

(1)  Refere-se  a  umma  licção  dada  em  uma  aula. 


100 


com  a  irritante  descripção  de  certos  refinados  prazeres,  que  nada 
deixariam  a  invejar  aos  da  Roma  de  Juvenal,  se  não  fossem  infinita- 
mente menos  grandes  e  infinitamente  mais  porcos. 

Comprehendi  então  o  Christianismo  d'estes  martyres  barrigudos! 
E,  como  já  disse,  é  forçoso  que  em  tudo  apareça  o  paradoxo  do  sé- 
culo, entendi  eu.  emfim,  que  era  á  minha  impiedade  que  competia 
ensinar  a  estes  christamões  que  as  azas  com  que  se  vôa  ao  ceu,  tanto 
as  podem  ter  hombros  vestidos  de  setim,  como  com  vestidos  de  chita 
de  pataco ;  que  fazer  chorar  os  que  um  destino  mau  curva  até  o  chão 
é,  alem  de  dureza,  cobardia  excessiva;  e  que,  emfim,  o  respeito  de- 
vido á  mulher  tem  de  se  medir  na  proporção  da  infelicidade  d'ella, 
e  nunca  na  da  desconsideração  que  lhe  possa  dar  este  estúpido  mun- 
do, onde  em  trevas  vamos  expiando  não  sei  quaes  escuras  culpas  de 
outro  passado  mysteriosissimo. 

Não  querem  dizer  outra  cousa  os  versos  que  se  seguem. 


Coimbra,  6  de  fevereiro  de  1864. 


Anthiíro  de  Quental. 


Ermelinda 


. .  .tinefemme  qui  tombe! 
V.  H. 

Ao  meu  amigo  J.  F.  {}) 


Quem  te  deitou,  innocente. 
Tremendo  de  frio  e  dôr. 
Sobre  o  monturo  da  vida. 
Como  cousa  sem  valor ; 

E  essa  face  dolorida 
Te  fez  empallidecer 
Com  o  olhado  da  miséria 
Com  o  beijo  do  soffrer ; 

Pôde  gelar-te  esses  membros, 
Encher-te  de  palidez ; 
Furtar-te  o  chão  da  existência. 
Cada  hora  de  sob  os  pés ; 


(1)  José  Falcão. 


101 

Mas  o  que  essa  mão  não  pôde, 
Com  a  gelada  pressão, 
Foi  tirar-te  o  dom  das  lagrimas 
Foi  seccar-te  o  coração  ! 

Chora,  pois  !  Deus  vê  as  almas  ! 
O  mais  é  cousa  mortal ! 
Vê-as  só,  quer  os  ais  saiam 
Do  palácio  ou  do  hospital ! 

Sua  mão,  se  faz  estrellas, 
É  de  almas  que  anda  a  colher  ! 
Se,  pois,  o  espirito  sobe, 
Bem  pode  o  corpo  descer  ! 

Que  importa  onde  os  pés  se  firmem, 
Se  é  porque  o  olhar  se  erga  á  luz  ? 
Bem  podre  é  o  chão  dos  mortos 
E  mais  lá  se  hasteia  a  cruz  ! 

Como  aos  poços  mais  sombrios 
Chega  um  raio  de  luar. 
Podem  também  nascer  lyrios 
Á  porta  de  um  lupanar; 

E  os  seios  que  o  mundo  compra, 
Em  crapuloso  leilão, 
A  que  preside  a  miséria. 
Podem  ter  um  coração  ! 

Temos  todos  Visto,  ás  vezes, 
Sahir  uma  luz  ideal 
De  cabeças  que  se  encostam 
Na  enxerga  de  um  hospital ! 

Ah  !  deixa  correr  teu  pranto 
Sobre  o  chão  do  lupanar  ! 
É  sementeira  de  dores 
Que  andas  triste  a  semear  ! 

Que  passe  o  inverno  por  cima  ! 
A  primavera  ha  de  vir  ! 
As  dores  que  tu  semeias 
É  no  ceu  que  hão-de  florir  ! 


102 

Lá  são  contadas  as  lagrimas 
Que  aqui  se  vão  a  chorar  I 
Por  baixo  de  nossos  olhos 
Anda-as  Deus  sempre  a  aparar  ! 

Eu  creio  na  Providencia  I 
O  tronco  sêcco  da  Cruz 
Rebenta  no  Paraiso. 
Para  dar  flores  e  luz  I 

As  faces  que  empallidecem 
Ha-de  Deus  ainda  corar 
Com  o  reflexo  dos  cyrios 
Que  ardem  lá  no  seu  altar  ! 

E,  se  os  olhos  se  anuviam 
Escurecendo-se,  Deus 
Faz  dos  escuros  da  terra 
A  aurora  eterna  dos  Céus  I 


Que  sopro  de  espiritualismo  religioso  e  de  superiori- 
dade moral  perpassa  n'esses  versos!  Que  sancta  tolerân- 
cia! Que  doce  caridade! 

Não  seriam  muito  outras  as  palavras  com  que  o  su- 
blime Nazareno  socegou  o  espirito  perturbado  da  pe- 
cadora Maria  de  Magdala! 


Vil 


Espiritualista  eram  para  elle  abomináveis  todas  as 
abjecções  do  materialismo-. 

A  sua  alma  pairou  sempre  nas  regiões  sublimes  da  Fé, 
da  Esperança  e  do  Amor! 


103 


A  mulher  merecia-lhe  culto  como  fonte  do  amor  e  da 
vida! 

A  cada  passo  se  encontra  este  sentimento  nos  seus 
versos.  Só  teríamos  difiiculdade  na  escolha. 

Mas  nào  resistimos  a  trazer  para  aqui  algumas  das 
estrophes,  tão  sentimentaes  e  tão  bellas,  da  Beatrice: 


Bem  como  a  gota  d'agua  ao  pobre  insecto  inunda, 
Inundem-me  d'amor  teus  olhos  —  ceu  e  luz  — 
A  quem  pedimos  nós  que  amor  ao  peito  infunda? 
Ao  seu  symbolo  ~  á  cruz  — ! 

Abre-te,  asylo  santo,  único,  eterno  abrigo, 
Ó  seio  virginal,  ó  seio  de  mulher! 
É  mãe,  e  irman,  e  amante!  é  este  o  seio  amigo! 
Eu  quero  inda  viver! 

O  infinito!  Ideal!  Visão,  que  mal  presinto! 
Transfigura-te  aqui!  deixa  cahir  teu  Veu! 
Quero  palpar  e  ver  a  Deus,  n'isto  que  sinto! 
Quero  antever  o  ceu! 

Venham-me  esta  alma  ungir  palavras  do  teu  lábio 
Que  mestre  ha  hi  que  valha  um  lábio  de  mulher? 
Que  livro  folheou  o  Christo,  o  maior  sábio? 
Quero  a  vida  aprender! 

Coração!  coração!  eia!  resurge!  vive! 
Ja  pôde  á  voz  do  amor  um  morto  resurgir  .  .  . 
E  tu  não  te  has  de  erguer,  ó  coração  que  tive? 
Quero  ainda  sentir! 

Afunde-me  no  mar  da  vida  pelo  affecto; 
Quero  sentir-lhe  a  vaga  em  mim  tumultuar: 
—  De  vida  o  occeano  é  pae,  de  vida  anda  repleto 
O  amor!  que  immenso  mar! 

Irman!  dá-me  do  manto  alvíssimo  uma  ponta. 
Onde  me  involva  todo- um  raio  d'essa  luz  .  .  . 
Não  é  a  cruz  quem  vê  o  dia  mal  desponta? 
Tu  és  a  minha  cruz. 


104 

Oh!  vem!  se  ás  maguas  ando  á  muito  affeito, 
Junctos  podemos  contra  a  dor  luctar: 
Não  podem  maguas  contra  um  peito  amigo  .  .  . 
Oh!  Vem,  que  eu  soffro!  vem  soffrer  comigo .  .  . 

E  então  meu  peito, 

Ha  de  acalmar! 

Se  soffres,  soffro:  quem  não  pisa  abrolhos? 
Quem  rosas  colhe  sem  lhe  a  mão  sangrar? 
Mas,  quando  a  angústia  me  negar  conforto 
D'um  pranto,  ao  menos,  a  meu  peito  absorto 

Volve  teus  olhos  .  .  . 

Hei  de  chorar ! 

Oh!  vem!  que  eu  soffro!  vem  trazer-me  a  calma, 
Que  anhelo  e  busco  no  teu  puro  olhar! 
Se  a  minha  estrella  se  apagar  sumida, 
Oh,  surge,  surge,  no  meu  ceu  da  vida  .  .  . 

E  então  minha  alma  .  .  . 

Ha  de  exultar! 


Sabendo-se  que  esse  formosíssimo  poemeto  da  Bea- 
trice  foi  uma  das  producções  que  elle  quiz  depois  destruir 
e  fazer  desapparecer,  pode  calcular-se  quantas  preciosi- 
dades perdidas! 


VIII 


Ainda  em  Coimbra 


Anthero,  assim  como  o  seu  companlieiro  Eduardo  de 
Andrade,  completaram  a  formatura  no  fim  do  anno  lectivo 
de  1863—1864. 


105 


Mas  ainda  no  anno  seguinte  continuou  a  residir  em 
Coimbra,  na  companhia  de  José  Sampaio  e  Frederico  Phi- 
lemon,  morando  na  casa  da  rua  do  Borralho,  que  faz  es- 
quina para  a  rua  da  Trindade,  do  lado  superior,  á  direita, 
descendo. 

E'  n'essa  casa  que  elle  escreveu  a  Defeza  da  Car- 
ta Encyclica  de  sua  Santidade  Pio  IX. 

Sempre  pensador  e  sempre  poeta,  é  n'essa  casa  que 
escreve,  ou  burila  muitos  dos  seus  sonetos.  Havia  já  a 
edição  de  vinte,  feita  por  Santos  Valente  em  1861,  prece- 
dida de  uma  brilhante  prosa  de  auctor  d'elles.  Foi  apenas 
tirado  um  muito  limitado  numero  de  exemplares  para  dis- 
tribuir pelos  amigos. 


Anthero  era  um  conversador  de  raro  encanto !  Con- 
versando, a  phantasia  de  poeta  não  lhe  fazia  perder  a 
clara  Visão  das  cousas !  Punha  as  questões  com  a  mais 
perfeita  e  admirável  clareza  e  nitidez.  Dahi  a  irresistível 
seducção  da  sua  palavra. 

Aspirando  a  um  mundo  melhor,  era  um  propheta,  um 
vidente,  um  apostolo ! 

Parecem  feitos  para  elle  os  bellos  versos  de  Victor 
Hugo : 

Le  poete  en  des  jours  impies 
Vient  préparer  des  jours  meilleurs, 
II  est  rhomme  des  utiipies 
Les  pieds  ici,  les  yeux  ailieurs. 
Cest  lui  qui  sur  toutes  les  têtes, 
En  tous  temps,  pareil  aux  prophètes, 
Dans  sa  main,  oii  tout  peut  tenir, 
Doit,  qu'  on  Tinsulte,  ou  qu'on  le  loue, 
Comme  une  torche  qu'il  secoue, 
Paire  flamboyer  Tavenir  !  (1) 


(1)  Les  Rayons  et  les  Ombres,  Function  du  Poete. 


106 


As  suas  máximas  de  probidade  moral  e  probidade  lit- 
teraria,  que  eram  inseparáveis  para  elle,  exprimia-as,  no 
fim  d'esse  anno  de  1865,  pela  forma  seguinte: 

«A  condição  da  grandeza,  da  belieza,  da  bondade,  a 
«primeira  e  indispensável  condição  não  é  o  talento,  nem 
«a  sciencia,  nem  a  experiência;  é  a  elevação  moral, 
«a  virtude  da  altivez  interior,  a  independência  da  alma,  a 
«dignidade  do  caracter.  Porque  a  intelligencia  dos  hábeis, 
«dos  grandes,  dos  espertíssimos  é  muitas  vezes  cega  em 
«lhe  faltando  uma  coisa  bem  pequena,  que  se  encontra 
«nos  simples  e  humildes,—  a  boa  fé.» 

Isto  escrevia  n'aquella  admirável  caria  —  Bom  senso  e 
Bom  gosto,  que  é  o  Evangelho  da  dignidade  litteraria,  com 
que  levantou  a  celebre  Questão  coimbrã. 

No  principio  do  anno  lectivo  de  1865  a  1866,  em  que 
ainda  esteve  em  Coimbra,  é  por  certo  que  morou  na  casa 
do  Largo  de  S.  João,  a  que  se  refere  Eça  de  Queiroz,  e 
na  qual  estreitou  relações  com  este. 

Os  seus  antigos  companheiros,  e  quem  escreve  estas 
linhas,  tinham  terminado  os  seus  estudos  em  julho  anterior. 


Durante  todo  esse  largo  período  da  sua  vida  de  Coim- 
bra, elle  não  teve  só  o  brilho  do  seu  talento  genial.  Res- 
plandeceu a  luz  da  sua  alta  dignidade  moral.  Foi  um 
paladino  da  honra!  Pelas  suas  lições  e  exemplos  teve 
uma  grande  influencia  na  educação  do  caracter  de  muitos 
homens  da  sua  geração.  Deveria  continuar  a  tê-la! 

E'  também  sobre  este  ponto  de  vista  que  merece  uma 
grande  homenagem  a  sua  memoria! 


107 


X 


Decorreram  viníe  e  dois  annos!  Quantos  trabalhos  e 
luctas!  Quantas  illusões  perdidas!  Quantas  aspirações, 
bem  modestas  e  santtas,  esmagadas!  Quantas  dores! 
Quantos  mares  percoridos:  o  Atlântico,  o  Mediterrâneo, 
o  Mar  Vermelho,  o  Oceano  indico  e  o  Mar  da  China ! 

Pude  dizer! 

Longe  por  esse  azul  dos  vastos  mares, 
Na  soidão  melancholica  das  aguas. 
Ouvi  gemer  a  lamentosa  alcyone, 
E  com  ella  gemeu  minha  saudade !  (1) 

Depois  de  vaguear  pelos  palmares  onde  ruge  o  tigre, 
recolhi  á  pátria;  mas,  quando  julgava  ter  entrado  no  ambi- 
cionado porto  amigo,  foi  ali  que  se  me  levantou  uma  des- 
caroavel  tempestade!  Fugindo-lhe,  em  busca  de  alguma  paz 
para  o  meu  espirito,  torturado  pela  infernal  doença  que  a 
crise  moral  provocou,  fui  acolher-me  ás  praias  açorianas! 

Cheguei  a  Ponta  Delgada  no  dia  25  de  julho  de  1887. 
Passados  dois  ou  três  dias,  fui  a  bordo  do  paquete  Açor 
para  me  despedir  de  uns  companheiros  de  hotel  e  dos  ser- 
viços que  professávamos,  os  quaes  partiam  para  o  conti- 
nente. 

Entrando  na  camará  do  paquete,  deparou-se-me  ines- 


(1)  Garrett,  Camões,  canto  V 


108 


peradamente  Anthero  de  Quental,  que  conversava  muito 
attentamente  com  o  distincto  professor  e  causidico  michae- 
lense,  o  sr.  dr.  Aristides  Motta,  que,  n'esses  momentos, 
unicamente  o  acompanhava. 

Olhando-me,  reconheceu-me  logo  !  Apertámos  as  mãos. 
Dada  a  explicação  da  minha  estada  alli  e  ouvindo-lhe  a  de 
que  ia  regressar  ao  continente,  afastei-me  para  que  prose- 
guissem  na  conversação  interrompida  por  minha  causa. 

Pouco  depois,  o  paquete  lavantaVa  ferro  e  de  novo 
apertámos  as  mãos. 


No  Verão  de  1890,  fui  viver  para  o  Porto. 

Um  amigo  muito  querido,  que  accidentalmente  ali  se 
encontrava,  disse-me  um  dia  que  ia  a  Villa  do  Conde  visi- 
tar um  parente.  Disse-lhe  que  o  acompanhava  para  visitar 
Anthero  de  Quental. 

Chegado  lá,  foi  mostrar-me  a  casa  do  poeta  e  commigo 
entrou  n'ella  o  digno  juiz  da  comarca,  antigo  condiscípulo 
de  Anthero,  o  sr.  dr.  Manoel  Alves  da  Silva,  hoje  juiz  de 
segunda  instancia  aposentado. 

Recebeu-me  com  a  sua  grande  e  doce  bondade.  Fal- 
lando-lhe  da  sua  encantadora  ilha,  disse-me  que  breve 
para  lá  iria  e  definitivamente. 

«As  minhas  pupilas  — acrescentou  — já  completaram  a 
•^sua  educação;  e  por  isso  já  não  tenho  que  fazer  cá  no 
«^^ continente.  Julgo  o  meio  da  minha  terra  mais  adequado 
«para  ellas.» 

Sancta  alma !  As  suas  pupilas  eram  as  duas  filhas  ille- 
gitimas  de  Germano  Vieira  Meyrellesl  Nasceu  uma  já 
depois  de  morto  o  pae. 

Alberto  Sampaio  tratou  de  prover  á  subsistência  da 
mãe  e  levou  a  menina,  que  já  era  nascida,  para  a  sua  com- 
panhia. Mas  Anthero  disputou-lha.  Não  cedeu,  e  tomou 
conta  de  ambas!  Creou-as,  educou-as  como  suas  filhas! 
Legou-lhes   a   maior   parte   dos  seus  modestos  haveres! 


109 


Que  belleza  moral  a  d'estes  dois  homens! 

Morto  o  amigo,  não  disputam  a  successão  dos  seus 
bens,  dos  seus  direitos  ou  interesses,  como  é  commum  e 
todos  os  dias  se  vê ! 

Disputam  substituil-o  nos  onerosos  encargos  e  obriga- 
ções de  pae! 

Disputam  a  entrega  de  duas  pobres  creanças,  que  só 
teem  por  si  uma  mãe  desvalida  e  sem  nome,  que  elles 
protegem  até  á  sua  morte! 

Que  lealdade  de  affectos  prolongada  além  da  vida  e 
até  taes  extremos! 

Que  raro  exemplo  moral  d'essa  lealdade  dado  a  tanta 
gente,  que  engeita  as  obrigações  do  sangue;  ou  se  serve 
dos  laços  doeste  para  melhor  occultar  a  hypocrisia  dos  affe- 
ctos e  perfidamente  effectivar  a  traição  d'elles  e  os  abusos 
da  boa-fé! 


Sahindo  de  casa  do  poeta,  poucos  passos  andados, 
encontrei-me  com  o  amigo,  que  me  tinha  acompanhado  do 
Porto  a  Villa  do  Conde,  o  qual  era  funccionario  distinctis- 
simo  em  Ponta  Delgada,  com  talento,  coração  e  alma, 
que  o  tornavam  um  grande  admirador  de  Anthero. 

Ambos  lastimámos  a  resolução  d'este ! 

Mal  pensávamos,  inda  assim,  que,  volvido  pouco  mais 
de  um  anno,  os  nossos  tristes  receios  se  haviam  de  cum- 
prir e  que  elle,  com  a  sua  palavra,  elegante  e  sentida, 
seria  um  dos  que,  junto  da  sepultura  aberta  para  receber 
o  corpo  inanimado  de  Anthero  de  Quental,  em  nome  de 
tantos  admiradores  ausentes,  lhe  havia  de  dizer  o  ultimo 
adeus  (1). 


(1)  Tem  nota. 


110 


E  mal  pensava  eu  então  que  esse  amigo  querido,  mais 
breve  do  que  eu  podia  suspeitar,  havia  também,  não  longe 
da  sepultura  do  poeta,  dormir  o  somno  eterno  n'esse  triste 
cemitério  de  S.  Joaquim ! 


Anthero  de  Quental,  1887 


Para  a  campa  de  Anthero  escreveu  Joào  Deus  o  único 
epitaphio,  que  era  digno  delle: 


Aqui ...  jaz  po ;  eu  não ;  eu  sou  quem  fui 
Raio  animado  de  uma  luz  celeste, 
Á  qual  a  morte  as  almas  restitue, 
Restituindo  á  terra  o  pó  que  as  veste. 


NOTA    1." 
Cartas  de  Alberto  Sampaio  e  Anthero  de  Quental 

/mo    ^    X^   Uy^-^L^^    e,^,.^.cj^y^^^^j^  ^i^-^  '^'--^   t>-,-^^ 
y  ít-»^  cx^£~  í>^-<- . 


112 


^^  ^ — • 


113 


NOTA   2. 


Rodrigo  Velloso 


Este  era  o  redactor  do  Attila,  a  quem  Anthero  dirigiu  a  carta 
de  6  de  fevereiro  de  1864  e  pediu  a  publicação  dos  versos  a  Erme- 
linda. 

Fundador  e  redactor  do  Phosphoro,  do  Tira-Teimas  e  do  Attila, 
auctor  de  um  livro,  n'essa  epocha  publicado,  que  tem  o  titulo  de 
Folhas  ao  Vento,  Rodrigo  Velloso  era  um  rapaz  de  muito  talento, 
illustração,  graça  e  espirito,  como  revelou  em  todas  essas  publicações. 

Nosso  adversário  nas  questões 
académicas  em  que  andamos  empe- 
nhados, isso  o  afastava  da  nossa  con- 
vivência, mas  foi  sempre  e  inalte- 
ravelmente um  grande  admirador  de 
Anthero  e  um  dos  que  depois  mais 
fez  pela  gloria  do  seu  nome,  repro- 
duzindo-lhe  os  escriptos  dos  tempos 
académicos  na  sua  interessante  Bi- 
bliotheca  da  Aurora  do  Cavado. 

Estudante,  advogado,  notário, 
nunca  deixou  de  ser  periodista! 

Teve  sempre  um  jornal  seu!  Em 
Coimbra  fundou  e  redigiu  aquelles 
três  jornaes  litterarios.  Depois  de  sa- 
hir  de  Coimbra,  e  ainda  vivendo  em 
Lisboa,  manteve  sempre  a  Aurora  do 
Cavado,   de   Barcellos,    e  o  Boletim 

Notarial  e  Forense,  sustentados  á  custa  de  muitos  sacrifícios,  e  que 
são  repositório  interessantíssimo  da  sua  grande  illustração  e  das 
suas  qualidades  affectivas. 

Distinguindo-se  por  notáveis  aptidões  e  por  dotes  de  palavra, 
como  orador  forense,  tinha,  como  máxima  qualidade,  a  bondade! 

Esta  e  a  terrível  doença  de  uma  impenetrável  surdez  lhe  causa- 
ram as  maiores  difficuldades  da  sua  Vida,  que  não  foi  prospera  e  bri- 
lhante, como  elle  merecia  por  talento  e  virtudes. 

Trabalhou  e  amou  as  lettras  até  á  ultima  hora  da  sua  existência. 

Teve  a  paixão  dos  livros!  Sacrificava-lhes  tudo:  até  a  sua  pró- 
pria subsistência  e  a  da  sua  virtuosa  família! 


Rodrigo  Velloso 


114 

A  sua  enorme  livraria,  ein  que  empregou  muito  mais  de  uma 
dezena  de  contos  de  réis  ahi  se  tem  vendido  ao  desbarato! 

Ao  que  escreve  estas  linhas  consagrou,  desde  os  dias  da  moci- 
dade até  aos  últimos  da  sua  Vida,  a  mais  affectuosa  e  leal  amisade! 

Foi  um  bom,  um  trabalhador  e  um  crente! 

Todos  os  que  o  poderam  conhecer  prestam  o  merecido  culto  á 
sua  nobre  e  honrada  memoria! 


115 


NOTA  3/ 


Júlio  Pereira  de  Carvalho  e  Costa 


Este  era  o  amigo,  que  me  acompanhou  a  Villa  do  Conde,  e  que, 
com  a  commoção,  que  em  carta  me  traduziu,  foi  um  dos  que  disse  o 
ultimo  adeus  a  Anthero  de  Quental, 
em  nome  de  tantos  amigos  e  admira- 
dores ausentes. 

E  ninguém  tinlia  mais  qualidades 
para  ser  o  interprete  de  todos  nós! 

Era  homem  de  excepcionaes  fa- 
culdades! Procurador  régio  juncto  da 
Relação  de  Ponta  Delgada,  magis- 
trado integro  e  de  grande  illustra- 
ção;  jurisconsulto;  orador;  jornalista; 
amante  da  poesia  e  da  musica;  cultor 
delicado  da  pintura;  alma  de  artista, 
alma  nobilissima;  coração  apaixonado 
do  bem  e  do  bello,  e  que  não  o  po- 
dia haver  melhor! 

Tendo,  por  mais  de  uma  vêz,  per- 
corrido as  pr  inci  pães  cidades  da  Europa , 
tinha  a  lição  dos  livros  e  das  viagens. 

Natural  de  Aveiro,  patricio  de  José  Estevão,  uma  das  suas  pai- 
xões era  o  culto  pela  memoria  do  grande  orador. 

Lá  jaz,  perto  de  Anthero,  no  mesmo  cemitério  de  S.  Joaquim  ! 


Júlio  Pereira  de  Carvalho  e  Costa 


Là,  tu  reposes,  toi !  Lã  meurt  toute  voix  fausse. 
Chaque  jour  du  levant  an  couchant,  sur  ta  fosse, 

Promenant  son  flambeau, 
L'  impartial  soleil,  pareil  à  Tespérance, 
Dore  des  deux  côtés,  sans  choix  ni  préférence, 

La  croix  de  ton  tombeau!  (1) 


(1)  Victor  Huoo,  Les  Voix  Iníérieures. 


116 


NOTA   4: 


Esta  nota  volta  atraz !  Retrocede  !  Mas  eu  não  poderia  antepor 
a  sua  matéria  á  das  precedentes. 

É-nie  desagradável  o  que  tenho  a  dizer  n'ella.  Mas,  tendo  tra- 
tado da  vida  de  Antliero  em  Coimbra  ;  tendo  falado  do  circulo  de 
amigos,  que  a  elle  estiveram  ligados  por  um  reciproco  e  grande 
affecto,  não  me  soffre  o  animo  deixar  em  pé,  e  sem  refutação,  umas 
bem  desastradas  affirmaçòes,  que  se  encontram  em  um  artigo  do 
In  Memoriam  (pag.  152  a  pag.  155). 

Tal  artigo,  a  alguns  repeitos,  interessante  e  escripto  por  pessoa 
intelligente,  talvez  porque,  no  largo  decurso  dos  annos,  a  phantasia 
toma,  muitas  vezes,  na  memoria  o  logar  da  verdade ;  e  também  por- 
que o  escriptor  se  deixou  dominar  por  um  pensamento  de  deprimir, 
em  vêz  de  ferir  aquelles  a  quem  quiz  visar,  ferio  a  própria  sagrada 
memoria  do  amigo  illustre,  que  queria  glorificar! 

Que  cousas  tão  extraordinariamente  incríveis  ahi  se  lêem  ! 

Diz-se  que  a  attitude  de  Anthero  e  as  palavras  por  elle  pro- 
feridas na  assemblea  geral  da  Academia,  e  que  levaram  esta,  por 
occasião  da  Rolinada,  a  sahir  de  Coimbra  e  partir  para  o  Porto, 
obedeceram  a  uma  troça,  combinada  com  o  auctor  do  artigo,  e  a  um 
premeditado  desforço  de  Anthero  contra  os  estudantes,  contra  os 
idiotas  (diz  que  assim  lhes  chamou),  que  estavam  apaixonadamente 
empenhados  na  questão  levantada  pelo  indeferimento  do  pedido  de 
perdão  do  acto  em  portaria  do  Duque  de  Loulé,  que  foi  julgada 
grosseira  e  offensiva  da  dignidade  e  brios  da  mocidade  academico- 
conimbricense  d'essa  epocha. 

Diz-se  ainda  que  Anthero,  chegado  do  Bussaco,  acompanhado  de 
António  de  Azevedo  Castello-Branco,  Filomeno  da  Camará  e  do 
auctor  do  artigo,  vendo  Vieira  de  Castro  a  perorar  a  um  grupo,  no 
Arco  de  Almedina,  se  lembrou  de  fazer  a  partida  (aos  idiotas)  e  de  pre- 
parar o  guet-apens  (que  outra  cousa  não  era) !  Que  dirígindo-se  ao 
orador  do  Arco  de  Almedina  lhe  dissera :  «esqueçamos  antigas  inimi- 
sades;  pode  contar  commigo,  que  ponho  á  sua  disposição  tresentos 
homens  e  outras  tantas  claoinas,  o  que  fêz  com  que  Vieira  de  Cas- 
tro, acreditando,  lhe  cahisse  nos  braços. > 

E  que,  indo  depois  á  reunião  da  Academia,  os  três  viajantes  do 
Bussaco  fizeram  produzir  a  deliberação  do  êxodo  portuense! 

Tanto  teria  de  admirar-se  a  pacovice  de  Vieira  de  Castro  como  a 


117 

falta  de  respeito  por  si  próprio,  em  Anthero,  depois  da  recente  carta 
ao  redactor  do  Attla,  a  que  se  cliama  antigas  inimisades !  Estava-se 
em  fins  de  abril.  A  carta  tem  a  data  de  6  de  fevereiro  (pag.  100) !  Uma 
antiguidade  de  dois  mezes  e  tanto ! ! 


Quem  conheceu  Anthero  para  logo  repelle  a  phantasia !  Ninguém 
no  mundo  mais  incapaz  do  papel,  que  lhe  é  attribuido ! 

Como  é  que  aquelle  (quero  agora  empregar  as  altas  e  nobres 
palavras  de  Eça  de  Queiroz)  que  foi  refulgente  espelho  de  sinceridade 
e  rectidão ;  como  é  que  quem  possuia  aquella  alma,  de  nascença  toda 
límpida  e  branca,  que  quando  Deus  a  recebeu,  a  encontrou  tão  lím- 
pida e  tão  branca  como  lh'a  entregara;  como  é  que  quem  tinha 
aquella  lealdade  magnifica,  que  resplandecia  nos  seus  olhos  claros 
como  uma  luz  ás  porias  de  um  sacrário.. .  podia,  premeditadamente, 
traiçoeiramente,  só  pelo  prazer  satânico  de  amesquinhar, 'querer  Tevar 
a  um  despenhadeiro  moral  -  perigosíssimo  para  o  futuro  d'elles — 
tantos  companheiros,  que  lhe  consagravam  a  dedicação  mais  sincera 
e  uma  admiração  incondicional  e  apaixonada?! 

Não!  Não  é  verdade! 

Faz-se  referencia,  no  logar  citado,  a  António  de  Azevedo  Cas- 
tello  Branco ! 

Interroguei,  ha  annos,  sobre  essa  referencia,  este  meu  compa- 
nheiro de  cinco  annos  nas  mesmas  aulas,  este  velho  amigo,  este  poeta 
de  bondoso  coração  e  nobre  caracter.  Não  a  confirmou  ! 


Poderia  dispensar-me  de  nada  mais  dizer ! 

Mas,  tratando-se  de  um  passo  tão  importante  na  vida  de  Anthero, 
em  Coimbra;  e  tendo,  ha  annos,  escripto  uns  insignificantes  artigos, 
em  que  procurei  fazer  a  historia  do  êxodo  académico  da  Rolinada, 
vou  reproduzir  aqui  uma  parte  do  que  então  escrevi : 


«As  tropas,  que  estavam  em  Coimbra,  foram  ainda  julgadas  insuf- 
ficientes.  Vieram  mais  tropas  de  Vizeu.  Para  o  edifício  dos  Loyos, 
sede  do  governo  civil,  além  da  guarda  de  infantaria,  que  lá  estava, 
foram  mandados  vir  não  sei  quantos  soldados  de  cavallaria,  o  que  ia 
motivando  um  conflicto  com  estudantes,  que,  se  não  se  tornou  gravís- 
simo, foi  única  e  exclusivamente  devido  á  prudência  dos  soldados. 


118 


D'ahi  a  ira  e  o  cumulo  da  indignação! 

Coimbra  tinha  realmente  tomado  o  aspecto  d'um  acampamento 
militar.  Nova  convocação  da  assembleia  geral. 

Era  ao  anoitecer.  O  que  escreve  estas  linhas,  um  dos  mais  frios 
e  indifferentes  a  esse  movimento,  assim  como  quasi  todos  os  rapa- 
zes, com  quem  convivia,  resolveu  ir  a  essa  assembleia  como  simples 
curioso.  Não  costumava  perder  taes  espectáculos! 

A  uma  das  portas  do  Theatro  Académico,  onde  a  assembleia  ia 
reunir-se.  não  á  porta  principal,  mas  á  da  entrada  para  os  camarotes, 
encontrou-se  com  o  seu  querido  condiscípulo  José  da  Cunha  Sampaio 
e  com  Anthero  de  Quental,  (então  no  5."  anno  de  direito),  que  iam 
nas  mesmas  disposições  de  espirito. 

Anthero  era  já  então  um  triste;  era  já  victima  da  doença,  que  lhe 
havia  de  dar  tão  desgraçada  e  trágica  morte:  e,  por  estas  e  outras 
razões,  completamente  alheio  ao  que  se  passava  na  Academia. 

Approximava-se  o  momento  de  começar  a  reunião.  A  porta  do 
theatro,  que  dava  entrada  para  os  camarotes,  abriu-se. 

Anthero  seguiu  com  outros  rapazes  pelo  corredor  do  lado  direito, 
e  foi  tomar  logar  no  camarote  que  ficava  por  cima  da  porta  prin- 
cipal. 

X"esse  mesmo  camarote,  onde  dois  annos  antes,  isto  é,  em  outu- 
bro de  1862,  em  uma  noite  memorável,  havia  entrado  para  receber 
um  aperto  de  mão  do  Principe  Humberto,  depois  Rei  de  Itália,  felici- 
tando-o  e  agradecendo-lhe  a  sua  bella  poesia,  distribuída  e  recitada 
n'essa  noite. 

José  Sampaio  e  o  que  escreve  estas  linhas  entramos  n'um  cama- 
rote próximo  da  porta,  no  que  ficava  ao  lado  direito  do  camarote  do 
Conselho  da  Academia  Dramática. 

Falaram  diversos  oradores  (1).  A  assembleia  debatia-se  em  pro- 
testos contra  a  desfeita  e  a  violência  de  accumular  tropas  em  Coim- 
bra contra  rapazes  briosos  e  inermes. 

Estávamos  diziam,  sob  o  regimen  do  terror  e  daoppressão!  Sob 
a  ameaça  das  baionetas ! 

Mas  não  se  chegava  a  nenhuma  conclusão!  De  pedir  ao  duque  e 
ao  governo  que  fizesse  retirar  as  tropas,  para  nos  ser  agradável, 
ninguém  se  lembrava! 

Também  nenhuma  cabeça  douda  —  apesar  de  haver  lá  muitas  — 


(1)  Vieira  de  Castro  não  faiou  n'e3sa  reunião.  Tinha  falado  na  que  houve  de  manhã. 
Morando  na  cidade  baixa,  no  Hotel  do  Mondego  não  teve  decerto  conhecimento  d'ella, 
a  tempo  de  poder  assistir. 


119 


alvitrou  que  fossemos  atacar  os  quartéis  e  repeliir  para  fora  da 
cidade  as  forças  militares,  que  o  Duque  de  Loulé  tinha  mandado  vir 
para  nos  offender,  para  nos  opprimir,  talvez,  diziam,  para  nos 
fuzilar! 

Nenhuma  solução! 

De  repente  ouviu-se  a  voz  de  Anthero  de  Quental  peàh  a  palavra. 

José  Sampaio  estremeceu;  e,  tocando-me,  disse:  o  que  irá  fazer 
o  Anthero.'? 

Anthero  não  era  orador! 

Mas  o  que  elle  era,  incontestavelmente,  era  a  águia  de  toda 
aquella  reunião! 

A  Águia  bateu  as  azas  e  ia  soltar  o  grito  estridente! 

Soltou-o! 

Aquella  multidão  de  rapazes  aqueceu-o!  A  sua  impressionabili- 
dade de  poeta  commoveu-se! 

Tomou-o ! 

Approximando-se  da  borda  do  camarote,  estendendo  o  corpo,  e, 
sacudindo  a  sua  bella  cabeça  ornada  de  cabellos  loiros,  disse,  com 
voz  sonora,  que  resoou  por  todo  o  theatro,  pouco  mais  ou  menos,- o 
seguinte: 

«Quem  não  fôr  digno,  quem  se  sentir  com  disposições  para  escra- 
«Vo,  fica  e  vae  ás  aulas,  sob  a  ameaça  das  bayonetas! 

«Quem  tiver  no  peito  um  coração  de  homem  livre,  volta  as  costas 
«ao  militarismo  e  sae  de  Coimbra!  E  vae  para  onde?  Para  a  terra, 
«que  foi  berço  da  liberdade  portugueza;  vae  para  o  Porto!» 

Toda  a  assembleia,  como  um  só  homem,  se  levantou,  gritando: 

—  Ao  Porto  !  Ao  Porto  I 

—  Amanhã  para  o  Porto  ! 


Na  manhã  do  dia  seguinte,  das  6  para  as  7  horas,  uma  parte  da 
academia  sahia  de  Coimbra,  em  comboio  especial  até  Ovar. 

De  tarde  seguiu  o  resto. 

Fui  um  d'estes. 

Os  que  estavam  em  Ovar  e  haviam  acclamado  por  chefe  a  Fer- 
nando Rocha  —  um  rapaz  açoriano  muito  talentoso  e  sympathico  — 
aguardavam  anciosos  a  nossa  chegada,  incertos  do  numero  que  iria 
reunir-se-lhes. 

Esse  encontro  foi  commovente  e  delirante. 

Pouco  depois  partíamos  todos  para  o  Porto,  onde  chegávamos  já 
de  noite. 


120 


Ainda  mais  duas  linhas  sobre  o  citado  artigo  do  In  Memoriam. 

Diz-se  que,  depois  da  demissão  do  Reitor,  Anthero,  abandonando 
a  direcção  da  Sociedade  do  Raio,  <'esta,  sob  a  influencia  dos  seus 
successores')  se  transformou  em  uma  succursal  da  ^maçonaria  portu- 
gueza»,  passando  a  servir  de  elemento  eleitoral  aos  lentes  da  Uni- 
versidade (pag.  152)! 

Não  é  verdade  que  a  Sociedade  do  Raio  subsistisse  sem  Anthero. 
Depois  do  acto  de  8  de  dezembro,  da  publicação  do  manifesto  ao  paiz 
e  da  demissão  do  reitor,  a  sociedade  ficou  sem  objecto  e  dissolveu-se 
por  si ! 

Quanto  a  servir  de  elemento  eleitoral  aos  lentes,  só  uma  imagina- 
ção muito  fértil  podia  descobrir  o  valor  da  nossa  importância  e  influen- 
cia eleitoral,  em  Coimbra,  n'essa  epocha ! 

Não  é  preciso  mais! 

Quiz  por  certo  o  escriptor  referir-se,  mas  com  grande  desconheci- 
mento, a  outra  sociedade,  que  coexistiu  com  o  Raio,  e  do  pensamento 
do  qual  Anthero  foi  o  primeiro  executor  dando-lhe  até  o  nome.  Medi- 
tou e  formulou  para  ella  um  largo  programma  de  reformas,  de  que 
nós,  pobres  rapazes,  seriamos  os  porta-estandartes ! 

Veiu-lhe  depois  o  desalento,  dizendo  —  como  por  vezes  lhe  ouvi : 
—  Que  sem  Fé  não  sabia  trabalhar !  Ahi  ficaram  porém  os  seus  três 
companheiros  de  casa.  com  os  quaes  esteve  sempre  na  mais  intima 
communhão  de  pensamentos  e  vontades. 

Sobre  a  origem  e  existência  d'essa  sociedade  escreveu  larga  e 
minuciosamente,  com  os  escrúpulos  de  verdade  que  o  distinguiram, 
em  1868,  no  Coimbricence,  o  honrado  investigador  yoa<7«/m  Martins 
de  Carvalho  e  reproduziu  depois  uma  parte  de  que  tinha  escrito 
n'aquelle  anno  no  seu  livro  Apontamentos  para  a  Historia  Contem- 
porânea . 


Fernando  Rocha 


Fernando  Rocha  foi  dos  três  meus  condiscípulos, 
que  faziam  parte  da  commissão  académica,  eleita  no 
Theatro  Baqiiet  (1),  aquelle 
com  quem,  por  menos  tempo, 
vivi.  Mas  nem  por  isso  a  nossa 
amizade  creou  menos  fundas 
raízes. 

Já  bacharel  formado  em. 
philosophia,  onde  havia  sido 
estudante  muito  distincto  e  pre- 
miado, não  levou  seguidamente 
o  curso  de  direito.  Por  mais 
de  uma  vez  o  interrompeu,  fa- 
zendo distincta  figura  em  am- 
bas as  faculdades. 

Veio  adventício  para  o  meu 
curso.    Passou   por   elle   como 

um  metheoro,  espalhando,  entre  nós,  muita  luz  de  talento 
e  de  sympathia ! 

Todos  o  estimávamos  e  admirávamos,  como  elle  tanto 
merecia. 


Fernando  Rocha 


Pela   mobilidade  do  seu  rosto,  illuminado  pelo  brilho 
dos  seus  olhos  claros,  e  pelo  império  dos  seus  nervos,  tão 


(1)  Foi  este  escripto  destinado  a  uma  nota  para  a  compilação  dos 
artigos  sobre  a  Rolinada. 


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sensíveis  e  vibrateis,  era  o  homem  mais  incapaz  de  occul- 
tar  o  que  pensava  e  sentia !  E  elle  iucraVa  em  que  os  seus 
amigos  podessem  ler  o  que  estaVa  no  seu  coração  e  na 
sua  alma !  Foi  sempre  um  impulsivo,  mas  impulsivo  para 
o  bem ! 

Tinha  grandes  qualidades  de  orador  e  de  tribuno ! 

Paliando  na  celebre  reunião,  effectuada  no  Theatro 
Baquet,  o  seu  discurso  e  o  de  Oliveira  Valle  —  que  dis- 
punha de  uma  palavra  elegante  e  original —  obtiveram,  na 
imprensa  do  Porto  (que  nos  era  hostil),  os  maiores  elo- 
gios, prophetisando  aos  dois  talentosos  rapases  um  bri- 
lhante futurou 

Infelizmente,  não  teve,  cá  fora,  o  futuro,  que  todos 
lhe  prediziam ! 

Com  notáveis  dotes  de  intelligencia  e  de  palavra,  muito 
coração  e  muita  imaginação,  prejudicaram-no  aquelle  e 
esta! 

Não  traçando,  desde  logo,  segura  e  praticamente,  a 
sua  carreira,  entrou,  já  cortado  de  desenganos,  na  ma- 
gistratura. 

Deram-lhe,  pouco  depois  do  primeiro  despacho,  uma 
delegacia  em  Lisboa. 

Era  o  reconhecimento  das  suas  distinctas  aptidões  e 
o  campo  onde  ellas  iam  maniíestar-se  e  recommenda-lo 
para  um  mais  fácil  accesso.  ou  mais  remunerados  cargos. 

Parecia  ter  entrado  no  caminho  da  boa  fortuna. 

Mas  a  infelicidade  perseguia-o.  Veio  a  doença,  uma  ter- 
rível doença  nervosa,  a  cruel  neurasthenia  —  que  tem  sido 
o  torturante  mal  de  tantos  da  sua  geração  !  —  cortar  essas 
esperanças.  Foi  obrigado  a  abandonar  os  tribunaes  da  ca- 
pital e  a  ir  procurar  socêgo  para  o  seu  espírito  na  obscura 
comarca  de  Villa  Franca  de  Xira ! 

Crearam-se  os  tribunaes  administrativos.  Coube-lhe  a . 
promoção. 

Foi  nomeado  presidente  do  de  Angra  do  Heroísmo, 
sua  terra  natal. 

Ahi  servia,  quando  eu,  desde  1887  a  1890, —  residi  em 
Ponta  Delgada. 


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Depois  de  Coimbra,  apenas,  muito  de  passagem,  ha- 
viamos  tido  um  rápido  encontro  na  Arcada. 

Uns  quinze  annos  depois,  viviamos  em  ilhas  próximas. 
Por  amigos  communs  tínhamos  trocado  lembranças. 

Mas,  em  1890,  antes  de  sahir  definitivamente  da  Ilha 
de  S.  Miguel,  quiz  eu  ver  algumas  das  outras  ilhas  do  for- 
moso archipelago.  No  paquete,  que  me  havia  de  trazer  ao 
continente,  embarquei  para  a  Ilha  Terceira  e  para  a  Ilha 
do  Faval. 


Não  resisto  a  descrever  aqui  o  meu  encontro  com  o 
pobre  Fernando,  em  uma  audiência  publica. 

Porque  não  hei-de  conta-lo? 

Nenhum  homem  deve  envergonhar-se  de  ter  coração! 
Não  fica  mal  a  juizes  mostrar  que  o  tem! 

Julgar  o  contrario  leva  a  muitas  vaidades  e  inconcebí- 
veis erros! 

Tanto  os  juizes  como  quem  para  elles  legislar,  ou 
quem  tiver  de  aprecia-los  e  julga-los,  deve  ter  sempre  pre- 
sente aquella  sentença  do   sábio  Pascal,  que  diz  assim: 

Uhomme  rCest  ni  ange  ni  bete;  et  le  malheur  est  que 
qui  veut  faire  Vange  fait  la  bete! 

Vou,  pois,  contar  a  forma  d'esse  encontro  com  o  meu 
talentoso  companheiro  dos  bancos  escolares. 

Fica-se  conhecendo! 

Vê-se  como  o  fogo  dos  affectos  ardia  n'aquelle  cora- 
ção! E  em  edade,  em  que  o  de  muitos  costuma  estar  ge- 
lado! 


Chegado  ao  hotel,  em  Angra  do  Heroísmo,  preparan- 
do-me  para  sahir,  pedi  que  algum  guia  me  acompanhasse 
para  me  indicar  a  casa  de  Fernando  Rocha. 

Informaram-me   que,    n'aquella   hora,   não  estaria  em 


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casa,  mas  no  tribunal,  que  era  ali  muito  perto.  Fizeram- 
me  a  indicação. 

Melhor.  Mais  certo  o  tinha. 

Dirigi-me  ao  tribunal  e  entrei.  O  juiz  presidia,  de  beca, 
a  uma  audiência  ordinária.  Tinha  em  frente  os  escrivães  e 
ao  lado  o  delegado,  que  era  o  dr.  Domingos  Ribeiro  Vieira, 
magistrado  muito  digno,  que  é  hoje  juiz  de  direito,  creio 
que  da  comarca  de  Sabugal. 

Achei-me  em  frente  do  meu  antigo  condiscípulo.  Era 
bem  elie.  Todo  elle!  A  mesma  voz,  a  mesma  mobilidade 
de  gesto  e  de  phisionomia.  Só  os  cabellos  é  que  não 
eram  já  de  um  louro  escuro,  como  em  Coimbra!  Estavam 
brancos! 

Entrando,  fiz-lhe  a  minha  vénia  respeitosa.  Ficou  indif- 
ferente.  Não  me  reconheceu! 

Sentei-me  entre  alguma  gente  do  poVo,  que  assistia  á 
audiência.  Mas,  passados  momentos,  lembrou-me  que  eu 
tinha  qualidade  para  entrar  para  dentro  da  teia  do  tribunal. 

Senti  também  no  coração  a  exigência  de  o  pôr  em 
communicação  com  aquelle  outro  coração  amigo,  que  ali 
se  encontrava! 

Peguei  em  um  meu  cartão,  e  mandei,  pelo  official  de 
diligencias,  entrega-lo  ao  presidente  do  tribunal.  Esperava 
que  este  me  convidasse  a  sentar-me,  dentro,  em  outro  logar. 

Mas-,  lendo  o  meu  cartão,  começou  a  mover-se  em  in- 
quietação nervosa!  A  sua  luneta  de  myope,  presa  por  um 
cordão,   como  sempre  usou,  dava-lhe  saltos  no  pescoço! 

De  repente  disse:  está  interrompida  a  audiência  por 
dez  minutos!  E,  descendo,  rápido,  da  cadeira,  dirigiu-se 
para  mim  e  começou  a  abraçar-me  effusivamente! 

No  meio  do  pasmo  de  toda  aquella  gente,  que  não  sa- 
bia quem  eu  era! 

Levou-me  para  o  seu  gabinete,  onde,  a  esforços  meus, 
não  prolongou  os  dez  minutos,  e  foi  continuar  a  audiência! 

Terminada  esta,  nunca  mais  me  dei?«:ou.  Levou-me  a 
sua  casa.  Apresentou-me  á  sua  digna  e  bondosa  esposa,  a 
Senhora  D.  Maria  da  Silva  Baptista  Rocha,  a  sua  formosa 
companheira  de  Coimbra,  pois  com  ella  casara  nas  ferias 


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do  terceiro  anno.  Conservava  ainda  muitos  traços  da  sua 
belleza  dessa  época ! 

No  dia  seguinte,  deu-me  um  jantar,  festa  muito  cor- 
deal,  de  que  conservo  a  mais  grata  lembrança. 

Depois  frequentemente  me  escrevia  para  o  Porto. 

O  seu  pensamento  era  vir  para  uma  comarca  do  con- 
tinente, em  que  pudesse  estar  em  contacto  com  os  seus 
antigos  amigos;  e  delia  acompanhar  a  educação  de  seu 
filho,  hoje  distincto  professor  no  Lyceu  Camões,  o  meu 
presado  amigo,  Dr.  Arthur  Fernando  Rocha,  herdeiro  do 
nome  e  de  muitas  das  distinctas  qualidades  de  seu  pae. 


Com  o  seu  talento,  o  seu  coração  e  a  sua  imaginação, 
Fernando  Rocha  era,  como  não  podia  deixar  de  ser,  um 
poeta.  Escreveu  versos,  que  queimou.  Di-lo  em  umas 
paginas  intimas  de  conselhos  a  seu  filho,  nas  quaes  appa- 
recem  retratadas  a  belleza  da  sua  alma  e  a  nobreza  do 
seu  coração. 

Escaparam,  porém,  uns  Versos,  escriptos  na  Ilha  do 
Pico,  no  ultimo  periodo  da  sua  vida,  e  que  revelam  o  fogo 
da  sua  inspiração. 

Era  amigo  dedicadíssimo  e  admirador  apaixonado  de 
Anthero  de  Quental. 

Quando  este,  em  1887  esteve  em  S.  Miguel,  foi  fazer- 
!he  uma  Visita  a  Angra  do  Heroísmo  e  foi  seu  hospede 
durante  um  mêz. 

A  morte  de  Anthero  produziu  em  Fernando  Rocha  um 
grande  abalo  moral.  Talvez  uma  terrível  suggestão! . . . 


A  adversidade,  que  foi  sempre  cruel  para  com  elle,  ia 
vibrar-lhe  o  mais  tremendo  golpe! 

Morreu-lhe    a    esposa,    a   sua   companheira   querida! 


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Custou-lhe  a  resistir.  Consolou-o  um  netinho,  filho  da  sua 
distincta  filha,  a  Ex."'«  Senhora  D.  Maria  do  Carmo  da 
Rocha  Coelho  Borges. 

A  perseguição,  porém,  da  adversidade  continuava.  Essa 
creança  morreu  também! 

Isolado  na  ilha  do  Pico,  em  cuja  comarca  foi  collocado 
pela  extinção  dos  tribunaes  administrativos,  não  resistiu. 

O  mar,  o  mar,  tempestuoso  como  o  seu  peito,  at- 
trahiu-o !  Só  elle,  só  o  mar,  egualava  as  perturbações,  que 
lhe  agitavam  a  alma! 

Foi  no  triste  dia  13  de  outubro  de  1892. 

Abraçou-se  com  o  mar. . .  e  desappareceu ! 

Tão  nobre,  tão  distincto,  tão  infeliz ! 


José  Luciano  de  Castro 


Estudante  de  direito.  — Advogado  no  Porto. 
Jurisconsulto  (1) 

Foi  em  1890,  depois  de  elle  haVer  deixado  de  ser  mi- 
nistro, que,  pela  primeira  Vez,  falei  com  o  sr.  José  Luciano 

de  Castro. 

Terminado  que  foi  o  meu  serviço  judicial  ultramarino, 
sendo    collocado    na   Relação   dos   Açores,    servia   nella 


(1)  Artigo  de  colaboração  para  o  numero  da  revista  jurídica  — 
O  Z)/mro -publicado  em  homenagem  á  memoria  do  seu  fundador. 


128 


quando  o  illustre  homem  de  estado,  então  presidente  do 
conselho  e  ministro  do  reino  —  de  quem  me  julgava  intei- 
ramente desconhecido — ,  por  intermédio  de  um  amigo 
commum,  se  dignou  convidar-me  a  acceitar  um  cargo  de 
governador  civil  com  plena  liberdade  de  abstenção  de  poli- 
tica, como  aconselhavam  as  circumstancias  do  districto 
que  me  destinava,  e  só  com  o  encargo  de  manter  a  ordem 
pública  e  fazer  administração. 

Declinei  o  convite.  Era  esse  o  dever. 

Por  um  lado,  elle  se  baseava  em  um  erro,  que  era  o 
da  minha  aptidão  para  cargos  de  tal  natureza,  quando  era 
absoluta  a  minha  inaptidão  e  incapacidade  para  elles;  e, 
por  outro,  a  firme  resolução  formada  de  não  militar  na 
politica  dos  partidos,  tomando  uma  posição,  que  eu  não 
saberia  conciliar  com  os  melindres  da  minha  situação  de 
juiz  e  profissão  de  magistrado,  pois  que,  pela  falta  de 
qualidades  de  adaptação,  sem  vantagem  pública  ou  pes- 
soal, isso  só  podia  tirar-me  auctoridade  e  deslustrar  a  fun- 
ção a  que  tinha  votado  a  minha  vida. 

Teve  ainda  para  commigo  a  benevolência,  por  essa 
época,  de  querer  conferir-me  a  mercê  honorifica  da  carta 
de  conselho.  Também  me  escusei  a  acceita-la. 

Mas,  transferido  para  a  Relação  do  Porto,  passando 
por  Lisboa,  impunha-se-me  a  obrigação  de  ir  agradecer- 
Ihe  as  demonstrações  de  confiança  e  de  consideração  com 
que  tinha  querido  galardoar-me! 

Datam  dahi  as  relações  de  amizade,  com  que  honrou, 
não  um  politico,  não  um  partidário,  porque  me  havia  recu- 
sado a  sê-lo,  mas  o  magistrado,  mas  o  sacerdote  da  jus- 
tiça, que  procurava  servi-la  com  amor  e  cuidado. 

E'  que  elle  tinha  o  culto  do  direito.  Amava  a  sciencia 
do  justo,  e  era  grande  o  seu  pendor  e  sympathia  pelos  que 
a  professavam. 


Receando    ser   importuno  no  meio  da  assistência  de 
políticos,  que  muito  constantemente  o  cercavam,  foram 


129 


mais  as  vezes,  em  que,  cumprindo  deveres  de  delicadeza, 
fui  á  sua  porta,  do  que  aquellas  em  que  tive  a  hionra  de 
entrar  na  sua  casa. 

Mas,  sempre  que  lhe  falei,  encontrei  a  mais  aberta 
lhaneza  e  a  mais  despretenciosa  cordealidade :  e  a  veia 
abundantissima  da  sua  palavra  se  desentranhava  e  larga- 
mente comprazia  na  narração  e  apreciação  de  pessoas  e 
cousas  do  foro,  dos  tempos  presentes  e  dos  tempos  pas- 
sados; figuras  de  juizes  e  figuras  de  advogados;  casos  da 
sua  vida  de  advogado;  reformas  de  justiça;  historia  de 
códigos  e  leis;  incidentes  da  sua  discussão;  Índole  de  tri- 
bunaes  e  jurisprudência  destes ! 

Desaparecia  o  politico  e  ficava  o  jurisconsulto,  que 
o  era  eminente  e  muito  illustre! 


Nascido  em  14  de  Dezembro  de  1834,  quando  concluiu 
a  sua  formatura,  em  1854,  ainda  não  tinha  completado 
vinte  annos,  o  que  era,  e  é,  muito  raro ! 

Quando  em  1849,  iniciando  os  seus  estudos  jurídicos, 
passou  e  repassou  a  porta  férrea,  efectivando  aquelle 
Verso  do  Garrett  qne  aqui  não  posso  escrever,  ainda  não 
tinha  quinze  annos! 

Era  o  mais  novo  dos  estudantes  do  seu  curso,  que  foi 
notabilissimo  pela  distinção  dos  mancebos  e  pelas  grandes 
e  esparançosas  inteligências,  que  n'elle  brilhavam ! 

Todos  os  que  frequentámos  a  Universidade  em  outros 
tempos  (que  não  nos  actuaes,  em  que  não  ha  annos  certos 

9 


130 


de  frequência,  nem  cursos  e  ha  estudantes  in  ahsentia) 
sabemos  bem  que  o  nosso  curso  era  a  nossa  família  aca- 
démica! Sabemos  os  laços  fraternos,  que  ligavam  aquel- 
les  que,  durante  cinco  annos,  entraram  nas  mesmas  aulas, 
se  sentaram  nos  mesmos  bancos,  leram  os  mesmos  livros, 
estudaram  as  mesmas  lições  e  ouviram  a  vóz  dos  mesmos 
professores! 

União  de  pensamentos  de  que  nascia  a  união  dos  cora- 
ções !  Reciproca  educação  dos  espiritos,  reciproca  educa- 
ção dos  sentimentos ! 

Durante  a  épocha  dos  actos,  que  vivo  interesse  pelos 
exames  alheios!  Quantos  receios  de  perder  algum  com- 
panheiro querido!  Quanta  magua,  se  isso  succedia!  Ou 
quanta  alegria,  se  triumphaVa  e  proseguia  para  diante 
comnosco  na  mesma  jornada  litteraria! 

Recordações  para  toda  a  vida!  Mutuo  auxilio  n'ella^ 
mutua  protecção!  Quantas  vezes  transmittida  aos  descen- 
dentes, e  até  por  estes  desconhecida ! 

Pois  esse  curso  de  1849  a  1854  foi,  como  dissemos, 
distincto  e  notabilissimo ! 

N'elle  havia  três  pares  de  irmãos,  procedentes  de  famí- 
lias nobres  e  casas  vinculares! 

Três  morgados  e  três  secundo-genitos.  Seis  garbosos 
rapazes!  Muito  intelligentes,  muito  distinctos,  muito  gentis! 

Eram  os  irmãos  Castros  (Francisco  e  José  Luciano), 
de  Aveiro';  os  irmãos  Mimosos  (João  e  José),  de  Ponte 
de  Lima;  e  os  irmãos  Queirozes  (Gaspar  e  José),  de  Arcos 
de  Val-de-Vez. 

Tendo  convivido  com  estes  últimos  desde  os  meus 
primeiros  annos,  tive  occasião  de  lhes  ouvir  repetidamente 
apreciar  muitos  dos  seus  .companheiros  de  estudo,  que 
depois,  mais  ou  menos,  vim  a  conhecer  no  futuro. 

O  mais  galardoado  nos  louros  académicos  era  Augusto 
Cesqr  Barjona  de  Freitas,  cujo  brilho  de  talento  desde 
logo  se  assignalou;  e  em  quem  admirei  —  como  meu  pro- 
fessor em  mais  de  um  anno  —  a  rara  agudeza  de  inteligên- 
cia, reunida  a  uma  rara  fluência  e  encanto  de  palavra,  que 
irresistivelmente  prendia  aos  seus  lábios   a  attenção  dos 


131 


seus  alumnos !  E  estes  foram  os  seus  méritos  de  professor 
excepcional. 

Tinha  este  por  emulo  Carlos  Ramiro  Coutinho,  fogoso 
orador  das  assembiéas  académicas,  estudante  de  grande 
prestigio  na  academia,  redactor  n'essa  época  do  jornal  — 
Echo  dos  Operários — ,  talento  notável,  que,  pelo  brilho  e 
pela  rapidez,  passou,  como  uma  estrella  cadente,  pelo 
foro,  pelo  parlamento  e  pelo  funccionalismo,  em  que, 
desde  logo,  subiu  ao  desempenho  do  alto  cargo  de  Pro- 
curador Geral  da  Fazenda.  Tem  honrosa  biographia  escri- 
pta  pela  penna  litteraria  tão  illustre  de  Camillo,  onde  o 
genial  escriptor  diz  que  «estes  dois  mancebos  (Barjona  e 
«Ramiro  Coutinho)  por  tal  modo  hombreaVam  no  direito 
«ás  distincções,  que  houve  então  parcialidades  academi- 
«cas,  ambas  concordes  no  respeito  aos  dois  talentos,  mas 
«ciosas  da  primasia  do  seu  escolhido :  e,  como  quer  que 
«fosse,  o  característico  assignalamente  distincto  dos  dois 
«era  perspicuidade  na  percepção,  subtileza  critica,  e,  sobre 
«tudo,  verbosidade  elegante.» 

E  quem  eram  os  outros  condiscípulos?  Eram: 

Joaquim  Januário  de  Sousa  Torres  e  Almeida,  bra- 
carense distinctissimo,  intelligencia  brilhante,  jurisconsulto 
illustre,  parlamentar  de  palavra  elegante  e  eloquente,  que 
a  morte  cedo  arrebatou  ao  largo  futuro  que  o  esperava! 

António  Alves  da  Fonseca,  lúcido  espirito,  advogado 
inteligentíssimo,  grande  orador  forense. 

José  Ribeiro  Perry,  grande  juiz  e  útil  escriptor  de 
direito,  bem  cedo  roubado  pela  morte  á  magistratura,  que 
muito  enaltecia  e  honrava! 

Joaquim  Maria  da  Silva,  (terceirense)  inteligência 
superior,  que,  sendo  ainda  estudante,  escreveu  e  publicou 
o  notável  opúsculo  —  Federação  Ibérica  ou  Ideias  Ge- 
raes  sobre  o  que  convém  ao  Futuro  da  Península.  Por 
um  português.  E  logo  depois  (1857)  a  clássica  tradução 
da  Educação  das  Mães  de  Familia,  o  precioso  livro  de 
Aimé  Martin,  por  causa  do  qual  travou  polemica,  no  jor- 
nal O  Portuguez,  com  o  redactor  do  Bem  Publico,].  M. 
de  Sousa  Monteiro,  adversário  terrível,  mas  que  não  pôde 


.    152 

Vencer  o  polemista  com  quem  luctou!  É  o  traductor  do 
Chaterton,  de  Alfredo  de  Vigny.  É  o  auctor  dos  Estudos 
de  Philosophia  Racional,  que  Alexandre  Herculano  fez 
publicar  nas  Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias 
e  valeram  ao  auctor  as  palmas  académicas,  a  que  a  sua 
modéstia  se  não  pôde  eximir. 

É  o  futuro  auctor  do  opúsculo  —  O  Imposto,  disserta- 
ção para  o  concurso  da  cadeira  de  economia  politica  da 
Escola  Polytechnica. 

Honra  do  professorado  e  honra  da  advocacia!  Fallecido 
ultimamente  em  Santarém  (50  de  Setembro  de  1915)  par- 
tiu para  as  regiões  do  Além  poucos  mezes  antes  do  seu 
camarada  universitário! 

Henrique  da  Gama  Barros  (felizmente  vivo),  um  dos 
mais  novos,  formado  aos  vinte  e  um  annos. 

Entrando  na  Vida  administrativa  pelo  modesto  logar  de 
administrador  de  Cintra,  em  breve  confirmou  os  créditos, 
que  já  tinha  em  Coimbra,  mostrando  a  pujança  do  seu 
Valor  intellectual  e  capacidade  de  estudo  na  então  muito 
importante  obra  —  Repertório  Administrativo,  deducção 
alphabetica  do  código  de  1842  e  de  toda  a  legislação 
correlativa  até  1860,  com  que  se  recommendou  para  os 
cargos  superiores  de  secretario  geral  do  governo  civil  de 
Lisboa,  governador  civil,  vogal  e  presidente  do  tribunal 
de  contas,  entregando-se  então  a  profundos  e  altos  estu- 
dos, que  o  tornam  o  sábio  auctor  d'essa  obra  monumen- 
tal, em  dois  volumes,  já  publicados  e  um  terceiro  em  pu- 
blicação, e  que  se  \x\W\\x\di  —  Historia  da  Administração 
Publica  em  Portugal  dos  Séculos  XII  a  XV. 

António  Pereira  Telles  de  Vasconcellos,  que  foi  par- 
lamentar, juiz  do  supremo  tribunal  administrativo,  presi- 
dente da  Camará  dos  Pares  e  Ministro  da  Justiça. 

José  Affonso  Botelho  de  Andrade  da  Camará  (mi- 
chaelense)  litterato,  poeta,  prosador  elegante  e  purista, 
fanático  camonianista,  cujo  nome  chegou  lembrado  á  mi- 
nha geração,  porque,  tendo  soffrido  uns  dias  de  detenção 
académica,  foi  o  protagonista  da  engraçadissima  parodia  do 
Tasso  no  Hospital  dos  Doudos,  de  Rodrigues  Cordeiro. 


135 


João  Cândido  Furtado  d' Antas,  o  honestissimo  ma- 
gistrado superior,  musico  e  poeta,  cuja  musa,  ora  senti- 
mental, ora  galhofeira  e  satyrica,  o  acompanhou  na  sua 
Vida  de  juiz.  Os  seus  versos,  passando  de  banco  para 
banco,  aligeiravam  as  horas  das  aulas,  sendo  alguns  d'el- 
les  ainda  apreciados  pelas  gerações  académicas,  que  suc- 
cederam  á  sua. 


_Um  outro  poeta  havia  no  curso.  Um  grande  poeta! 
Esse  tinha  em  si  a  faisca  do  génio  e  o  fogo  da  divina  ins- 
piração! Foi  o  mais  sublime  representante  do  lyrismo 
sentimental  da  sua  épocha! 

Os  seus  versos,  sempre  harmoniosos  como  os  trilos 
dos  rouxinoes  do  Mondego,  são,  por  vezes,  tristes  como 
os  gemidos  do  mar,  ou  como  os  echos  longínquos  das 
ondas  batendo  nas  penedias! 

Era  o  bardo  melancholico  do  Noivado  do  Sepulchro! 
O  cantor  inspirado  do  Firmamento,  da  ode  A  Camões,  dos 
Anhelos,  do  Amor  e  Eternidade,  da  Vida,  do  Desalento, 
da  Infância  e  Morte  e  de  tantas  outras  pérolas  da  poesia! 

Era  António  Augusto  Soares  de  Passos,  fallecido  aos 
trinta  e  um  annos,  no  Porto,  sua  pátria,  mas  legando  á  pos- 
teridade um  pequeno  livro  de  ouro,  que  lhe  confere  inapaga- 
Vel  e  immorredoura  floria! 


Estes,  além  de  outros  (1),  também  distinctos,  foram  os 
companheiros  do  juvenil  estudante  de  Aveiro,  que  era  o 


(1)  Este  foi  também  o  primeiro  curso  do  divinal  artista,  cuja  for- 
matura —  como  elle  próprio  disse  —  durou  tantos  annos  como  di  guerra 
de  Tróia!  Foi  o  primeiro  curso  de  João  de  Deus.  Tinha  na  matricula, 


154 


Bemjamim  d'essa  familia  académica,  d'essa  tribu  já  então 
gloriosa! 

Foi  no  convivio  d'essa  plêiade  brilhante  de  mancebos, 
de  tão  grande  valor  intelectual,  cheios  de  uma  ardente 
mocidade,  almas  aquecidas  no  culto  da  sciencia  e  no 
culto  do  bello,  que  se  desenvolveu  e  educou  o  seu  espi- 
rito juvenil! 

Dentro  das  aulas,  disse-me  a  tradição,  que  procurou 
sempre  desempenhar-se  dos  seus  deveres  escolares,  hom- 
breando  com  o  grupo  dos  melhores,  e  isso  confirmam  as 
distinctas  informações  literárias,  que,  no  fim  da  formatura, 
a  faculdade  lhe  conferiu. 

Fora  das  aulas,  disse-me  ainda  ella,  que  era  estudante 
de  muitos  livros!  Raros  possuíam  tantos!  Todo  o  dinheiro, 
de  que  podia  dispor,  o  empregava  em  livros! 

E  não  era  o  Pegas,  nem  o  Guerreiro,  nem  o  Velasco, 
nem  o  Silva  á  Ordenação,  nem  o  Caldas,  nem  o  nosso 
Cordeiro  —  como  dizia  o  velho  mestre  Neiva  — que  elle 
procurava  adquirir,  posto  já  soubesse  conversar  com  esses! 
Eram  liVros  de  idéas  modernas  e  novas!  Livros  de  littera- 
tura  e  direito  politico! 


como  se  vê  da  respectiva  pauta  d'esse  anno,  o  n.°  62  e  José  Luciano 
o  n."  24. 

Coube  ao  Sr.  José  Luciano  de  Castro,  sendo  presidente  do  Con- 
selho de  Ministros  e  tendo  a  seu  cargo  os  serviços  da  Instrucçâo  Pu- 
blica, a  honra  de  ter  perfilhado  o  projecto  de  Augusto  Ribeiro,  que 
foi  convertido  na  Lei  de  2  de  agosto  de  1888,  pela  qual  foi  creado  o 
logar  de  Commissario  Geral  do  methodo  de  leitura  Cartilha  Maternal 
de  João  de  Deus,  recahindo  a  primeira  nomeação  vitalícia  na  pessoa 
do  seu  auctor,  com  o  vencimento  de  900.S000  réis,  como  diz  o  artigo  1 ." 
d'esse  diploma  legislativo. 

Ao  acceitar  o  projecto  e  referendar  a  lei,  por  certo  se  lembrou  o 
Sr.  José  Luciano  de  Castro  que  não  só  cumpria,  como  estadista,  o 
dever  da  pátria  para  com  o  seu  filho  tão  illustre,  mas  que  beneficiava 
também  o  seu  antigo  companheiro  dos  bancos  escolares,  o  que  seria 
grato  ao  seu  coração,  que  tantas  vezes  mostrou  tê-lo  para  com  outros 
companheiros  d'essa  épocha  e  para  os  que  o  auxiliaram  nos  inicios 
da  sua  trabalhosa  vida  publica.  (Nota  escripta  para  este  livro). 


135 


E'  que  a  imprensa  já  o  tinha  namorado  e  seduzido.  E' 
que  já  o  havia  empolgado  o  jornahsmo! 

Foi  no  fim  de  1851,  quando  frequentava  o  terceiro 
anno  juridico,  que  publicou  o  seu  primeiro  escripto  no 
Observador,  jornal  fundado  em  Coimbra,  alguns  annos 
antes,  para  combater  a  tirania  da  épocha,  e  de  que  era 
redactor  o  grande  liberal,  Agostinho  de  Moraes  Pinto 
de  Almeida,  distincto  professor  da  Faculdade  de  Mathe- 
matica. 

Tinha-se-lhe  manifestado  a  vocação  para  a  vida  poli- 
tica!  A  febre  do  jornalismo  tinha  já  entrado  com  elle! 
Nunca  mais  havia  de  abandona-lo! 

Frequentava  o  terceiro  anno  —  conta  o  sr.  Marques 
Gomes  — ,  quando,  nas  férias  de  Paschoa,  recorreu  á  ter- 
nura materna  e  conseguiu  que  a  bondosíssima  mãe  se  des- 
fizesse de  um  valioso  objecto  de  ouro,  de  seu  adorno,  para 
lhe  dar  quinze  moedas,  com  que  fundou  o  Campeão  do 
Vouga,  jornal  destinado  a  advogar  os  interesses  da  re- 
gião, e  onde.  mais  á  vontade,  podia  apagar  a  sede  de 
publicidade  patriótica,  que  o  devorava! 

Mas  nem  por  isso  deixou,  alguma  vêz,  de  escrever 
"também  no  jornal,  onde  se  havia  estreado. 

Têm  sido  reproduzidos  artigos  seus  d'essa  épocha. 

Um  d'esses  o  foi  pelo  infatigável  fallecido  investigador, 
Joaquim  Martins  de  Carvalho,  no  Conimbricense,  pou- 
cos annos  antes  d'essa  folha,  interessantíssimo  repositório 
de  noticias  históricas,  haver  desapparecido. 

Causou-me  admiração  esse  artigo  pela  firmeza  da  pen- 
na,  manejada  por  mão,  que  ainda  não  tinha  vinte  annos, 
e  pela  elegância  e  clareza  do  estylo! 

E  também  pela  doutrina!  E'  uma  calorosa  e  enthusias- 
tica  apologia  dos  princípios  da  Revolução  Francesa  e  da 
sua  influencia  no  mundo! 

E  sobe  de  ponto  a  admiração  pensando-se  que  o  juve- 
nil estudante,  que  assim  prestava  enthusiastico  culto  á 
liberdade,  é  o  filho  de  um  honrado  partidário  do  regimen 
absoluto ! 

E'  o  filho  do  procurador  da  Villa  de  Eixo,  Francisco 


136 


Joaquim  de  Castro  Pereira  Corte-Real,  que,  em  11  de 
julho  de  1828,  assigna  o  assento  dos  Três  Estados  do 
Reino,  declarando  D.  Miguel  o  único  rei  e  senhor  da 
coroa  d'estes  reinos!  (1) 

Como  é  que,  em  tão  verdes  annos,  resiste  á  força  da 
tradição  familiar  e  revela  uma  tão  grande  independência 
de  espirito? 

Facto  digno  de  registo!  Não  é  — como  tão  frequente- 
mente succedia  n'essa  épocha  — uma  conversão,  suggerida 
pelo  interesse,  aconselhada  pelas  conveniências  praticas 
da  vida. 

Não!  E'  o  primeiro  amor,  que,  desde  logo,  lhe  nasce 
e  arde  luminosamente  no  coração  pela  fé  liberal  —  sincero 
como  a  sua  edade  —  e  ao  qual  se  mantém  fiel  toda  a  sua 
vida! 


Como  se  explica?  Como? 

Explica-se  pela  poderosa  influencia  do  meio  em  que 
desenvolvia  o  seu  espirito,  meio  esse  que  tem  sido  sem- 
pre o  mesmo,  em  todas  as  épochas,  e  que  só  a  estreitesa 
das  paixões  e  a  ignorância  da  historia  têm  podido  acoimar 
de  meio  reaccionário! 

Foi  ahi,  foi  n'esse  meio  académico,  onde  encontrou  a 
encantadora  fonte,  em  que  bebeu  as  novas  ideias  e  os- 
nobres  estímulos,  que  lhe  mostraram  novos  horisontes  e 
lhe  traçaram  e  abriram  o  luminoso  caminho  do  futuro! 

Por  esse  tempo,  o  estudante  de  medicina,  ex-soldado 
do  batalhão  académico  e  um  dos  que  entraram  em  fogo 
no  combate  sangrento  do  Alto  do  Viso,  João  António  dos 
Santos  e  Silva,  brilhante  escriptor  e  brilhante  orador,  pu- 
blicava o  seu  noíabilissimo  opúsculo,  ultra-liberal  e  demo- 


(1)  Doe.  para  a  Historia  das  Cortes  Qeraes  da  Nação  Portugueza 
pelo  Barão  de  S.  Clemente,  Tom.  4."  pag.  799. 


157 

cratico,  que  se  intitula  —  Revista  Histórica  Politica  de 
Portugal,  desde  o  ministério  do  Marquez  de  Pombal  ate 
1842,  precedida  de  uma  Introducção  socialista,  egualmente 
eloquente,  escripta  pelo  estudante  Carlos  Ramiro  Coutinho. 

O  periodo  académico,  em  que  decorrem  os  estudos  do 
descendente  da  casa  de  Fijó,  neto  do  Capitão-Mór  de  Feira 
e  dos  morgados  da  Oliveirinha,  é  um  periodo  de  grande 
effervescencia  liberal  e  de  nobres  aspirações  politicas  e 
sociaes. 

Estava  recente  a  lembrança  da  revolução  de  1848,  em 
França,  cuja  influencia  alastrou  pela  Europa,  e  recentes 
também  as  recordações  da  revolução  popular  em  Portugal.. 

A  nobre  figura  politica  e  litteraria  de  Affonso  de  La- 
martine  ainda  encantava,  annos  depois,  os  estudantes  do 
meu  tempo! 

A  sua  prosa  attrahia  tanto  como  os  seus  versos!  Não- 
liamos  só  as  Meditações  e  as  Confidencias,  caridosas 
leituras  para  corações  de  dezaseis  e  dezasete  annos!  De- 
vorávamos a  Historia  da  Revolução  de  1848,  narração 
de  acontecimentos,  que  eram  dos  nossos  dias,  e  em  que 
figuravam  personagens,  que  estavam  Vivas.  Essa  nos  con- 
vidava e  conduzia  á  leitura  da  Historia  dos  Girondinos; 
e  para  logo  as  nossas  almas  ficavam  alumiadas  e  tempe- 
radas no  fogo  da  Revolução. 

Quando,  em  1849,  José  Luciano  começou  a  frequentar 
a  Universidade,  frequentavam-na  também  quasi  todos  os 
soldados  do  batalhão  académico,  que  militaram  na  divisão 
do  Conde  das  Antas,  os  quaes  haviam  feito,  sob  a  mais 
severa  disciplina,  depois  da  batalha  de  Torres  Vedras,  a 
tormentosa  retirada  para  o  Porto,  e  muitos  dos  quaes, 
indo  na  expedição  de  Sá  da  Bandeira,  heroicamente  se- 
bateram  no  combate  do  Alto  do  Vizo  e  n'elle  viram  cahir 
prostrados  para  sempre  quatro  dos  seus  companheiros  de 
armas  e  de  estudos!  (1) 


(1)  Além  dos  quatro  mortos,  houve  oito  estudantes  feridos  no 
combate  de  1  de  maio  de  1847. 

Ainda  é  felizmente  vivo  um  d'esses  combatentes,  que  tinha  no. 


158 

No  anno  anterior,  quando  elle  por  certo  já  estudava  em 
'Coimbra  para  fazer  os  seus  exames  preparatórios,  que  só 
lá  podiam  ser  feitos,  tinha  havido  a  debatida  questão  das 
exéquias,  que  a  academia  quiz  celebrar  suffragando  as 
almas  dos  quatro  estudantes,  martyres  heróicos  da  causa 
popular!  Prohibiu  a  auctoridade  essa  publica  e  solemne 
manifestação  de  patriotismo  e  saudade!  Contra  tal  acto 
foram  levantados  os  mais  vehementes  e  ruidosos  protestos 
de  indignação,  que  tiveram  duradouro  echo  nas  lendas 
académicas ! 

Tinha  depois  havido,  no  mesmo  anno,  os  graves  con- 
flictos,  entre  a  academia  e  os  officiaes  e  soldados  de  caça- 
dores 7,  por  haverem  desfeiteado  um  estudante,  que  asso- 
l^iava  o  hymno  da  Maria  da  Fonte! 


Em  1851  frequentava  o  segundo  anno.  Os  graves  suc- 
■cessos  políticos  do  paiz  vão  reflectir-se  na  ardente  moci- 
dade académica. 

Em  abril  rebentou  no  Porto  a  revolta  contra  o  governo 
■do  conde  de  Thomar  e  a  faVor  do  marechal  Saldanha.  A 
academia  secunda   logo   esse  movimento  revolucionário. 

O  rei  D.  Fernando,  commandante  em  chefe  do  exer- 
cito, sae  de  Lisboa,  acompanhado  de  um  luzido  estado- 
maior  e  numerosas  forças  militares  para  debelar  a  revolu- 


batalhão  académico  o  posto  de  alferes,  e  é  o  Sr.  José  Maria  Tavares 
Ferreira,  bondosíssimo  homem  e  honradíssimo  advogado  em  Ponta 
Delgada.  Também  é  felizmente  ViVo  um  outro  soldado  académico, 
que  sahiu  do  Porto  na  expedição,  que  é  o  sr.  conselheiro  Thomaz 
Nunes  de  Serra  e  Moura,  muito  digno  ex-presldente  do  Supremo  Tri- 
bunal de  Justiça.  Esse  e  Custodio  José  Vieira,  ambos  soldados  do 
batalhão  e  estudantes  do  3."  anno  jurídico,  ficaram  no  Algarve  por 
haverem  sido  nomeados  commlssarlos  civis  para  flscalisar  as  auctori- 
dades  d'aquella  provinda  e  fazer  activar  a  cobrança  das  contribuições. 


159     ■ 

ção.  Ao  chegar  a  Coimbra,  muitos  estudantes  acorrem  á 
Ponte  para  lhe  embargar  a  passagem.  Chegam  a  intima-lo 
para  retroceder.  O  rei  fica  conhecendo  a  atitude  da  aca- 
demia. 

Vae  hospedar-se  no  Paço  das  Escolas. 
Os   estudantes,    em   qualquer   parte   por   onde  passa 
D.  Fernando,  soltam  vivas  á  liberdade  e  á  pátria  e  gritos 
"hostis  contra  o  ministério  cabralino. 

O  rei,  que  é  bondoso,  sorri-se  e  corteja.  Mas  a  sua 
impressão  é  profunda.  Escreve  para  Lisboa  aconselhando 
a  demissão  do  governo.  (1) 

Passados  dias  retira-se  para  a  capital.  Uma  parte  das 
forças  do  seu  commando  havia-se  pronunciado  pela  revo- 
lução, e  para  isso  concorreram  alguns  estudantes. 

Poucos  dias  depois,  em  6  de  maio,  Saldanha  triumphante 
chegou  a  Coimbra  para  passar  revista  ás  tropas. 

Vae  alojar-se  na  Hospedaria  do  Lopes,  no  cães,  perto 
•da  embocadura  da  ponte.  O  largo  enche-se  logo  de  capas 
negras,  que  fazem  ao  marechal  uma  extraordinária  oVação. 
Nomeia-se  uma  deputação  de  cinco  estudantes  para  ir 
-cumprimenta-lo.  (2) 

Santos  e  Silva,  presidente,  escreve  (disse-me  Filippe 
<le  Quental),  de  improviso,  em  uma  loja  de  chapeleiro,  na 
Calçada,  a  saudação,  que  vae  lêr-lhe. 

Com  os  cinco  da  deputação,  entram  na  hospedaria  ou- 
tros rapazes.  O  Duque  (escreve  Camillo  Castello  Branco) 
ao  deparar-se-lhe  o  estudante  Carlos  Ramiro  Coutinho, 
abraça-o  com  lagrimas,  porque  descobre  n'elle  a  imagem 
do  seu  mallogrado  filho.  Conde  de  Almoster,  que  havia 
sido  o  seu  orgulho  e  suas  esperanças ! 

O  marechal  Duque  de  Saldanha  responde  á  mensagem 
da  academia  dizendo  que  «havia  realisado  as  suas  patrio- 


(1)  Veja-se  a  Narração  dos  acontecimentos  da  Regeneração,  em 
Coimbra,  publicada  em  successivos  números,  no  folhetim  do  Conim- 
bricense,  de  1884,  pelo  dr.  A.  L.  de  Sousa  Henriques  Secco. 

(2)  Narração  cit. 


140 


«ticas  esperanças,  e  que  para  isso  muito  tinha  concorrido- 
«a  briosa  mocidade  académica,  a  quem  tributava  os  maio- 
«res  signaes  de  reconhecimento  e  gratidão. . .»  (1). 


Seguiu-se  depois  aquelle  período  politico,  a  que  um 
d'esses  estudantes,  Torres  e  Almeida,  mais  tarde,  em  um 
dos  seus  discursos  parlamentares,  chamou  parenthesis  de 
paz  e  de  melhoramentos,  aberto  por  uma  espada  gloriosa 
e  fechado  pela  morte  do  estadista  insigne,  que  foi  Rodrigo 
da  Fonseca  Magalhães. 

No  seguinte  anno  lectivo,  em  que  José  Luciano  fre- 
quentava o  terceiro  anno,  a  Rainha  D.  Maria  II,  indo  visi- 
tar as  províncias,  esteve  em  Coimbra,  e  concedeu  um  per- 
dão de  acto,  o  que,  para  rapazes  de  todas  as  épochas,  era 
o  melhor  meio  de  pacificação  e  reconciliação. 

Seguiu  regularmente  os  seus  estudos,  e,  no  anno  de 
1853  a  1854,  matriculou-se  no  bP  anno.  Esse  tinha  de  ser 
o  mais  agitado  da  sua  vida  académica,  passando-se  graves 
acontecimentos,  em  qne  tomou  parte. 

Os  folguedos  do  Carnaval  de  1854  motivaram  gravíssi- 
mas desordens.  Estabeleceu-se  uma  violenta  lucta  entre 
estudantes  e  os  que  estes  chamam  os  futricas.  As  provo- 
cações e  os  conflictos  repetem-se.  Disparam-se  tiros  de 
lado  3' lado.  Ficam  estudantes  feridos.  A  academia  procura 
desforços  condignos  dos  seus  brios.  Formam-se  planos 
extraordinariamente  revolucionários.  Afinal  resolve  o  êxodo 
académico  da  Thomarada.  N'elle  seguem  os  dois  irmãos 
Castros. 

Mas  o  que  é  que  foi  a  Thomarada? 

No  dia  1  de  março,  trezentos  rapazes,  depois  de  se 
reunirem  no  Terreiro  da  Universidade,  sahem  de  Coim- 


(1)  Narração  cit. 


141 


bra,  em  ordem  e  na  mais  fraternal  união,  com  bolsa  com- 
mum,  sob  o  commando  de  dois  chefes  por  elles  escolhidos. 
Caminham  a  pé  pelas  estradas  e  dirigem-se  á  capital  do 
paiz. 

São  recebidos  de  braços  abertos  pelas  populações, 
sem  um  único  desacato  d'elles  ou  contra  elles.  Vão  en- 
toando cânticos  patrióticos  e  recitando  versos! 

Em  todos  os  estádios  da  sua  jornada,  com  a  calorosa 
eloquência  de  alguns,  pregam  independência  e  liberdade. 
Chegam  até  Thomar,  onde  o  governo  do  paiz  lhes  manda 
um  parlamentario,  Francisco  Damásio  Roussado  Gorjão, 
■deputado,  militar,  um  dos  ajudantes  do  Marechal,  presi- 
dente do  conselho  de  m.inistros,  e  formula-se  um  convénio 
para  retrocederem. 

Todas  as  faltas  foram  abonadas.  Todos  os  actos  da 
revolta  cobertos  pelo  esquecimento,  e  as  auctoridades  de 
Coimbra  foram,  pouco  depois,  substituidas. 


Deve  reconhecer-se  que  ha  em  todos  esses  aconteci- 
mentos da  vida  académica,  que  ficam  narrados,  uma  ex- 
pansão de  nobres  sentimentos  patrióticos,  bellos  lances 
fraternaes  e  educativos,  bem  differentes  de  outros,  em  que 
•do  sambenito  se  fez  gala! 

A  segunda  épocha  lectiva  do  anno  de  1854  estava  pas- 
sada e  rápida  passou  a  terceira  época. 

Encerraram-se  as  aulas. 

Soares  de  Passos,  no  formoso  soneto,  que  não  vem 
no  seu  livro  de  ouro,  pôde  dizer: 


Nossas  lides  findaram.  Chega  o  dia 
De  deixar  estas  margens  bonançosas 
Onde  colhemos  as  purpúreas  rosas 
Da  sciencia,  do  amor  e  da  poesia ! 


142 

Quem  sabe,  amigo,  onde  a  fortuna  impia 
Nos  leva  em  suas  ondas  procelosas. 
Apertemos  as  dextras  extremosas, 
Como  quem  um  adeus  eterno  envia  ! 


(1). 


O  estudante  José  Luciano  de  Castro  Pereira  Corte 
Real,  fez  acto  de  formatura  no  dia  11  de  julho  de  1854, 
sendo,  como  em  todos  os  annos,  approvado  nemine  dis- 
crepante. Ao  lado  do  assento  do  acto  se  declara  ter  o 
mesmo  estudante  sido  habilitado  para  o  acto  de  Direito 
Administrativo  em  uma  das  cadeiras  do  terceiro  anno, 
que  frequentou  espontaneamente,  e  de  que  fez  exame  con- 
junctamente  com  as  disciplinas  do  mesmo  anno. 

Obteve  depois,  nas  informações  litterarias,  a  classifi- 
cação de  1  M.  B.  e  12  B,  que  eram  informações  que  a 
faculdade  só  costumava  conferir  a  estudantes  de  distin- 
cto  mérito  e  que  davam  direito  ao  doutoramento,  se  qui- 
zesse  seguir  o  professorado  universitário. 

Os  acontecimentos  da  sua  Vida  de  estudante  o  prepa- 
raram e  adestraram  para  as  luctas  politicas  do  futuro. 

Cedo  lhe  madrugou  o  amor  por  ellas. 

Quantas  Vezes  anteveria  os  triumphos  da  tribuna  parla- 
mentar e  das  cadeiras  da  governança  nas  agitadas  reuniões 
do  Theatro  Académico  (infelizmente  desapparecido)  ou  nas 
discussões,  ao  ar  livre,  n'esse  Fórum  da  vida  escolástica, 
chamado  Largo  da  Feira,  onde  todos  passeámos  as  nos- 
sas illusões  e  desvanecimentos  e,  nos  sonhos  dourados  da 
imaginação  juvenil,  nos  julgámos  predestinados  para  pres- 
tar á  Pátria  algum  grande  e  extraordinário  serviço ! 

Pôde  julgar-se  o  calor,  com  que,  na  juventude,  tomou 


(1)  No  álbum  do  seu  condiscípulo  Gaspar  de  Queiroz  Botelho  de 
Almeida  e  Vasconcellos. 


143 


parte  em  tantos  acontecimentos,  inspirados  por  generosas 
idéas  e  pelos  mais  nobres  sentimentos,  um  espirito  que, 
no  decorrer  da  vida  publica,  nunca  teve  hesitações,  e  um 
coração,  que,  ainda  no  declinar  da  existência  e  nos  mais 
adeantados  annos  d'ella,  pulsou  sempre  ardente  e  fervoro- 
samente pela  causa  publica  e  por  tudo  que  julgou  do  inte- 
resse da  pátria  e  da  liberdade! 


II 


Um  dos  característicos  da  sua  personalidade  é  um  cons- 
tante labor!  E'  a  persistência  e  perseverança  no  trabalho! 
E'  a  sua  larga  e  inexgotavel  capacidade  para  elle ! 

Terminadas  as  lides  universitárias,  pouco  tempo,  na 
casa  paterna,  concedeu  ao  descanso  e  distracções  que 
eram  próprias  da  sua  edade. 

Partiu  para  o  Porto  afim  de  se  consagrar  á  profissãO' 
de  advogado. 

A  advocacia  portuense  era  então  constituída  por  uma 
brilhante  constelação  de  talentos  de  primeira  grandeza! 

Occupava  o  primacial  logar  a  grande  figura  de  Sebas- 
tião de  Almeida  e  Brito. 

Homem  respeitabilissimo! 

Um  sábio  de  luminosa  intelligencia! 

Apparecem  lampejos  d'ella,nos  seus  mais  insignificantes, 
trabalhos! 

Ministro  da  Justiça  da  Junta  Provisória  do  Supremo 
Governo  do  Reino,  durante  a  revolução  de  1846  a  1847, 
era  também  um  grande  liberal  e  um  grande  patriota ! 

Para  o  seu  concorridissimo  escriptorio  é  que  foi  prati- 
car o  novel  advogado.  Varão  tão  illustre  é  que  foi  o  seu 
mestre  na  advocacia !  Não  o  foi  por  muito  tempo.  Pelo 


144 


apreço,  que  logo  começou  a  fazer  dos  trabalhos,  que  con- 
fiava ao  discípulo,  e  pelos  elevados  honorários,  que  lhes 
taxava,  em  breve  lhe  deu  a  emancipação,  dispensando-se 
de  dirigi-lo ! 

Um  outro  advogado  haVia,  muito  distincto,  gosando  já 
então  de  grande  nomeada.  Era  Delfim  Maria  de  Oliveira 
Maia. 

Dotado  de  notável  intelligencia  e  rara  perspicácia  juri- 
dica,  eram  modelares  os  seus  trabalhos  forenses,  sendo 
ainda  hoje  invocados  e  seguidos  nos  tribunaes  os  que, 
depois  da  sua  morte,  foram  reunidos  em  livro,  ficando 
muitos  outros  sepultados  e  perdidos  nos  autos ! 

Era  Custodio  José  Vieira,  intelligencia  robusta,  advo- 
gado sabedor  e  jornalista  vigoroso,  mas  propenso,  quer 
como  advogado,  quer  como  jornalista,  ás  demasias  da  pa- 
lavra e  virulência  da  linguagem. 

Era  Joaquim  Marcelino  de  Mattos,  homem  já  de  si 
distincto  e  gentil  em  sua  pessoa  ! 

Causidico  illustre,  a  mais  eloquente  palavra  dos  tribu- 
naes portuenses,  jurisconsulto  de  alto  mérito,  fundador  e 
principal  redactor  da  Revista  de  Jurisprudência  (1856  a 
1859),  onde  se  encontram  trabalhos  seus  e  dos  collegas, 
cujos  nomes  ficam  citados,  de  um  grande  valor  scientifico 
e  pratico.  (E'  o  pae  do  distincto  homem  de  sciencia  Dr.  Jú- 
lio de  Mattos). 

Era  José  Moreira  da  Fonseca,  também  advogado  de 
<iistincto  mérito. 

Estes  foram  os  causidicos  com  quem  o  joven  advogado 
teve  de  defrontar-se  nas  lides  do  foro.  N'ellas  entrou  com 
galhardia,  conquistando  desde  logo  clientela  e  honrosa  no- 
meada. 

Batendo-se,  nas  luctas  da  palavra,  com  Marcelino  de 
Mattos  e  Custodio  José  Vieira,  algumas  d'essas  pugnas 
ficaram  celebres. 

Era  por  vezes  —  tendo  principalmente  este  ultimo  por 
antagonista  —  levado  a  acompanha-lo,  para  não  parecer 
fraco  ou  não  desmerecer  perante  o  publico,  na  Violência 
-da  linguagem. 


145 


«Esses  maus  hábitos  —  disse-me  um  dia  — eu  trouxe 
para  o  parlamento  e  tive  de  corrigir-me  d'elles.» 

Tomando  assento  na  camará  dos  deputados,  pela  pri- 
meira vez,  em  janeiro  de  1855,  nem  por  isso  abandonou 
a  sua  advocacia  no  Porto.  Fechado  que  era  o  parlamento, 
voltava  a  ella. 

Foi  em  um  d'esses  interstícios  legislativos  que,  em  fins 
de  1860,  interveio  em  uma  causa  criminal,  cujo  julgamento 
acompanhei  com  curiosidade  e  interesse,  embora  fosse 
apenas  simples  estudante  primeiranista  da  Universidade. 

E'  que  o  reu  era  também  estudante ;  e  o  que  se  pas- 
sou no  seu  julgamento  mostra  a  elevação  e  nobreza,  com 
que  José  Luciano  comprehendia  e  desempenhava  as  func- 
ções  de  advogado. 

Foi  o  caso  que  José  de  Sá  Coutinho  (depois  Conde 
da  Aurora,  muito  intelligenle  e  distincto  juiz,  meu  inolvi- 
dável companheiro  em  dois  tribunaes  de  segunda  instan- 
cia), sendo  estudante  do  4.°  anno,  foi  forçado  a  interrom- 
per os  seus  estudos,  recolhendo-se  á  casa  paterna,  em 
Ponte  de  Lima.  Ahi  se  lançou  na  politica  local  com  a  im- 
petuosidade do  seu  génio  e  a  imprudência  dos  seus  verdes 
annos. 

Escreveu  no  Braz  Tisana,  jornal  portuense,  uma  cor- 
respondência anonyma  com  gravissimas  accusações  ao 
presidente  da  camará  municipal,  que  era  um  advogado,  de 
bastante  nomeada  no  districto  de  Viana.  Este  chamou  o 
jornal  á  responsabilidade.  José  de  Sá  Coutinho  nobre- 
mente se  apresentou  a  acceita-la. 

Custodio  José  Vieira  foi  o  seu  defensor  e  José  Lu- 
ciano o  seu  accusador.  Aquelle,  vendo  que  não  podia 
livrar  o  seu  cliente  de  uma  fatal  condemnação  (que  veio  a 
ser  de  uma  pequena  pena  pecuniária),  quiz  que  o  adver- 
sário sahisse  do  tribunal  também  moralmente  ferido  e 
exauctorado.  Era  fácil  á  facilidade  de  Virulência  da  sua 
palavra ! 

Usando  de  todas  as  liberdades  da  defeza,  converteu 
esta  em  accusação,  ou  antes  na  exauctoração  do  auctor! 
José  Luciano,  que  havia  sido  de  uma  grande  correcção  na 

10 


146 


acciísaçào,  embora  pedisse  a  condemnação  do  reu,  teve 
na  réplica  de  tomar  maior  calor  para  cobrir  o  seu  consti- 
tuinte, castigando  mesmo  os  excessos  do  seu  coiiega,  mas 
sem  ferir  o  accusado,  que  nenhuma  culpa  tinha  dos  abu- 
sos da  palavra  do  seu  patrono  e  defensor. 

Por  tal  forma  correu  o  julgamento,  com  tanta  lealdade 
e  nobreza  foi  feita  a  accusaçào  que  Sá  Coutinho,  apezar 
de  condemnado  e  de  ser  extremamente  susceptível  em 
seus  brios  e  melindres,  ficou  sempre  grato  e  dedicado, 
toda  a  sua  vida,  ao  seu  accusador ! 

E'  que  a  comprehensão,  que  este  tinha  do  orador 
forense  era  tal  como  o  exigiam  os  velhos  mestres :  Vir 
honiis  dicendi  peritiis  ! 


A  advocacia,  para  os  que  teem  de  viver  d'ella,  é  sem- 
pre um  trabalho  absorvente  e  exgotante. 

Mas  não  para  um  tal  trabalhador!  Além  de  advogado, 
nunca  deixou  de  ser  jornalista ! 

Escrevia  artigos  sobre  assumptos  económicos  ou  admi- 
nistrativos, no  Commercio  do  Porto,  a  grave  e  ponderada 
folha,  que  ainda  hoje  existe  e  que  foi  sempre  de  muita 
exigência  e  rigor  para  os  escriptos  dos  seus  colaboradores. 

Sempre  prompto  para  todos  os  emprehendimentos,  que 
se  destinassem  á  causa  publica,  muito  especialmente  para 
os  do  jornalismo,  fundou,  em  1859,  o  Jornal  do  Porto 
com  José  Barbosa  Leão.  Era  d'este  a  propriedade  do  pe- 
riódico, que  logo  depois  passou  a  ser  também  da  A.  R. 
da  Cruz  Coutinho,  que  afinal  a  tornou  exclusivamente  sua. 

Sahiu  o  primeiro  numero  em  1  de  março  de  1859,  com 
o  programma  de  jornal  independente,  sem  nenhum  cara- 
cter partidário ;  e  o  artigo,  em  que  como  tal  se  apresenta, 
visivelmente  da  penna  de  José  Luciano,  é  notável  pela 
elevação  com  que  está  escripto  e  com  que  proclama  serem 
a  tolerância,  a  liberdade  e  a  justiça  os  seus  nomes  inspi- 
radores e  o  lêmma,  por  que  se  guiará  o  novo  periódico. 


147 

O  Jornal  do  Porto  tornou-se  logo  um  dos  mais  inte- 
ressantes, dos  mais  auctorisados  e  bem  redigidos  do  paiz  : 
e  d'elle  se  pode  dizer  que,  durante  a  sua  existência,  que 
não  foi  curta,  conservando  a  primitiva  feição  de  jornal 
alheio  a  qualquer  facção  partidária,  foi  sempre  uma  folha 
perfeitamente  honesta,  sem  especulações  interesseiras 
nem  cobardes  desfallecimentos,  ou  transigências  indeco- 
rosas. 

A  imprensa,  para  os  que  se  honravam  do  nome  de  jor- 
nalistas, era  então  um  sacerdócio  ! 

O  artigo  do  fundo  era  escripto,  ora  por  José  Luciano, 
ora  por  Barbosa  Leão,  mas  embora  sem  assignatura,  não 
se  confundiam  os  artigos  de  um  com  os  do  outro. 

Tinha  cada  um  d'elles  o  seu  estylo,  que  é  a  luz  do 
pensamento  sabida  do  fogo  e  calor  do  coração. 

José  Barbosa  Leão  era  também  homem  de  valor,  lar- 
gamente versado  em  todos  os  ramos  da  administração 
publica,  como  mostrou  no  desempenho  do  cargo  de  secre- 
tario geral  em  duas  províncias  ultramarinas. 

Francisco  de  Paula  Mendes,  jornalista  muito  dis- 
tincto,  que  havia  sido  redactor  do  Viannense,  escrevia  a 
revista  estrangeira  em  estylo  elegante  e  com  notável  ele- 
vação ! 

António  Augusto  Teixeira  de  Vasconcellos,  sob  o 
pseudónimo  de  Daniel,  escrevia  senlanalmente  uma  carta 
noticiosa  e  politica  de  Paris,  e  também,  para  o  folhetim, 
a  revista  dos  acontecimentos  scientificos,  litterarios  e  ar- 
tísticos da  França. 

Ramalho  Ortigão,  então  no  começo  da  sua  fulgurante 
vida  litteraria,  escrevia  semanalmente,  para  o  folhetim,  a 
Revista  do  Porto.  Foi  alli  que  se  revelou  e  fez  o  grande 
escriptor,  que  é !  A  sua  colaboração,  que  durou  muitos 
annos,  estendeu-se  mais  tarde  ao  noticiário,  que  se  tor- 
nou primorosamente  bem  feito. 

Entre  outras,  ainda  temos  na  lembrança,  pelo  seu 
relevo  litterario,  a  noticia  da  morte  da  infeliz  e  formosa 
Manoela  Rey. 

A  breve  trecho  o  Jornal  do  Porto  adquiriu  a  colabo- 


148 


ração  litteraria  mais  illustre  que  n'elle  podia  entrar!  Foi 
para  o  seu  folhetim  que  foram  escriptos  os  encantadores 
pequenos  romances,  colligidos,  em  1869,  em  volume  sob  o 
titulo  —  sS'6TÕ£'.s  da  Provinda,  pelo  seu  auctor,  Joaquim 
Guilherme  Gomes  Coelho —/////o  Diniz,  o  doce  e  suave 
realista,  o  inexcedivel  paisagista  litterario !  E  foi  também 
no  folhetim  do  Jornal  do  Porto,  que,  pela  primeira  vez, 
viram  a  luz  publica  essas  jóias  da  litteratura  portugueza, 
chamadas  As  Pupilas  do  Senhor  Reitor  e  A  Morgadinha 
dos  Canaviaes. 

A  correspondência  diária  de  Lisboa  foi  escripta  (que 
nos  lembre)  por  Augusto  Ernesto  de  Castilho  e  Mello, 
jornalista  distincto,  e  por  Bernardino  Pinheiro,  distincto 
homem  de  letras,  auctor  de  dois  apreciados  romances  his- 
tóricos. 

Basta  de  digressão.  Seja-nos  desculpada.  Conhecemos 
essa  folha  na  edade,  em  que  a  memoria  é  viva,  e,  por 
lembranças  posteriores,  a  ella  está  preza  a  nossa  sau- 
dade! (1). 

Não  me  propuz  occupar-me  do  sr.  José  Luciano  de 
Castro  como  jornalista,  mas  tive  de  fazer  referencia  a 
esta  sua  acentuada  e  preeminente  feição,  porque  anda  reu- 
nida a  outras  de  que  é  inseparável. 


Nas  columnas  do  Jornal  do  Porto  frequentamente 
appareciam  escriptos  revelando  a  envergadura  do  juriscon- 
sulto e  o  espirito  jurídico  do  seu  redactor. 

E'  assim  que,  logo  no  n.*"  89,  de  22  de  abril,  se  lê  um 
artigo,  assinado  pelo  seu  estylo,  em  que,  sacudindo  o  pó 
a  todos  os  velhos  bacamartes  da  emphiteuse,  advoga  a  sua 
reforma  pela  transformação  de  todos  os  prasos  de  vidas 


(1)  Tem  nota  no  fim. 


149 

em  prasos  fáteusins  contra  a  opinião  de  Correia  Telles, 
mas  sustentando  a  doutrina,  que  depois  foi  legislada  no 
artigo  1697  do  código  civil  e  que  se  esboçava  no  artigo 
1829  do  projecto  primitivo,  que,  n'esse  anno,  pela  primeira 

vez,  se  imprimiu! 

Nem  o  jornalista,  nem  o  parlamentar  absorveram  mtei- 
ramente  o  advogado.  Nos  primeiros  annos  da  sua  Vida 
politica,  nos  intervalos  das  funcções  legislativas,  voltava 
ao  escriptorio  de  advogado. 

Finda  porém  a  longa  legislatura  de  1860  a  1864— uma 
das  mais  fecundas  para  o  paiz  e  talvez  a  de  mais  trabalho 
e  mais  honrosa  para  o  illustre  parlamentar  -  entrou  no 
funcionalismo.  Foi  nomeado  director  geral  dos  próprios 
nacionaes.  Despe  então  a  toga  do  advogado  e  desapparece 

dos  tribunaes. 

O  seu  amor  pelas  sciencias  jurídicas,  o  culto,  que  lhe 
mereciam,  Vão  exercer-se  em  outro  campo.  É  na  impor- 
tantíssima revista  O  Direito  por  elle  fundada,  e  cuja  apre- 
ciação não  pode  ser  feita  n^este  logar. 

Mas  o  advogado  desappareceu  para  sempre?  Dedignou- 
se  do  exercício  da  profissão? 

Não !  Passados  muitos  annos,  já  depois  de  haver  sido 
presidente  do  conselho  de  ministros,  voltou  a  folhear  autos 
judiciaes!  Voltou  a  ser  advogado! 

É  que  em  julho  de  1891  falleceu  seu  sogro,  o  Dr.  Ale- 
xandre de  Seabra.  Este  era  o  grande  advogado,  de  bem 
sabida  nomeada,  a  cujo  escriptorio  affluiam  autos  penden- 
tes em  muitas  comarcas  e  nos  tribunaes  superiores.  Nos 
últimos  tempos  da  sua  vida,  impedido  pela  doença,  não 
lhes  pôde  dar  expedição.  Fallecendo,  havia  em  seu  poder 
uma  grande  acumulação  de  processos,  em  que  o  mandato 
conferido  não  havia  sido  desempenhado. 

O  sr.  José  Luciano  tomou  a  peito  o  ser  o  herdeiro 
não  só  dos  direitos,  mas  também  das  obrigações  do  seu 
grande  parente  e  grande  amigo.  Voltou  a  compulsar  autos 
judiciaes  e  a  escrever  n'elles.  Por  conhecimento  próprio 
podemos  dizer  que,  se  era  grande  e  illustre  o  primeiro 
patrono,  não  foi  menor,  nem  menos  illustre  o  segundo! 


150 


Podemos  affirmar  conscienciosamente,  pelo  nosso  estudo, 
que  os  constituintes  nada  perderam  com  a  substituição  do 
mandatário! 


Já  vae  muito  longo  este  artigo  e  ainda  teríamos  de 
falar  do  jurisconsulto! 

Mas  como  fazel-o?  A  obra  do  jurisconsulto  não  pode- 
ria apreciar-se  em  um  só  artigo. 

Ella  anda  espalhada,  largamente  espalhada,  pelos  pare- 


Uma  das  faces  da  casa  da  Anadia,  ondefalleceu  o  estadista 

ceres  das  commissões  parlamentares,  pelos  relatórios  dos 
seus  decretos  e  das  suas  propostas  ou  projectos,  por  mui- 
tos dos  seus  discursos  nas  duas  camarás,  quer  defenden- 
do, quer  atacando  projectos  de  lei;  e,  muito  principalmente, 


151 


pelos  quarenta  e  cinco  volumes  da  revista  O  Direito,  que 
fundou,  em  1868,  com  António  Alves  da  Fonseca,  e  que 
teve  uma  honrosa  influencia  e  alta  importância  nos  pro- 
gressos dos  nossos  estudos  juridicos.  Tudo  exigiria  um 
largo  espaço  e  uma  apreciação  condigna,  feita  por  penna 
competente,  vigorosa  e  illustre,  que  não  pela  minha! 

É  n'elle  admirável  a  alliança  do  jurisconsulto  com  o 
politico! 

Foi  um  fervoroso  sacerdote  da  sciencia  do  justo,  mas 
conservando  também  sempre  no  peito  o  fogo  sagrado  pe  os 
ideaes  políticos  da  sua  mocidade !  Justam  ac  tenacem  pro- 
positi  viram! 

Jornalista,  advogado,  politico,  jurisconsulto,  parlamen- 
tar, homem  de  Estado,  por  elles  terçou  armas  e  trabalhou, 
com  ardente  fé,  em  toda  a  sua  longa  vida! 

Que  descance  em  paz  o  infatigável  trabalhador,  que 
amou  a  sciencia  e  amou  a  pátria;  e  que  a  ambas  serviu  e 
a  ambas  honrou! 


NOTA 


Conhecemos  essa  folha  na  edade,  em  que  a  memo- 
ria é  viva,  e,  por  lembranças  posteriores,  a  ella  está 
presa  a  nossa  saudade. 


(Pags.  148) 


O  que  escreveu  isto  conheceu  bastantemente  os  redactores  e 
collaboradores  áo  Jornal  do  Porto,  porque  foi  leitor  assiduo  desde 
o  seu  apparecimento  e  porque  —  ainda  que  sete  annos  depois  d'elle  — 
foi  jornalista  incipiente  na  honrada  folha  do  Porto.  Para  ella,  durante 
um  certo  periodo,  antes  de  ser  fundado  o  Echo  do  Lima,  escreveu 
semanalmente  umas  modestas  cartas  limienses. 

D'esses  tempos  lhe  ficou  o  amor  pela  instituição,  que  é  a  mãe  da 
liberdade,  e  sem  a  existência  da  qual,  em  toda  a  sua  plenitude,  não 
pode  haver  governos  livres. 

E  porque  assim  pensava  o  illustre  homem  de  estado,  que  tanto 
se  di-tingniu  e  hourou  nas  lides  do  jornalismo,  queremos  deixar  aqui 
transcriptas  as  passagens  de  uma  biographia  de  Lamartine,  em  que 
se  narra  o  seu  proceder  para  com  a  imprensa  por  occasião  da  Revo- 
lução de  1&48. 

É  a  .seguinte : 

Plus  tard,  Lamartine,  membre  du  Qouvernement  provisoire,  mi- 
nistre des  Affaires  étrangères,  défend  et  sauve  celui-là  même  qui 
attaque  le  GouVernement  avec  le  plus  de  violence.  Voici  en  quelles 
circonstances : 

Certains  journaux,  tels  le  Constitutionnel,  V Assemblée  Nationale, 
la  Presse,  dénonçaient  le  GouVernement  provisoire  à  toutes  les  défian- 
ces;  ils  Taccusaient  de  demolir  et  de  ne  pas  rebâtir;  ils  Taccusaient 
de  lenteur  criminelle,  ils  Taccusaient  d'être  Tauteur  de  troubles  et  de 
ruines. 

Le  journal  d'Émile  de  Girardin,  La  Presse,  sous  ses  apparences 
socialistes,  semble  réactionnaire  au  peuple.  Le  GouVernement  est 
vilipendé,  et  le  peuple  va  manifester  contre  les  journaux  qui  lui  sont 
hostiles. 


154 


Rue  Montmartre,  le  29  mars,  à  huit  heureá  du  soir,  des  attrou- 
pements  se  forment  devant  rimprimerie  du  journal  La  Presse. 

La  foule  grossit,  s'excite,  et,  furieuse,  commence  à  assiéger  les 
ibureaux. 

<  A  bas  la  Presse  !  Mort  à  Qirardin!-  crie-t-on. 

Encore  un  instant  et  on  va  enfoncer  les  portes;  mais  la  garde 
nationale,  arrivée  à  temps,  dégage  les  bureaux,  sans  toutefois  par- 
venir  à  dissiper  Taitroupement. 

<  Girardin  est  coupable  de  trahison  envers  la  Republique !  Justice!» 
crie-t-on  encore. 

La  garde  nationale  a  demande  des  renforts ;  le  general  Courtais 
arrive  et  parvient  à  calmer  Teffervescence. 

Pendant  quil  donne  des  ordres,  pendant  qu'il  parlemente  avec  la 
foule,  quelques  citoyens  sont  admis  dans  le  cabinet  d'ÉmiIe  de  Girar- 
din, tandis  que  d'autres  courent  chez  Lamartine  réclamer  du  Gou- 
Vernement  un  terme  aux  outrages  de  la  Presse.» 

La  réponse  de  Lamartine  calma  les  plus  acharnés.  et  on  la  trouva, 
le  lendemain,  dans  la  proclamation  qui  mit  fin  aux  dangers  courus 
par  les  divers  journaux  plus  ou  moins  hostiles  au  Gouvernement. 

Voici  cette  réponse:  <:La  Republique  exige  Tinviolabilité  de  la 
pensée  humaine ;  elle  admet  Ia  liberte  d'être  injuste  envers  un  gou- 
vernement; le  Gouvernement  ne  doit  répondre  qu'en  sauvant  la 
patrie  de  ses  ennemis  au  dehors  et  de  tout  désordre  au  dedans.» 

La  Presse  et  Émile  de  Girardin  étaient  sauvés. 


(lamartine  par  Gabriel  Clouzet  et  Charles  Fegdal.) 


A  uma  virtuosa  memoria 


(1) 


(Na   morte   da   Excellentissima  Senhora 
D.  Anna  dos   Prazeres   Calheiros   de  Magalhães) 


Nunca  é  tarde  para  rememorar  virtudes!  As  boninas 
da  primavera,  cortadas  pela  enxada  do  coveiro,  ainda  não 
poderam  reverdecer!  As  lagrimas  ainda  afluem  aos  olhos; 
é  pungente  a  dôr;  e  imperecedoura  será  a  saudade  no  co- 
ração dos  que  a  conheceram  e  amaram ! 

A  5  de  abril  do  corrente  anno,  falleceu,  em  Vianna  do 
Castello,  uma  senhora  que  foi  um  raro  complexo  das  mais 
benévolas  virtudes:  deixou  de  bater  um  coração  que  foi 
cofre  dos  mais  puros  affectos,  fonte  inexaurível  do  bem, 
altar  onde  tiveram  culto  todos  os  sentimentos  bons  e  deli- 
cados. 

A  sua  vida  escreve-se  em  duas  phrases:  ninguém  a 
excedeu  na  practica  do  bem,  ninguém  com  mais  resi- 
gnação soffrcu  o  mal! 

D'ella  se  pôde  dizer  o  que  um  dos  maiores,  se  não  o 
maior,  dos  escriptores  contemporâneos  disse  da  vida  de 
uma  illustre  titular:   «foi  um  grande  exemplar  de  moral 


* 


(1)  Este  artigo  foi  escripto  a  bordo  de  um  paquete  de  Africa  em 
viagem  de  Cabo"verde  para  Lisboa,  em  maio  de  1875,  sendo  depois 
publicado  no  n.°  896  do  tcho  do  Lima,  de  1  de  julho  d'esse  anno. 

De  novo  se  publica,  porque  são  inolvidáveis  as  virtudes  da  sancta 
senhora  e  constituem,  ainda  agora,  a  melhor  consolação  e  o  melhor 
património  na  vida  de  suas  filhas  ! 


156 


social  e  christã  que  tanto  precisam  estes  nossos  tempos, 
abundantes  de  sublimes  tlieorias,  tristemente  minguados 
na  practica  d"eilas.» 

Ao  chegar-nos  a  noticia  do  seu  passamento  pezou-nos 
dolorosamente  não  podermos  com  o  nosso  respeito  tomar 


Solar  do  Conde  da  Barca,  na  fregnezia  de  Sá  (Ponte  de  Lima) 

um  logar  no  sahimento,  que  levou  o  féretro  da  Virtuosa 
senhora  ao  cemitério  de  Vianna.  Prohibia-o  a  immensidade 
do  mar! 

Paguemos  pois  por  esta  forma  o  tributo  de  respeito  a 
tão  nobre  e  sancta  memoria ! 

A  mão,  que,  por  vezes,  traçou  a  chronica  das  festas  e 
alegrias  da  sua  casa,  colhe  hoje,  no  campo  triste  da  morte, 
um  goivo  para  desfolhar  na  sua  sepultura ! 


A  exC"^  snr.^  D.  Anna  dos  Prazeres  Calheiros  de 
Magalhães  Araújo  Baceliar  nasceu  em  1  de  abril  de  1818. 
Casou  a  12  de  setembro  de  1854  com  o  exC""  snr.  An- 


157 

tonio  de  Araújo  de  Azevedo  Pereira  Pinto,  morgado  de 
Sá,  e  representante  de  um  dõs  mais  distinctos  liomens  de 
Portugal  do  fim  do  século  passado  e  do  principio  d'este, 
António  de  Araújo  de  Azevedo,  conde  da  Barca  (1). 

Habitando  successivamente  em  differentes  terras  d'esta 
provincia,  e  geralmente  conhecida  n"ella;  tendo  sempre, 
pelas  larguezas  e  bizarria  que  tanto  estavam  no  caracter 
de  seu  marido,  franca  a  sua  casa  para  as  pessoas  com 
quem  estavam  relacionados,  e  recebendo  ali  todos  os  seus 
amigos  a  hospedagem  mais  cordeal,  mais  sincera,  mais 
larga,  e  mais  intima,  teve  a  illustre  senhora  constante 
occasião  de  patentear  os  dotes  de  bondade  e  de  distincção 
que  a  Providencia  lhe  prodigalisara. 

Filha  de  uma  das  mais  distinctas  famílias  da  provincia; 
alliada  a  outra  que  conta  nomes  illustres  nas  fastos  da 
independência  e  da  liberdade  da  pátria ;  compossuidora  de 
uma  importante  fortuna;  irmã  de  um  exemplar  e  bondo- 
-sissimo  caracter,  Nicolau  Calheiros,  que  pertence  ao  nu- 
mero d'aquelles  homens  que  Deus  dá  para  consolação  ás 
causas  vencidas  para  representarem  o  que  ha  de  nobre, 
de  digno  e  de  respeitável  no  passado,  a  exc."^^  snr/'^ 
D.  Anna  dos  Prazeres  Calheiros  de  Magalhães  de  Araújo 
Bacellar  nunca  deixou  que  o  fumo  das  Vaidades  humanas 
empanasse  a  limpidez  das  suas  virtudes;  que  o  prejuízo 


(1)  António  de  Araújo  de  Azevedo,  conde  da  Barca,  enviado 
extraordinário  ás  cortes  de  Haya  e  S.  Petersburgo,  ministro  plenipo- 
tenciário junto  á  Republica  Franceza  em  1795,  1797  e  1801,  conse- 
lheiro de  estado,  ministro  e  secretario  de  estado  dos  negócios  da 
marinha  e  ultramar  em  1814,  primeiro  ministro  em  181",  sócio  da  Aca- 
demia Real  das  Sciencias,  grã-cruz  das  ordens  de  Christo  e  da  Torre 
e  Espada,  da  de  Izabel  a  Catholica  de  Hespanha,  e  da  Legião  de 
Honra  de  França,  nasceu  em  Ponte  de  Lima  a  14  de  maio  de  1754  e 
morreu  a  21  de  junho  de  1817  no  Rio  de  Janeiro,  para  onde  havia 
acompanhado  a  corte  por  occasião  da  entrada  do  exercito  francez  em 
Lisboa.  E'  muito  conhecido  no  mundo  litterario  por  uma  defeza  de 
Camões  contra  Monsieur  de  Ia  Harpe. 

Nas  Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias  se  encontra  o 
seu  Elogio  Histórico  por  Francisco  Mendes  Trigoso. 


158 


dos  pergaminhos  nobiliarchicos  alterasse  a  lhaneza  e  ame- 
nidade, tão  fina,  tào  deh'cadj,  e  tão  christà,  do  seu  tracto, 
égua!  para  os  grandes  como  para  os  humildes,  e  entre  as 
boníssimas  pessoas  da  sua  familia  era  apontada  a  sobre- 
excellencia  dos  quilates  da  sua  bondade. 

Era  muito  para  vêr  como  falava  aos  pequenos,  como 
prestava  attenção  aos  pobresinhos,  que  se  lhe  approxima- 
vam !  Nunca  um  infortúnio  lhe  bateu  á  porta  que  não  fosse 
soccorrido. 

Tinha  sempre  para  os  pobres  uma  esmola  e  uma  pa- 
lavra de  conforto ! 

Presenteara  o  ceu  o  seu  lar,  cercando-o  de  meninas, 
que  são  hoje  continuadoras  das  virtudes  da  mãe.  Dera-lhe 
Deus  a  missão  mais  sublime  da  mulher,  a  missão  de  mãe ! 

Ser  mãe!  Ligar  as  mãos  das  tenras  avesinhas  humanas 
para  a  supplica  ao  Omnipotente;  ensinar-lhes  a  balbuciar 
uma  prece;  prender-nos  para  sempre  pelo  amor,  que  um 
dia  nos  ha-de  afastar  dos  perigos  e  abysmos  da  existên- 
cia, segredando-nos  as  palavras  —  lembra-te  que  fazes 
chorar  tua  mãe;  fazer  o  que  não  podem  fazer  as  esco- 
las, nem  os  livros,  nem  as  academias,  —  a  formação  do 
coração:  tal  é  a  missão  das  mães! 

E  a  exc."'''  snr.^  D.  Anna  dos  Prazeres  Calheiros  de 
Araújo  Bacellar  soube  elevar-se  á  altura  da  sua  missão ; 
soube  ser  mãe,  não  pela  severidade  dos  rigores,  mas  pela 
sublimidade  dos  exemplos! 

Era  tanta  a  abundância  da  sua  bondade,  tão  larga  a 
conformidade  do  seu  animo  que  as  amarguras  communs  a 
todo  viver  humano  passavam  por  ella  sem  a  alterar.  Tinha 
porém  o  seu  coração  de  esposa  extremosissima  de  soffrer 
a  mais  dura  provação  para  elle. 

A  9  de  agosto  de  1868  a  morte  roubou-lhe  o  esposo. 
Achou-se  no  mundo  sem  aquella  enérgica  vontade. 

Soffreu  duramente.  Cedeu  porém  a  dôr  á  virtude.  Tinha 
a  cumprir  deveres.  Resignou-se. 

Era  para  admirar  o  contraste  que  então  se  lhe  notava. 
Coberta  com  os  crepes  da  viuvez;  fulgurando-lhe,  na  phi- 
sionomia  plácida  e  bondosíssima,  as  rosas  que  attestam  o 


159 


vigor  da  existência,  e  coroada  já  pelos  cabellos  prateados^ 
e  embranquecidos  em  poucos  mezes. 

Ninguém  lhe  pôde  notar  uma  contracção  de  desespero, 
um  gesto  de  impaciência  ou  enfado! 

Se  ás  vezes  as  lagrimas  lhe  assomavam  aos  olhos,  logo 
um  sorriso  de  piedosa  esperança,  de  conformidade,  de  re- 
signação lhe  adejava  aos  lábios. 

Era',  personalisada  e  real,  a  doce  imagem  da  Resigna- 
ção, tantas  vezes  reproduzida  na  tela  maravilhosa  dos  pin- 
tores christàos! 

Estava  porém  resolvido,  nos  impenetráveis  arcanos  da 
Providencia,  que  a  sua  alma  sancta  passasse  pelo  crisol 
de  maiores  amarguras. 

Veio  pois  a  doença  dolorosa  e  incurável,  veio  o  pade- 
cer acerbo,  veio  a  certeza  da  morte,  e  de  deixar  sem  a 
maternal  direcção  as  filhas  que  tanto  amava ! 

Foi  crudelissimo  o  seu  soffrer !  Bem  poderá  a  desven- 
turada senhora  interrogar  a  própria  Divindade,  como  na 
sua  immensa  dôr  fizera  Job,  o  grande  mytho  da  paciência 
humana,  e  dizer-Ihe: 

. . .  Não  me  condemnes,  ouve-me, 
Por  que  assim  me  julgaste?  Acaso  é  digno 
De  ti  calumniares-me,  avexar-me 
A  mim  que  sou  de  tuas  mãos  feitura? 

Porque  ao  dia 
Do  cárcere  materno  me  has  trazido? 
Oxalá  que  não  vista  perecera 
De  olho  nenhum  vivente,  e  houvera  sido 
Como  se  nunca  fosse,  —  trasladada 
Do  ventre  á  sepultura!  (1) 

Estas  interrogações  tremendas,  estes  gritos  pungentes^ 
que,  representado  os  gritos  da  humanidade,  um  enorme  e 
incógnito  poeta  põe  na  bocca  do  maior  modelo  de  paciên- 
cia, de  que  rezam  as  letras  sagradas,  não  os  soltou  ellaí 


(1)  Job,  cap.  X,  Garrett,  Camões,  cant.  II. 


160 

Acceitou  resignada,  e  como  vindas  de  Deus,  todas  as 
dores.  Esperou  tranquilla  o  momento  fatal.  A  sua  alma 
pura  não  se  arreceava  da  morte:  e,  quando  ella  se  avisi- 
nhava,  despediu-se  das  filhas,  que,  como  anjos  do  Senhor, 
lhe  Velavam  o  leito  de  agonia ! 
Despedida  solemne ! 

E  que  expressão  ha  ahi  na  terra, 
Em  lingua  de  homens,  que  traslade  ao  vivo 
Todo  esse  accumular  de  sentimentos 
Que  em  si  de  tal  instante  o  adeus  encerra.  (I) 

Depois. . .  chegado  o  momento  supremo,  hora  solemne 
e  tremenda,  em  que  os  horisontes  do  mundo  desappare- 
cem,  e  começam  já  a  surgir  os  do  infinito  e  da  eterni- 
dade, ella  entreviu  Deus  que  ia  premiar  as  suas  distinctas 
virtudes  e  pediu-lhe,  com  certeza  lhe  pediu,  que  transfor- 
masse as  suas  dores  em  felicidades  para  os  que  mais 
amava! 

Que  assim  seja. 


(1)  Garrett,  cit. 


Luiz  Corrêa  Caldeira 


Luiz  Corrêa  Caldeira  (Luiz  Arsénio  Marques  Corrên 
Caldeira,  nos  registos  universitários  e  no  Diccionario 
Bibliográfico,  de  Innocencio)  nasceu  na  villa  de  Ponte 
de  Lima  em  9  de  janeiro  de  1827,  na  parte  da  povoação, 

11 


162 


que  fica  iia  margem  direita  do  Lima,  denominada  Alcni 
da  Ponte,  pertencente  á  freguezia  rural  de  Sancta  Marinha 
de  Arcuzêlo,  em  cuja  igreja  se  baptisou. 

Era  mais  novo  doze  annos  do  que  seu  irmão  António, 
o  iliustre  funccionario  e  parlamentar,  de  quem  já  me  oc- 
cupei  n'este  livro. 

Ainda  creança  sahiu  com  seus  pães  da  terra  em  que 
nasceu  e  parece  que  nunca  mais  a  ella  Voltou. 

Filho  de  um  official  superior  do  exercito,  na  edade 
própria,  entrou  no  Collegio  Militar,  e  ali  cursou  os  pri- 
meiros estudos,  que  o  encaminhavam  para  a  profissão  das 
armas,  a  que  se  destinou. 

Nos  annos  de  1845  a  1844,  1844  a  1845  e  de  1845  a 
1846,  encontra-se,  nas  Pautas  ou  Relações  dos  Estudan- 
tes da  Universidade  de  Coimbra,  matriculado  no  1.°,  2.^ 
e  5.'^  anno  das  Faculdades  de  Mathematica  e  Philosophia. 

Sendo  capitão  de  infantaria  e  secretario  do  Azylo  dos 
inválidos  Militares,  em  Runa,  foi  eleito  deputado  pelo 
circulo  eleitoral  de  Torres- Vedras  para  a  legislatura,  que 
durou  de  7  de  julho  de  1858  a  26  de  novembro  de  1859. 

Falleceu,  aos  52  annos,  no  dia  8  de  agosto  de  1859. 

Foi,  como  não  podia  deixar  de  ser,  um  sentimental, 
um  amoroso!  Ainda  muito  novo,  casou  com  uma  senhora 
iliustre,  da  familia  dos  Condes  de  Sampaio,  que  deixou 
viuva.  Amou-a  apaixonadamente! 

Da  sua  vida  somente  mais  podemos  dizer  que  foi:  em 
politica,  um  eonservador;  em  moral,  um  virtuoso;  em 
religião,  um  erentef 


N'essas  poucas  linhas  ficam  compendiados  todos  os 
factos  da  vida  particular  e  publica  d'esse  homem,  que, 
peio  talento,  foi  verdadeira  e  grandemente  iliustre! 

Quasi  pode  dizer-se  que  a  sua  Vida  não  tem  historia, 
nem  se  presta,  pelo  seu  retrahimento  e  modéstia,  á  bio- 
graphia ! 


165 

E'  como  poeta  de  uma  alta  e  fecunda  inspiração,  que 
elle  tem  direito  a  um  logar  de  honra  nos  fastos  de  oiro  da 
litteratura! 


II 


Coimbra  é  sempre  a  terra  fecunda  e  bem  fadada  da 
poesia!  Nenhuma  outra  ha  que  mais  a  faça  nascer;  que 
mais  a  bafeje;  que  mais  a  acalente  e  acaricie! 

Berço  amoroso  de  poetas! 

Tem-no  sido  sempre  desde  Camões  e  Sá  de  Miranda 


igreja  de  Santa  Marinha  de  Arcnzêlo,  onde  o  poeta  foi  baptizado. 

a  Garrett,  Castilho,  João  de  Lemos,  Gonçalves  Dias, 
Rodrigues  Cordeiro,  Soares  de  Passos,  Silva  Mattos,  João 
de  Deus,  Anthero,   Theophilo  Braga,  Guerra  Junqueiro, 


164 


Crespo,  João  Penha,  Cândido  de  Figueiredo,  António 
Feijó,  Queiroz  Ribeiro,  Eugénio  de  Castro  e  António  No- 
bre! 

E  tantos,  tantos  outros! 

São  da  épocha,  em  que  viveu  em  Coimbra,  os  primei- 
ros Versos  de  Luiz  Corrêa  Caldeira. 

Aiii  nos  apparece  fazendo  parte  da  plêiade  de  poetas  do 
Trovador,  no  qual  collabora  com  as  poesias:  A  Nuvem, 
A  Serra  do  Monte  Juncto,  As  Lagrimas  da.  Rosa, 
O  teu  nome,  e  ainda  com  a  que  dedica  ás  iniciaes  A.  M.  M. 

Versos  dos  16  aos  20  annos! 


Mas  que  significação  litteraria  e  Valor  tem  esse  campo 
da  sua  iniciação  poética,  chamado  O  Trovador? 

O  Trovador  foi  um  jornal  poético,  creado  por  impulso 
e  iniciativa  de  João  de  Lemos,  e  que  depois  constituiu  o 
iiVro,  que  assim  é  designado:  —  O  Trovador,  collecção 
de  poesias  contemporâneas  por  uma  sociedade  de  aca- 
démicos (Coimbra,  Imprensa  de  Trovão,  1848). 

Na  pagina,  que  precede  este  titulo  da  obra,  vem  o 
nome  de  Luiz  Corrêa  Caldeira  entre  os  nomes  dos  re- 
dactores e  collaboradores,  que  são:  António  Gonçalves 
Dias  —  o  grande  poeta  brazileiro  —João  de  Lemos,  A.  X. 
Rodrigues  Cordeiro,  Augusto  Lima,  José  Freire  de  Serpa, 
Couto  Monteiro,  Castro  Freire,  António  de  Serpa  e  outros. 

Lopes  de  Mendonça,  que  Bulhão  Pato  (I)  diz  que  tinha 
na  fronte  o  sêllo  do  génio  e  da  desventura,  talento  que 
brilhou,  como  um  astro,  e  que,  ainda  em  vida,  o  apagou 
a  loucura,  nas  Memorias  da  Litter atura  Contemporânea, 
consagra  largas  paginas  á  apreciação  critica  das  poesias 
e  dos  poetas  do  Trovador,  a  que  chama  «livro  que  ha-de 


(IJ  Sob  os  Cl/prestes,  pag.  97. 


105 


«Viver  no  futuro;  campo  onde  fizeram  as  primeiras  provas 
«talentos  distinctos;  estádio  poético,  que  marca  o  alvore- 
«cer  de  um  movimento  littcrario  e  reflecte  as  aspirações 
«de  uma  nova- escola.»  (1) 

Depois  de  esta  e  outras  apreciações  muito  honrosas, 
assumindo  a  alta  imparcialidade  de  juiz,  o  critico  aquilata 
o  Valor  das  poesias  do  livro,  em  seu  conjuncto,  nos  se- 
guintes períodos,  que  entendemos  dever  transcrever  pela 
auctoridade  que  dão  aos  seus  julgamentos: 


O  talento  —  diz  — nunca  se  apreciou  com  um  ponto  de  admiração. 

A  critica  não  consiste  nas  cortezias  poéticas,  que  precedem  quasi 
sempre  os  ín-folios  do  tempo  de  El-Rei  D.  João  V:  para  ser  provei- 
tosa é  necessário  que  seja  inteligente:  sendo  inteligente  obedece 
antes  de  tudo  aos  preceitos  do  gosto  e  ás  leis  que  o  génio  creou  para 
a  arte  e  para  a  poesia. 

O  principal  defeito  do  Trovador,  a  meu  vêr,  é  estar  encerrado 
n'uma  escola  muito  limitada  de  sentimentos  individuaes. 

A  excepção  do  Sr.  João  de  Lemos  e  do  Sr.  Rodrigues  Cordeiro, 
os  poetas  cantam  apenas  a  virgindade  das  suas  comoções,  em  face 
da  natureza  e  dos  seus  Íntimos  desejos.  É  o  eterno  tliêma  do  amor, 
assimilado  ás  opulentas  evocações  do  mundo  exterior ;  pantheismo 
do  sentimento,  aonde  a  idealidade  ás  vezes  se  perde  na  divagação  da 
descripção  material :  —  no  cálix  da  flor  pendido  para  a  terra;  no  desa- 
brochar da  rosa  orvalhada  pelos  prantos  da  aurora  —  no  escoar  tre- 
mente da  fonte  q.ue  murmura  — no  scintiiar  das  estrellas  qme  doude- 
jam  —  no  reflexo  encantado  da  lua,  que  torna  um  cinto  de  saphiras  o 
rio  onde  mostra  a  palidez  da  sua  face:  são  nuvens  que  andam  perdi- 
das pelos  plainos  do  ceu,  e  que  o  poeta  baptisa  com  os  mais  doces 
nomes  e  interpela  com  os  mais  ternos  queixumes. 

Não  formulamos  uma  accusação,  mas  manifestamos  apenas  um 
facto. 

Para  engenhos  moços,  que  ainda  não  sympathisaram  com  as  gran- 
des questões  em  que  se  revolve  a  humanidade;   que  vêem  apenas 


(1)  Ricardo  Guimarães,  Visconde  de  Benalcanfôr,  escreveu  o 
seguinte: 

«Na  historia  da  arte  moderna,  o  Trovador,  de  Coimbra,  é  mais 
do  que  um  marco  miliario,  é  um  monumento  ornado  de  todas  as  graças 
do  lyrismo  moderno  (Rev?.  Contemp.  de  Port.  e  Brazil,  biografia  de 
Thomaz  Ribeiro).. 


166 


no  liorisoiite  da  vida  uw.a  nuilher,  bella  como  os  seus  sonhos  encan- 
tados, é  este  o  eterno  canto;  canto  que  nunca  esmorece;  que  resus- 
cita  todos  os  dias  com  fervor  de  novas  illusões;  que  adormece  a 
Laura  de  Petiarclia;  que  faz  palpitar  de  emoção  a  Beatriz  de  Ber- 
nardim Ribeiro;  que  debulha  em  lagrimas  a  saudosa  Natércia;  canto 
phrenetico  que  é  mais  um  anhelar  ardente  do  que  uma  paixão  reali- 
sada;  que,  se  não  é  assim,  quasi  sempre  se  abysma  no  desespero  da 
traição,  ou  desencantamento  de  posse;  que  morre  como  flores  cres- 
tadas pelos  primeiros  nortes  do  inverno,  envolvidas  na  torrente  que 
as  cospe  nas  margens  sem  bellêsa  e  sem  perfume. 

A  breVe  trecho  Veremos  como  Luiz  Corrêa  Caldeira 
foi  um  dos  que  mais  depressa  se  emancipou  d'esta  escola. 

A])reciando  depois  cada  um  dos  poetas  do  Trovador, 
Lopes  de  Mendonça  diz: 

O  Sr.  Luiz  Corrêa  Caldeira  estreou-se  brilliantemente,  sobre- 
tudo na  Nuvem  e  nas  Lagrimas  da  Rosa:  tem  direito  ao  titulo  de 
poeta. 

Entretanto  a  terceira  oitava  da  Nuvem  está  tocada  de  gongorismo, 
que  nos  não  agrada  muito.  O  Teu  Nome  recorda  demasiadamente  La- 
martine,  e  lia  um  Eolo,  que  nos  faz  mau  effeito  por  ser  recordação 
clássica  mal  trazida  n'essa  poesia  toda  afinada  no  mysticismo  christào. 


Devem  ser  d'essa  épocha,  isto  é,  dos  desoito  aos  vinte 
ou  vinte  e  dous  annos,  os  versos  escriptos  no  álbum  de 
Rodrigues  Cordeiro. 

Para  aqui  os  trasladamos,  como  amostra  e  documento 
da  feição  lyrica  do  poeta: 

Tu  que,  nas  horas  meigas  do  crepúsculo. 
Vês,  n'um  ceu  que  roxeia  o  fim  do  dia, 
Levantar-se  da  purpura  do  liorisonte 
A  pensativa  imagem  da  Poesia; 

Tu  que  lês,  com  teus  olhos  distrahidos. 
Nas  paginas  sem  fim  da  imensidade; 
Que  escutas,  nos  lamentos  do  Oceano, 
O  longo  respirar  da  eternidade; 


167 

Tu  que  sentes  gemer,  em  cada  follia, 
Um  acento  da  lyra  do  Senlior; 
Tu  que  descobres,  na  mudez  dos  astros, 
Os  mysterios  da  mão  do  Creador; 

Fita,  ás  vezes,  no  azul  do  firmamento, 
Da  rainha  da  noite  o  rosto  baço, 
E  talvez,  apezar  da  negra  sorte. 
Nosso  pensar  se  encontrará  no  espaço! 

Encontram-se  estes  versos  em  uma  colecção  de  poe- 
sias escolhidas  dos  melhores  poetas  contemporâneos  e 
que  se  denomina  Lvsia  Poética  (Rio  de  Janeiro,  Typ.  de 
F.  O.  Regadas,  1857).  Lendo-os  um  dia  ao  joVen  magis- 
trado e  meu  querido  amigo,  António  de  Magalhães  Barros, 
nobre  coração  apaixonado  por  tudo  que  interessa  á  gloria 
da  sua  terra,  tanto  bastou  para  os  publicar,  com  um  pe- 
queno artigo  em  um  annuario  de  Ponte  de  Lima,  onde  o 
poeta  era  absolutamente  ignorado  e  desconhecido,  mesmo 
dos  que  lá  lêem  e  desejam  aprender! 


Vamos  agora  falar  do  periodo  da  sua  Vida  litteraria, 
em  que  o  poeta  segue  outro  ideal:  em  que  alonga  a  Vista 
para  mais  largos  horisontes  e  longínquas  regiões. 

Nascido  na  ridente  terra  do  Minho,  como  diz  um  poeta: 


Onde  o  Lima  a  ponte  morde 
Com  dentes  de  cristal  fino. 


168 

ou,  como  disse  o  Bernardes: 


Junto  do  Lima,  claro  e  fresco  rio, 
Que  Lethes  se  chamou  antigamente. 


O  rio  que  verás  tão  socegado 

Que  té  parece  se  arrepende 

De  levar  agua  doce  ao  mar  salgado ; 


não  podia  haver-se  esquecido  das  formosas  e  Verdejan- 
tes paisagens,  no  meio  das  quaes  abriu  os  olhos  á  luz 
e  passou  a  sua  primeira  infância,  lembranças  essas, 
que  —  como  diz  Castilho  —  rescendem  aos  beijos  e 
leite  da  feliz  meninice,  e  que  esta  para  sempre  regista. 


Alem  da  Ponte.  —  Margem  direita 
Igreja  de  Sancto  António  da  Torre- Velha  e  Campo  do  Amedo 

Mas  a  sua  musa  não  quiz  h'mitar-se  a  voar,  como  abe- 
lha doirada,  pelos  campos  da  infância  e  da  mocidade;  pelos 
sinceiraes  floridos  do  Lima  e  do  Mondego.  Tinha  forças  e 
azas  para  ir  mais  longe. 

Aprouve-lhe,  librando-se  nas  azas  da  inspiração,  subir 
até  ás  regiões  celestes;  e  —  águia  de  longínquo  vôo  — ir 


banhar-se  nas  aguas  do  Jordão  e  do  Euphrates  para  nos 
descrever  as  áridas  paisagens  da  Arábia  e  da  Palestma! 
Para  trazer  aos  nossos  olhos  e  para  nos  fazer  sentir 
a    tristeza  e   a   desolação   das   ruinas    das    cidades    ex- 

tinctas ' 

Sem  renegar  do  seu  passado  lyrico,  o  poeta  toma  nas 
mãos  a  Biblla  e  procura  trasladar  para  a  poesia  portu- 
gueza,  em  versos  de  admirável  contextura,  a  poesia  su- 
blime dos  hebreus !» 

E'  a  poesia  sacra,  a  poesia  religiosa,  que  merece  agora 

todo  o  seu  culto.  ^    ,  ^    j     ^ 

São  os  carmes  d 'esse  género  e  que  desde  logo  deno- 
minou -  Flores  da  Bíblia,  que  occupam  todo  o  seu  pen- 

'^Tn'tentava  reuni-los  em  livro,"  que  um  critico  illustre  diz 
que  viria  a  ser,  realisado  o  emprehendimento,  um  livro 
monumental?  (1) 


Quaes  os  seus  modelos?  Onde  os  encontrou? 

Fazem  porventura  os  seus  versos  lembrar  os  de  um 
outro  poeta,  também  nascido  juncto  do  Lima?  Esse  que 
teve  no  claustro  e  tem  na  litteratura  o  nome  de  Frei 
Agostinho  da  Cruz?  (2)  Foi  o  nosso  vate  um  seguidor 
ou  imitador  da  poesia  mystica  de  Santa  Thereza  de  Je- 
sus que  é  havida  por  modelar?  Não!  Em  meu  fraco  jmzo, 
elle\eve  individualidade  própria.  As  suas  composições  di- 

íl)  Pinheiro  Chagas,  Ensaios  Criticos.  ^ 

9  Teve  no  século  o  nome  de  Estevão  Pimenta  e  era  irmao  de 
Dioio  Bernardes.  Veja-se  o  livro  Varias  Poesias  de  Frei  Agosmho 
da  Cruz,  publicadas,  em  1771,  por  José  Caetano  de  Mesqu>ta ;  o  Ar- 
Chico  Bibliográfico  da  Unioersidade  de  Coimbra  \m,  V^;i.  ^^^^ 
seguintes  ;  e  o  artigo  de  Sr.  Dr.  Mendes  dos  Remédios  publicado  no 
Almanach  de  Ponte  de  Lima  para  1910. 


170 


Vergem  essencialmente  das  do  misticismo  da  santa  poetisa 
€  das  do  frade  arrabido,  em  que  o  amor  divino,  ins- 
piração de  ambos,  toma  tantas  Vezes  a  côr  do  amor  iiu- 
mano ! 

Tem  outra  magestade,  outro  pensamento  e  outro  sopro 
de  inspiração  a  poesia  biblica  de  Luiz  Caldeira ! 


E'  no  numero  da  Revisla  Popular,  correspondente  a 
5  de  fevereiro  de  1851— quando  contava  vinte  e  quatro 
annos  —  que,  sob  aquelle  titulo  de  Flores  da  Bíblia,  em 
um  prologo,  a  que  dá  o  nome  de  Introducção,  escripto 
parte  em  elegante  prosa  e  parte  em  verso,  expõe  o  pen- 
samento do  seu  teníamen  grandioso. 

Impõe-se-me  o  dever  de  pôr  aqui  uns  excerptos  d'essa 
prosa  e  d'esses  versos. 

Expõe  n'aquella  a  ideia  do  seu  poético  emprehendi- 
mento  pela  forma  seguinte  : 


A  Bíblia,  o  mais  admirável  de  todos  os  livros  que  existem  no 
mundo,  é  um  poema,  mas  um  poema  magnifico  como  o  espirito  que 
inspirou  os  seus  differentes  cantos,  e  magestoio  como  o  assumpto 
que  trata. 

Singelo  e  tocante  no  livro  de  Ruth ;  austero  e  profundo  em 
Job  ;  pomposo,  magnifico  e  sublime,  nos  cânticos ;  terrível  e  amea- 
çador, no  propheta  /saias,  aquelle  livro  sublime  ora  comove,  ora 
rasga  o  coração  do  homem  ;  e  arrebata-o  sempre  da  esphera  em  que 
se  agita,  ás  regiões  superiores  conhecidas  unicamente  por  Deus  e 
por  suas  angélicas  creações. 

La  Harpe,  Fenelon,  Bossuet,  Diderot,  J.  J.  Rousseau,  e  muitos 
outros  escriptores  de  reconhecido  merecimento,  disseram,  sobre  as 
bellezas  poéticas  dos  livros  santos,  tudo  que  era  possível  dizer-se  : 
nada  mais  poderei  portanto  accrescentar  a  este  respeito  a  não  repe- 
tir as  palavras  d'aquelles  auctores. 

Os  cânticos  de  Moysés  são  excessivamente  superiores  a  tudo 
que  escreveu  Homero ;  e  este  mesmo  poeta  é  quasi  nada,  se  a  par 


171 

das  suas  obras  se  colloca  a  niagestade  dMsaias  a  pintar  as  n-.agnifi- 
cencias  de  Deus. 

Querer  fazer  da  Bíblia  um  poema  seria  fazer  uma  coisa  que  já 
está  feita ;  colher  porém  parte  d'essas  flores  de  que  estão  semeados 
os  livros  santos,  sujeita-las  ao  metro  e  linguagem  nacional,  é  a  em- 
preza  que  me  propuz  ;  e  esta  empreza  é  tanto  mais  difficil  quanto  é 
grande  o  risco  de  depreciar  com  uma  noVa  forma  as  bellezas  d'essas 
composições  dos  escriptore-  sagrados. 


Vejam  agora  os  leitores  o  começo  da  Introducção  em 
verso  : 

Passae  aos  olhos  meus,  sombras  sagradas, 
Magestosoí  heroes  dos  Livros  Santos, 
Augustos  nomes,  imniortaes  imagens 
Do  povo  do  Senhor  !  Os  tempos  correm, 
Da  mào  divina  os  séculos  s'escoam, 
Apagam-se  as  Nações,  somem-se  Impérios. 
E  de  entre  as  ruínas  de  esq.iecidos  povos 
Vos.sa  gloria  immortal  scientila  sempre. 


Seguem-se  mais  cento  e  quarenta  e  dois  Versos,  eguaes 
a  estes  na  elevação  e  espontaneidade  garreteana. 


É  na  poesia  bíblica  que  o  poeta  conquistou  o  seu  maior 
quinhão  de  gloria. 

São  tão  desconhecidas  as  suas  producçòes  que  o  me- 
lhor culto  que  pode  render-se  á  sua  memoria  litteraria  é 
torná-las  conhecidas. 

Por  isso  para  aqui  transcrevemos  as  estrophes  sublimes 
da  Jerusalém.  Vão  todas  porque  não  sabemos  fazer  es- 
colha, ou  a  quaes  dar  preferencia.  Não  nos  atrevemos  a 
mutilá-las. 


172 


Jerusalém 


Como  assim  solitária  está  assentada  uma  cidade 
cheia  de  povo  :  chegou  a  ser  uma  como  viuva  a  senhora 
das  gentes. 

Jeremias. 


Quem  tivera  a  lyra  d'ouro 
Dos  prophetas  de  Sião  ! 
Quem  vira  as  terras  da  Syria^ 
Por  onde  corre  o  Jordão  ! 
Quem  vira  os  campos  despidos, 
Os  muros  encanecidos 
Da  velha  Jerusalém, 
Que  nas  partes  do  Oriente 
Brilha  ainda  á  luz  fulgente 
Do  astro  de  Bethelem. 


Teu  nome  é  grave  poema, 
O  sacro-santa  cidade. 
Escripto  em  letras  de  sangue 
Nos  fastos  da  humanidade. 
Um  brado  teu  no  Oriente 
Revolveu  todo  o  Occidente, 
Dobrou  a  cerviz  do  mar  : 
Abalou  fortes  impérios, 
Fez  em  vastos  cemitérios 
Tuas  arêas  tornar. 


Quem  não  tem  curvado  a  fronte. 
Sob  as  arcadas  sombrias. 
Ouvindo  o  órgão  chorando 
Co  o  pranto  de  Jeremias  ? 
Quem  não  ouviu  pelas  naves 
Passar. os  cantos  suaves 
Dos  poetas  da  Judêa  ? 
Quem  entre  aquella  harmonia 
Não  bebe  o  fel  d'agonia 
Da  cidade  que  prantêa  ?  ! 


175 

Jerusalém,  a  senhora, 
A  rainha  d'Israel  ! 
Aquella  pátria  soberba 
Cantada  por  Daniel ! 
Que  recordações  de  gloria  ! 
Quantas  paginas  d'historia 
N'este  nome  de  Sião  ! 
Quem  não  pensou  um  instante 
N'aquelie  drama  gigante 
De  Christo,  da  Redempção?  ! 


Magos  poetas  da  Syria, 
Inspirados  pelos  céus, 
Lyras  sagradas  da  Biblia 
Chorando  a  ira  de  Deus, 
Vossa  passagem  no  mundo 
Foi  um  gemido  profundo, 
Um  grito  d'escraVidão ; 
E  vossas  sombras  sagradas 
Choram  inda  debruçadas 
Sobre  as  aguas  do  Jordão. 


Oh  !  se  eu  escutar  podéra 
Do  deserto  a  brisa  ardente, 
Dos  rios  de  Babilónia 
Sobre  a  languida  corrente  ! 
Se  beijar  pudera  os  traços, 
A  senda  de  vossos  passos 
Nas  terras  do  captiveiro ; 
Se  o  ecco  de  vossas  magoas 
Ouvira  gemer  nas  aguas, 
E  nas  folhas  do  salgueiro  ! 

Não  posso ;  a  mão  do  destino 
Prendeu-me  em  terra  distante ; 
Do  vosso  inspirado  engenho 
Sigo  a  estrella  scintillante; 
E  escuto  a  voz  divina 
Das  harpas  da  Palestina, 
Dos  psalmos  do  rei  cantor  ; 
E  colho  as  flores  caldas, 
As  lagrimas  desparzidas 
Sobre  a  terra  do  Senhor. 


_  m 

Deixo  vagar  os  meus  olhos 
Sobre  as  paginas  da  historia. 
E  pelas  trevas  do  tempo 
Vejo  brilhar  vossa  gloria; 
Vejo,  nas  remotas  eras, 
Passar  as  sombras  austeras 
Dos  velhos  reis  de  Judá, 
Cujos  túmulos  desertos 
Fixam,  já  entre  abertos, 
O  valle  de  Josaphat. 


Os  tempos  fogem  debalde 
P'ra  ti,  ó  Jerusalém, 
PVa  ti,  cidade  guardada 
Pelo  Golgotha  e  Belém  ! 
PVa  ti,  que  ostentas  d'um  lado 
Esse  berço  consagrado 
D'uma  crença  sem  egual, 
E  do  outro  a  sepultura, 
Que  tragou  a  raça  impura 
DMmperio  quasi  immortal  ! 


Que  importam  chagas  abertas 
Pelo  ferro,  e  a  escravidão, 
PVa  ti,  a  eterna  cidade 
De  David,  e  Salomão? 
Vês  Babylonia  deserta, 
Sua  memoria  coberta 
Do  lodo  das  tradições; 
E  a  estrella  dos  teus  magos. 
Por  cima  de  teus  estragos. 
Brilha  aos  olhos  das  nações. 


Teus  patriarchas  dormiam. 
Em  sua  eterna  mansão, 
Escutando  a  voz  das  aguas 
Da  torrente  do  Cedrão, 
Junto  do  valle  sagrado, 
E  pelos  céus  destinado 
PVa  julgar  a  humanidade  ; 
D'esse  valle  de  mysterios, 
Que  tem  de  vêr  os  impérios 
Entre  o  mundo  e  a  eternidade  ! 


170^ 

E  veio  o  ferro  acordal-os 
De  Nabuchodonozor, 
Instrumento  dissoluto 
Das  justiças  do  Senhor  : 
E  suas  cinzas  dispersas 
Foram  na  terra  submersas 
Com  o  teu  templo  sem  par  : 
O  ouro  de  teus  altares 
Gasto  nos  impios  folgares 
Do  devasso  Balthazar. 


Chorae,  prophetas  sagrados, 
Chorae,  filhos  de  Sião, 
Escravos  de  Babylonia, 
Da  mãe  da  devassidão  ! 
Vossas  tribus  perseguidas, 
Vagam  tristes,  e  perdidas 
Nos  desertos  de  Judá ; 
Chorae,  porque  o  vosso  pranto 
Vae  erguer  o  denso  manto 
Das  ira.s  de  Jehovah. 


Eis  emfim,  eis  d'Izaias 
A  prophecia  de  pé  ! 
Curvae,  ó  reis,  o  joelho, 
Que  outro  rei  nascido  é  : 
Outro  rei,  que  a  um  sopro  escasso 
Dispersa  os  astros  no  espaço, 
E  povoa  a  immensidade ! 
Outro  rei,  muito  diverso, 
Que  tem  aos  pés  o  universo, 
E  na  mão  a  eternidade  ! 


Jerusalém,  foi  immenso 
Qual  teu  nome  o  crime  teu  : 
Que  o  diga,  no  mundo  errante 
O  resto  do  povo  hebreu  ; 
Que  o  diga  a  cruz  do  martyrio. 
Que  em  teu  nefando  delirio 
Viste  do  monte  Sião  ; 
Que  o  diga  Israel  inteira, 
Vergando  em  terra  estrangeira 
Co'o  peso  da  execração. 


176 

Quem  pode  pintar  agora 
As  tuas  tribulações, 
Ora  captiva,  por  terra, 
Ora  orgulho  das  nações? 
Ora  vendo  o  sol  d'Oriente 
Deslumbrar  do  mundo  a  gente, 
Mostrando-lhe  a  cruz  divina, 
Ora  no  lodo  arrastada 
Pela  torrente  abrazada 
Da  tormenta  de  Medina. 


Bradaste,  e  todo  o  Occidente 
A  teu  brado  estremeceu  I 
E  o  turbilhão  das  cruzadas 
Os  impérios  revolveu  ! 
\'êdes  as  arêas  ardentes. 
Testemunhas  indifferentes 
D'essa  guerra  colossal ; 
Os  feitos  de  Godofredo, 
De  Balduino  e  Tancredo, 
Heroes  do  Tasso  immortal. 


Agora  triste,  esquecida. 
Pobre  filha  d'lsrael. 
Vês  teu  templo  profanado 
Pela  planta  do  infiel  ! 
A  Voz  chorosa  do  vento 
E  para  ti  como  um  lamento 
Na  harpa  cie  Jeremias : 
És  cidade  de  tristezas. 
Passou  nas  tuas  grandezas 
O  sopro  das  prophecias. 


Mas  tu  não  podes  morrer. 
Não  podes,  santa  cidade; 
Tu  vives  àó  do  passado. 
De  lembranças,  de  saudade 
Pôde  o  tempo  fugitivo 
Esmagar  império  altivo, 
Consumir  as  gerações ; 
Mas  não  roubar  á  memoria 
Todo  esse  livro  d'historia. 
Guardado  nas  tradições. 


J77 

Tu  vives  de  cada  pedra, 
Que  marca  um  passo  de  Deus, 
Da  estrella  que  aos  ires  reis  magos 
Dirige  os  passos  dos  céus; 
Vives  de  pas-adas  magoas, 
Do  gemer  das  pobres  aguas 
Da  fonte  de  Siloé; 
K  d'angelica  poesia, 
Da  vaga  melancolia 
Da  Virgem  de  Nazaretli. 

Tu  vives  de  teus  prophetas, 
De  Jerichó,  do  Jordão, 
Da  Judôa,  do  Mar-morto, 
Da  gloria  de  Salomão ; 
Vives  da  vida  do  mundo, 
D'esse  mysterio  profundo 
Da  vida  do  Redemptor  ! 
Tens  ainda  régio  manto, 
Por  throno  o  sepulchro  santo, 
Por  sceptro  a  cruz  do  Senhor  ! 


Que  dizem  os  leitores  da  sublimidade  d'esses  Versos? 
Não  ousamos  fazer  comparações,  nem  insistir  nas  que 

ficam  feitas ! 

Não  podemos,  nào  as  sabemos  fazer ! 

Por  um  lado,  a  raridade  d'este  género  de  poesia  e, 
por  outro,  a  pobrêsa  do  nosso  saber ! 

Não  alcançamos  iêr  os  versos  do  brasileiro  Pereira 
Caldas  (1),  nem  os  de  João  Pinto  Delgado,  cuja  persona- 


(1)  Padre  António  Pereira  de  Sousa  Caldas,  poeta  basileiro,  for- 
mado em  leis  pela  Universidade  de  Coimbra,  que  chegou  a  ser  des- 
pachado juiz  de  fora  de  Barcellos,  e  depois  se  consagrou  ao  estado 
ecclesiastico.  Nasceu  no  Rio  de  Janeiro  em  24  de  junho  de  1/62  e 
falleceu  em  2  de  março  de  1814.  (Vid.  cit.  Diccionario  Bibliographico, 

de  Innocencio,  tomo  1.°). 

12 


178 


lidade  só  conhecemos  pela  Memoria  do  íallecido  erudito 
escriptor  Souza  Viterbo  (1). 

Mas  pelas  apreciações,  que  lhes  são  feitas,  julgamos 
terem  ambos  ficado  muito  áquem  do  poeta  contemporâneo. 

A  leitura  dos  primeiros  annos  da  nossa  mocidade  trouxe- 
nos  á  memoria  o  proemêto,  que  se  encontra  nas  Premières 
Méditations,  de  Lamartine :  intitulado — La  Poesie  Sa- 
créc',  dedicado,  com  uma  nota,  a  Mr.  de  Genoude. 

Relendo  agora  os  bellos  versos  do  grande  poeta  francês, 
não  sentimos  empalidecer  a  admiração  pelos  carmes  subli- 
mes do  poeta  português ! 

Diz  a  ultima  estrophe  do  poemeto  de  Lamartine : 

Silence,  ô  lyre !  et  vous,  silence, 

Prophètes,  voix  de  l'avenir  ! 

Tout  l'univers  se  tait  d'avance 

Devant  Celui  qui  doit  venir. 

Fermez-vous,  lèvres  inspirées ; 

Reposez-vous,  harpes  sacrées, 

Jusqu'au  jour  oíi,  sur  les  liauts  lieux, 

Une  voix  au  monde  inconnue 

Fera  retentir  dans  la  nue: 

Paix  á  la  terre  et  gloíre  aux  cieux! 


V 


Exige  capítulos  especiaes,  n'este  trabalho,  o  que  vae 
dizer-se. 

Para  que  a  sorte  do  poeta  lhe  não  fosse  —  em  tudo  e 


(1)  João  Pinto  Delgado,  judeu  portuguez  nascido  em  Silves  e 
fallecido  em  1590.  (Vid.  cit.  Diccionario  Bibliographico,  tomo  4.°  e  10." 
e  a  citada  Memoria  de  Souza  de  Viterbo). 


179 


sempre  —  fatal  e  adversa;  para  que  o  seu  nome  não  desap- 
parecesse  ficando  para  sempre  sepultado  nas  escuras  tre- 
vas de  um  perpetuo  olvido  —  de  que  não  podiam  redimi-lo 
as  poucas  linhas  de  Lopes  de  Mendonça,  —  quiz  a  fortuna, 
como  que  arrependida,  que,  volvidos  annos  após  a  sua 
morte,  um  escriptor  illustre  lhe  consagrasse  algumas  pagi- 
nas, brilhantes  como  todas  aqueilas  em  que  elle  pôs  a  elo- 
quência e  o  encanto  do  seu  fulgurante  e  prodigioso  talento! 

Foi  Pinheiro  Chagas. 

Foi  este  insigne  litterato,  este  brilhante  e  infatigável 
polígrafo  —  que  também  foi  um  poeta  -  quem  lhe  sagrou 
a  memoria  como  a  de  um  predilecto  das  musas  e  eleito 
da  inspiração !  Foi  quem  lhe  assignalou  o  tumulo,  depon- 
do-lhe  sobre  este  a  aureola  de  vate  sublime! 

Colocando-o  ao  lado  de  Soares  de  Passos,  o  imortal 
auctor  do  Firmamento  e  da  ode  a  Camões  —  tão  prema- 
turamente morto  também  —  e  de  Lobato  Pires,  outro  pre- 
dilecto de  talento  e  de  desventura  (1),  intitulam-se  Três 
Poetas  as  paginas,  a  que  nos  referimos,  apparecidas  pri- 
meiro no  Aichivo  Pittoresco  e  transferidas  depois  para  o 
livro,  que  tem  por  titulo  —  Ensaios  Criticos  (1886). 

Julgamos  de  toda  a  vantagem,  para  quem  lêr,  substi- 
tuir a  nossa  descolorida  prosa  pela  prosa  elegantissima  de 
Pinheiro  Chagas  e  versos  de  Luiz  Caldeira,  porque  será 
substituir  chumbo  ou  pinchebéque  por  oiro  sobre  marfim. 

Começa  assim  Pinheiro  Chagas: 


Corrêa  Caldeira  apenas  chegou  a  balbuciar  a  linguagem  sublime, 
que,  estamos  bem  certos,  elle  faiaria  depois  com  immensa  superiori- 
dade. 

....  As  poucas  poesias,  que  elle  deixou,  ou  talvez  as  poucas  que 
eu  conheço  d'elle,  dá-r;os  direito  de  pensar  que,  se  tivesse  vida,  e 
podesse  desprender  livremente  o  seu  génio,  havia  de  occupar  um 
dos  mais  elevados  logares  na  litteratura  contemporânea,  como  tenta- 
remos mostrar  nas  paginas  que  seguem. 


(1)  Sobre  o  talento  e  desventuras  deste  infeliz  poeta  pode  lêr-se 
um  artigo  de  Bulhão  Pato  no  Atmanacli  de  Lembranças  ^dLVSL  1885. 


180 

Depois,  no  capitulo  especial  que  lhe  consagra,  diz : 

Não  se  revelou  completamente  o  poeta ;  só  três  ou  quatro  poesias 
formam  o  verdadeiro  pecúlio  litterario ;  mas  que  imaginação,  que  ar- 
dor, que  verdadeiro  enthusiasmo  transluzem.  bastantes  vezes  incor- 
rectamente, n'um  pequeno  legado  que  deixou  á  posteridade. 

Como  n'elle  se  sente,  não  o  litterato,  que  adoptou  a  especiali- 
dade da  poesia,  mas  o  poeta,  o  verdadeiro  poeta,  que  chora,  que 
geme,  que  delira,  e  que  lança  ao  publico  essas  paginas  soltas,  em  que 
se  revela  o  desalinho  da  inspiração,  a  que  a  lima  não  succedeu ;  por- 
que parecia  que  o  poeta  presentia  o  seu  prematuro  emudecer,  e 
tinha  pressa  de  aproveitar  todas  as  caricias  da  musa,  e  de  sorver  até 
á  ultima  gota,  no  cálix  dourado  da  poesia,  esse  licor  inebriante  dos 
sublimes  delírios. 

Leiam  alguns  dos  fraguementos  das  Flores  da  Bíblia,  livro  que 
elle  nunca  chegou  a  publicar. 

Vejam  o  Mar  Morto. 

Pelo  elevado  Valor,  que  o  brilhante  escriptor  dá  a  esta 
poesia  de  Mar  Morto,  aqui  a  vamos  publicar,  pondo  em 
notas  as  apreciações  que  elle  faz. 


O  Mar  Morto 


Na  terra  gretada  e  nua  (1) 
Pesa  um  ceu  abrasador  ; 
Áridos  montes  d'areia. 
Tisnados  pelo  calor  : 


(1)  Como  o  poeta  se  possuiu  bem  da  grandeza  biblica  do  quadro, 
€  como  encontrou  na  sua  palheta  não  só  as  cores  mais  explendidas, 
mas  também  as  mais  próprias  para  o  pintar. 

A  voz  do  poeta  abafa-se  n'um  religioso  terror :  as  paizagens  não 
as  descreve  só,  mostra-as  taes  quaes  ellas  devem  ser. 

Veja-se  a  descripção  do  principio: 

Na  terra  gretada  c  nua 


Transcreve  toda  a  primeira  decima. 


181 

Tudo  immovel,  mudo,  absorto. 
Tudo  fulminado  e  morto, 
Nesse  valle  de  terror  : 
O  mesmo  vento  se  cala  : 
Só  o  silencio  aqui  falia 
Das  vinganças  do  Senhor  I 

Ao  longe,  o  sulco  azulado 

Do  poético  Jordão, 

Que  vem  trazer  ao  Mar-morío 

As  lagrimas  de  Sião  : 

E  sob  os  céus,  que  scintillam, 

Da  Arábia  as  serras  desfilam 

Até  que  perder-se  vão 

Co  os  pardos  morros  d'areia 

Das  montanhas  da  Judeia, 

Vigias  da  Solidão!  (1) 

Xa  terra  immovel  s'estende. 

Como  liquido  metal, 

Do  Mar-morto  a  face  immensa 

Adormecida  no  vai. 

Mar-morto  1  —  lagoa  impura  I 

Mudo  abysmo,  em  que  murmura 

Uma  agonia  immortal  I 

Mar  de  fúnebres  lembranças. 

De  suspiros,  de  vinganças. 

De  Sodoma.  a  sensual ! 

Xo  mudo  espelho  das  aguas 
As  margens  pintar-se  vem, 
Co'a  face  nua  e  queimada 
Das  serranias  d'alem ; 
Com  a  terrível  paisagem, 
Que  dos  raios  a  passagem, 
Xa  fronte  marcada  tem ; 
Com  a  imagem  devastada 
D'essa  terra  fulminada 
Que  tanto  pranto  contem  ! 


(1)  Depois  de  transcrever  esta  decima.  Pinheiro  Chagas  diz: 
"Este  quadro  é  perfeito.  A  descripção  como  que  nos  opprime.  Invo- 
luntariamente procuramos  respirar,  como  se  realmente  nos  rodeasse 
a  atmosphera  abafadiça  das  plagas  do  lago  Asphaltite. 


__182 

E  que  silencio  profundo 

N'esse  espectáculo  sem  par  ! 

Que  terror  povoa  ainda 

A  superfície  do  mar ! 

Nem  uma  vaga  murmura, 

Nessa  vasta  sepultura 

De  mysterio  e  de  pesar, 

Aonde  as  aguas  serenas 

Vem,  de  quando  em  quando,  apenas, 

Nas  margens  rumorejar. 


Não  tem  a  terra  uma  planta. 
Em  que  gema  a  viração, 
Um  fio  d'agua  corrente. 
Um  florinha  em  botão  I 
O  céu,  vaporoso  e  ardente! 
Nem  uma  ave  innocente, 
Que  povoe  a  solidão! 
Alguma  águia  pesada, 
Que  bate  o  vôo  cançada, 
Para  as  montanhas  de  Hebrãol 


Contudo,  aqui  foi  Sodoma, 
Além  Gomorra  existiu ; 
Entre  os  encantos  e  as  galas 
Todo  um  povo  aqui  dormiu  ! 
Havia  fontes,  frescura; 
E  fofa  branda  verdura 
Essas  encostas  vestiu ! 
Agora,  luto  somente. 
Porque  a  mão  do  Omnipotente, 
De  sobre  a  terra  as  baniu ! 


Oh!  Deus,  que  justiça  a  tua! 
Que  assustadora  lição ! 
Um  povo  todo  esmagado, 
Geração  por  geração ! 
Que  pranto,  que  áó  profundo, 
D'aquellas  aguas  no  fundo 
Ainda  bradando  estão ! 
Como  se  lê  neste  espaço, 
A  passagem  do  teu  braço. 
Teu  grito  de  maldição ! 


185 

Agora  o  sol  fulgurante 
Surge  num  céu  de  rubim, 
Em  que  lentamente  passam 
Vapores  côr  de  marfim  ; 
Como  que  débil  e  exangue, 
O  seu  raio  côr  de  sangue 
Tinge  as  nuvens  de  carmim, 
E  os  píncaros  incendeia 
Das  alturas  da  Judeia, 
E  das  terras  de  Siddim. 


Mas  quando  a  voz  da  tormenta 
Começa  ao  longe  a  bramir, 
E  um  denso  manto  sombrio 
Vem  de  luto  o  céu  Vestir ; 
Quando  a  louca  tempestade, 
Nos  echos  da  soledade, 
Vem  desgrenhada  rugir; 
E  que  as  rajadas  do  vento. 
Chorando  no  firmamento, 
A  terra  vem  saccudir; 


Então  o  valle  desperta 
Do  seu  somno  secular; 
Do  lago  os  fundos  abysmos 
Se  rasgam  de  par  em  par ; 
Densos  turbilhões  de  areia. 
Que  a  luz  do  raio  incendeia: 
Giram  rápidos  no  ar, 
E  correm  sobre  o  deserto 
Entre  o  fúnebre  concerto 
Dos  furacões  e  do  mar  I 


Vagas  turvas,  espumantes, 
Fervendo  em  alvo  cachão. 
Fogem  batidas  dos  ventos, 
E,  de  baldão  em  baldão, 
Vão  rebentar  furiosas 
Nas  praias  betuminosas. 
Do  lago  da  maldição. 
Cuspindo,  nas  penedias, 
As  espumas  alvadias, 
Rasgadas  pelo  tufão ! 


_  184 

No  poente,  côr  de  sangue, 
Bruxulêa  o  temporal, 
Aonde  as  azas  de  fogo 
Sacode  o  génio  do  tnal ! 
Ronca  o  trovão  nas  montanhas ; 
E,  das  tremulas  entranhas 
Do  mar,  do  seio  do  vai, 
Illusão,  delirio  ou  sonho, 
Sobe  como  um  grito  medonho. 
Um  gemido  sepulchral ! 

Como  que  as  torpes  cidades, 
Que  as  vagas  em  si  contém., 
Estremecem  nos  abysmos, 
E  be  lamentam  além  ; 
Essas  irmãs  deshonestas. 
Que  adormeceram  nas  festas 
Aos  pés  de  Jerusalém; 
E  um  anjo,  co'a  ponta  daza 
Foi  desperta-las  em  braza. 
Num  céu  em  braza  também  !  (1) 

Abrahào  debalde  implora ! 
Não  pôde  o  Senhor  mover ! 
Nem  dez  justos,  que  buscara. 
Nem  só  dez,  pôde  escolher! 
E  Sodoma  adormecida. 
Profana,  torpe,  esquecida. 
No  seu  nefando  prazer. 
Foi  ainda,  ébria  e  devassa, 
Bradar  por  sua  desgraça, 
E  o  próprio  Loth  offender! 


(!)  Depois  de  transcrever  esta  decima  e  as  quatro  anteriores. 
Pinheiro  Chagas  escreve  : 

'Ha  um  verdadeiro  delirio  n'esta  descripção;  o  génio  do  poeta 
corre  desgrenhado,  como  o  génio  da  tempestade,  e  o  espirito  do  lei- 
tor, arrastado  na  carreira  vertiginosa,  quasi  que  sente,  dentro  em  si, 
o  temporal  medonho,  e  pára,  afinal,  pávido  e  extático,  a  contemplar 
o  quadro  sublime,  que  doudeja  furioso  dentro  de  si.  A  inspiração 
apoderou-:-e  do  poeta,  arrancou-o  do  mundo  prosaico  e  transpor- 
tou-© ás  espheras  da  sublimidade,  como  o  carro  de  fogo  tansportou 
outrora  o  propheta  do  lodo  da  terra  aos  âmbitos  do  empyrio ! 

Vê-se  que,  ainda  que  quizesse,  não  podia  parar.  .  . 


185 

Assim,  a  terra  despida 
Inspira  tristeza  e  dó; 
O  mar  espelhento  e  mudo, 
Pensativo,  triste  e  só  I 
Como  que  a  sombra  invisível 
Das  iras  do  Deus  terrivel 
D'Israei  e  de  Jacob, 
Inda  nos  ares  troveja. 
Em  quanto  ao  longe  bafeja 
Os  valles  de  Jericó  ! 

Inda  um  mysterio  insondável 
Ha  nesse  mar  sem  egual, 
Que  desdobra  amargas  aguas 
Por  suas  margens  de  sal ; 
E  as  condemnadas  cidades, 
Nas  verdes  profundidades 
Dos  abysmos  de  crystal, 
Surgem,  ás  vezes,  sombrias. 
Petrificadas  múmias. 
De  um  corpo  monumental  I 

Até  os  mesmos  vapores 

Do  lago  de  perdição, 

Fétidos,  levam  ao  longe 

A  febre,  a  desolação  ! 

E  os  fructos.  que  apparecem. 

Que  isolados  esmorecem 

No  meio  da  solidão. 

Só  tem,  no  seio  abrasado, 

Um  pó,  subtil  e  tisnado. 

De  denegrido  carvão ! 

O  coração  arquejando. 
Treme  de  assombro  e  pavor, 
Ante  essa  terra  deserta, 
Tisnada  pelo  calor ! 
Tudo  immovel,  mudo,  absorto. 
Tudo  fulminado  e  morto 
Nesse  valle  de  terror  ! 
Tudo  tomado  de  espanto 
Pelo  sopro  sacrosanto 
Da  cólera  do  Senhor  I 


186 


Nas  duas  poesias  bíblicas,  que  ficam  transcriptas, 
todos  poderão  admirar  a  pujança  do  seu  estro,  remontan- 
do-se  até  Deus  e  aos  primitivos  tempos  da  humanidade! 

Parece-me  encontrar  n'essas  duas  composições  o  mes- 
mo divino  sopro  do  Le  Feii  da  Ciei,  de  Victor  Hugo  (1). 


V 


Mas  o  poeta  ficou  sempre  olhando  para  as  bandas  do 
oriente  e  com  o  seu  pensamento  como  que  preso  e  exclu- 
sivamente absorvido  na  antiguidade  biblica? 

Deixou  de  beber  em  outras  fontes  da  inspiração? 

Julgou  a  sua  musa  somenos  e  indigno  d'ella  qualquer 
outro  assumpto? 

Não! 

Luiz  Correia  Caldeira  commungava  n'aquelles  cânones 
da  arte  e  de  universal  bom  gosto,  legislados  por  Victor 
Hugo,  e  que  o  génio  immenso  d'esse  simi-deus  litterario 
tão  admiravelmente  executou  e  impôz  ao  mundo  das  le- 
tras! 

E'  no  prologo  das  Orientaes,  que  elle  os  expôz  e  for- 
mulou : 

L'auteur  de  ce  recueil  n'est  pas  de  ceux  qui  reconnais- 
sent  à  la  critique  le  droit  de  questionner  le  poete  sur 
sa  fantaisie,  et  de  lui  demander  pourquoi  il  a  choisi  tel 
sujet,  broyé  telle  couleur,  cueilli  à  tel  arbre,  puisé  à  telle 
source.  L'ouvrage  est-il  bon  ou  est-il  mau  Vais?  Voilà  tout 
le  domaine  de  la  critique.  Du  reste,  ni  louanges  ni  repro- 


(1)  Les  Orientales. 


187 


ches  pour  les  couleurs  employées,  mais  seulement  pour  la 
façon  dont  elles  sont  employées.  A  voir  les  choses  d'un 
peu  haut,  il  n'y  a  en  poésie  ni  bons  ni  mauvais  sujets,  mais 
de  bons  et  de  mauvais  poetes.  D'ailleurs,  tout  est  sujet; 
tout  releve  de  Tart;  tout  a  droit  de  cite  en  poésie.  Ne  nous 
enquerons  donc  pas  du  motif  qui  nous  a  fait  prendre  ce 
sujet  gaí,  horrible  ou  gracieux,  éclatant  ou  sombre,  étrange 
on  simple,  plutôt  que  cet  autre.  Examinons  comment  vous 
avez  travailié,  non  sur  quoi  et  pourquoi. 

Hors  de  là,  la  critique  n'a  pas  de  raison  à  demander,  le 
poete  pas  de  compte  à  rendre. 

No  mesmo  volume  da  Revista  Estrangeira,  em  que 
Correia  Caldeira  publicou  a  Jerusalém  e  o  Mar  Morto, 
apparece  a  Melancolia,  bella  expressão  do  seu  lyrismo. 


N'essa  poesia  ha  versos,  como  este: 


Tu  és  a  Vaga  profunda. 
Que  sobre  a  praia  suspira, 
Harmonia  gemebunda 
Das  cordas  da  eterna  lyra, 
És  a  lua,  que  suspensa 
Corre  na  abobada  extensa, 
Como  uma  pérola  imensa 
N'uma  concha  de  saphíra! 

És  o  som  de  brônzeo  sino 
Que  bate  ao  longe  trindades ; 
És  a  estrella  de  ouro  fino; 
O  murmurar  das  cidades; 
O  castello  abandonado. 
Esquecido,  derrocado, 
Como  o  espectro  do  passado 
Chorando  antigas  saudades. 


188 


Apparece,  em  differentes  números,  o  largo  poemeto,  que 
tem  por  titulo  Uma  Paixão— Romance  em  versos  e  em 
Cartas  (pag.  205  a  206,  pag.  240  a  241  e  pag.  301  a  303). 

Não  tem  assignatura.  Mas,  pela  contextura  e  esponta- 
neidade do  verso  solto  — em  *que  era  verdadeiro  discípulo 
de  Garrett  — e  pela  repetição  de  phrases  suas,  empregadas 
em  outros  trechos  poéticos;  e  por  ser  publicado  em  jornal 
litterario  de  que  era  redactor,  pode  afiançar-se  pertencer- 
Ihe  e  ser  o  seu  auctor.  (1) 

Sem  assignatura  foram  publicados  na  mesma  Revista 
os  dous  quadros  biblicos,  em  prosa,  que  têm  por  assumpto 
um  Eva  e  o  outro  Agar,  acompanhados  de  duas  bellas 
gravuras,  e  tem  de  considerar-se  tão  seus  como  se  esti- 
vessem assignados  com  o  seu  nome. 

Ainda  ali  apparece  a  poesia  dedicada  á  memoria  de  Gar- 
rett, que  Pinheiro  Chagas  diz  estar  abaixo  do  seu  talento. 

Mas  mostra  como  elle  tinha  esse  seu  mestre  no  cora- 
ção e  no  pensamento. 


Afora  os  versos  de  poesia  biblica  aquelles  a  que  o 
auctor  dos  Ensaias  Criticos  dá  maior  valor  é  á  poesia  inti- 
tulada a  Voz  do  Oceano. 

Seria  defraudar  a  memoria  de  Luiz  Corrêa  Caldeira 


(1)  Tenho  para  mim  de  que  nenhuma  duvida  pode  haver  de  que 
os  versos  d'esse  poemeto  são  do  redactor  da  revista.  O  anonymato 
tem  fácil  explicação.  Traduz  talvez  um  sentimento  de  pudor! 

Não  quiz  confundir  a  sua  religiosidade  de  marido  inseparável  do 
seu  nome,  com  a  sua  phantasia  de  poeta.  Não  conheci  pessoalmente 
Luiz  Caldeira,  mas  conheci  o  irmão;  e,  pelas  austeros  e  meticulosos 
escrúpulos  d'este,  descubro  os  d'aquelle. 


189 


não  traslasdar  para  aqui  o  que  d^essa  composição  diz  o 
brilhante  escriptor  e  critico  auctorisadissimo,  que  é  tam- 
bém o  poeta  do  Poema  da  Mocidade. 


Vejamos  — exclama- a  obra  prima  do  seu  talento,  a  poesia  em 
verso  solto  intitulado  a  Vos  do  Oceano,  em  que  se  encontram  qua- 
dros que  Garrett  intercalaria  com  orgulho  no  principio  de  quinto 
canto  do  Camões.  Não  achem  ousada  a  comparação.  Leiam  e  julguem. 

Oiçam  o  principio,  e  admirem  a  gradação  lenta  e  artística,  que 
prepara  tão  bem  o  effeiío  dos  dous  últimos  versos: 

Vento  das  noites,  que  a  meus  pés  revolves 
As  folhas  amarellas  do  arvoredo ; 
Lúgubres  sons  da  livida  floresta  ; 
Aguas  do  rio,  que  fugis  lá  abaixo. 
Beijando  as  margens  tristes  já  sem  flores, 
E  reflectindo  nos  céus  em  que  não  brilha 
Uma  estrelinha  só;  vozes  sem  nome, 
Que  murmuraes  nas  regiões  do  espaço  ; 
Deixae  que  o  grito  immenso  do  Oceano 
No  silencio  geral  se  escute  apenas. 

Que  descripçòes  se  seguem  a  este  bonito  exórdio  !  Como  o  poeta 
soube  escutar  as  vozes  dos  mares,  e  como  soube  traduzir  as  impres- 
sões que  ellas  despertaram  no  seu  peito!  Corrêa  Caldeira  sentiu 
com  um  fogo  indisivel,  e  o  quadro,  que  pinta  na  imaginação,  repro- 
du-lo  na  tela  do  poemeto  com  uma  verdade  e  com  um  vigor  admirá- 
veis! Vede  o  mar  em  noite  de  bonança: 


Vêde-o  beijar  as  rochas  carcomidas 
Por  essas  praias,  que  o  luar  inunda: 
Como  uma  virgem,  tremula  de  pejo, 
E  que  o  amor,  mau  grado  seu.  arrasta, 
A  vaga  no  areal  passa  gemendo ; ' 
A  fraga  cinge  em  fugitivo  abraço, 
E  foge  vagarosa,  desparsindo 
Argênteo  pranto  sobre  limos  verdes. 

O  pensador  succede  ao  contemplador.  O  poeta  debruçando-se  so- 
bre o  abysmo  do  Oceano,  pergunta  a  si  mesmo  que  mysterios  se  escon- 
derão sob  aquellas  aguas.  Lá  no  fundo  tenebroso  e  nas  insondáveis 
entranhas  desse  leão  espumante,  esconde-se  um  mundo  hórrido! 


190 

Alli  chimeras  mil  passam  medonhas ! 

Fabulosos  jardins  alli  florecem 

Sobre  um  solo  de  pérolas  e  conchas; 

Alli,  das  maravilhas,  escondidas 

Aos  olhos  dos  mortaes,  são  testemunhas 

Entes  sem  nome  que  talvez  olharam 

Das  creaçòes  as  obras  primitivas, 

E  que  se  arrastam  no  despojo  immenso 

Cesquecidas  nações,  de  mortos  séculos. 

Alli  ainda  os  continentes  jazem 

D'um  mundo  que  ha-de  vir;  alli  se  encerram 

Povos  e  gerações  talvez  inteiras! 

E  nos  segredos  da  grandeza  eterna 

Suas  ondas  o  mar  rola  bramindo ! 


Vejamos  ainda  a  descripçào  que  se  segue,  e  lastimemos  mais  uma 
vêz  a  sorte  fatal  que  prostrou  um  génio  que  se  poderia  elevar  a  ta- 
manha altura ! 

O  mar,  ha  pouco  tranquilo  e  bonançoso,  desperta  finalmente  á 
voz  da  tempestade.  O  génio  da  procella  corre  desgrenhado  por  sobre 
as  ondas,  e  esses  liquidos  corseis,  de  crinas  espumosas,  empinam-se 
furiosos  ao  sentirem  o  látego  da  tormenta !  A  descripçào  do  poeta  é 
inexcedivel.  Ha  um  trecho  de  prosa  com  que  o  podemos  comparar. 
É  verdade  que  esse  trecho  é  a  obra  prima  de  um  dos  primeiros  pro- 
sadores franceses.  É  a  descripçào  que  se  lê  no  Capitaine  Paul  de 
Alexandre  Dumas. 

Se  me  não  tivesse  já  alongado  tanto  em  citações,  transcreveria 
essa  admirável  pagina  de  prosa.  Não  resisto,  contudo,  á  tentação  de 
citar  o  final  do  quadro. 


Pela  extensão  das  praias  se  levantam, 

Em  pé  nos  mares,  as  imóveis  penhas. 

Á  luz  fugaz  do  scintilante  raio 

Suas  frontes  rugosas  relampejam  ; 

A  tormenta  sacode  em  torno  delias 

Alvo  sudário  d'humidos  vapores; 

E,  ao  Vê-las  assim,  quedas,  tranquillas. 

Na  confusão  da  natureza  inteira, 

Quem  poderá  affirmar  que  não  festejam. 

Mudos  espectros,  sob  um  veu  de  espuma, 

Da  morte  os  anjos,  que  passando  bradam. 

Suas  azas  de  fogo  sacudindo 

Nas  solidões  do  furibundo  Oceano  ! 


191 


Creia  o  leitor  que  o  poeta,  que  escreveu  versos  como  estes,  é 
quasi  desconhecido  na  sua  pátria !  e  que,  para  se  poderem  ler  os  seus 
escriptos,  é  preciso  folhear  intrepidamente  os  periódicos  litterarios 
da  épocha  em  que  viveu. 

Portugal  é  tão  abundante  em  poetas  desta  força  que,  um  de  me- 
nos, segundo  parece,  não  faz  falta  na  inimensa  lista ! 


Refere-se  ainda  Pinheiro  Chagas  elogiosamente  á  poe-^ 
sia  A  Minha  Sina. 

Aprecia  largamente  a  traducção  do  Oceano  Ab,v,  de 
Victor  Hugo. 

Apesar —  diz —  de  ficar  a  uma  immensa  distancia  do  poeta  fran- 
cez,  comprehendeu  perfeitamente  a  ideia  da  poesia,  e  conservou-lhe 
o  tom  de  infinita  tristesa. 

Lendo  o  original  e  lendo  a  traducção,  parece-nos  que  escutámos 
um  canto  delicioso  e  plangente  e  que  ouvimos  depois  o  echo  longin- 
quo  que  lhe  repete  as  notas,  enfraquecidas  sim,  mas  egualmente  sen- 
tidas, egualmente  melancholicas. 

Compara  em  seguida  algumas  das  estrofes  de  Victor 
Hugo  com  a  traducção,  e  faz  a  sua  critica  notando-lhe  as 
bellesas  e  os  defeitos. 


VI 


Aqui  encerro  este  trabalho,  que  nem  sei  que  nome 
possa  dar-lhe. 

Não  é  um  estudo  da  obra  do  poeta  e  muito  menos  uma 
critica  delia. 


192 


Não  é  um  panegírico,  porque  não  dispomos  das  tintas 
e  cores  litterarias,  nem  da  académica  auctoridade,  que 
seria  preciso  imprimir-lhe. 

E'  apenas  um  feixe  de  noticias  e  informações  sobre 
um  poeta  iliustre,  mas  quasi  desconhecido! 

Quizemos  chamar  a  attenção  de  algum  desvelado  cul- 
tor das  letras,  de  coração  dedicado  e  penna  iliustre,  que 


A  ponte  antes  de  mntilada  e  tal  como  era  quando  o  poeta  nasceu 
Tirada  de  uma  velha  gravura  de  1780,  que  se  encontra  nos  Estrangeiros  no  Lima 

com  elementos  e  faculdades  que  nos  faltam,  reunindo 
em  volume  todas  as  admiráveis  composições  do  desde- 
nhado vate,  lhe  eleve  o  monumento  litterario  a  que  tem 
direito. 

Sempre  nos  doeu  o  olvido  que  tem  pesado  sobre  o 
seu  nome!  Até  na  pequena  terra,  de  que  é  filho  tão  il- 
iustre! 

Quiz  pagar-lhe  o  culto  de  admiração  e  de  amor  que, 
em  meu  coração,  sempre  tem  existido  pela  sua  persona- 
lidade litterariamente  tào  alta  e  pessoalmente  tão  nobre 


193 


e  tão  pura;  e  (porque  não  dizê-Io?. . .)  em  que  entra  tam- 
bém a  lembrança  daquella,  cujas  mãos  acariciaram  o  poe- 
ta, quando  menino,  e  as  quaes  eu  tive  a  infelicidade  de 
não  poder  t)eijar  e  molhar  com  lagrimas  quando  ficaram 
para  sempre  arrefecidas ! 


13 


NOTA    1." 
O  pae  do  poeta 


No  Dicionário  biográfico  de  Portugal  se  encontram  os  seguintes 
traços  da  vida  de  losé  Marques  Caldeira  : 

Nasceu  em  Coimbra  a  6  de  janeiro  de  1786  e  falleceu  em  Runa  a 
11  de  fevereiro  de  1855. 

Fora  destinado  por  seus  pães  á  carreira  das  letras,  mas  os  acon- 
tecimentos de  1808,  em  que  o  estrangeiro  invadio  a  pátria.  Vieram 
afasta-lo  dos  estudos.  Assentando  praça  no  batalhão  académico,  en- 
trou nos  sangrentos  combates  da  Roliça  e  do  Vimeiro. 

Passando  depois  ao  exercito  regular,  aiistoií-se  no  batalhão  de 
caçadores  n."  6,  assistindo  ás  batalhas  do  Bussaco,  de  Salamanca  e 
de  Fuentes  de  Honor,  na  qual  ficou  gravemente  ferido. 

Acabada  a  guerra  peninsular,  foi  despachado  alferes  para  caça- 
dores n.°  12  em  janeiro  de  1818  e  promovido  a  tenente  em  junho  de 
1821. 

Professando  ideias  liberaes,  entrou  nos  combates  da  Cruz  de 
Morouçus  e  da  Ponte  do  Vouga  em  26  e  28  de  junho  de  1828,  mere- 
cendo os  elogios  e  recomendação  do  major  Francisco  Xavier  da  Silva 
Pereira,  depois  Conde  das  Antas.  Emigrou  por  Qaliiza,  concorrendo 
muito  para  que  o  seu  batalhão  entrasse  em  Hespanha  bem  discipli- 
nado, embarcando  depois  para  Inglaterra  e  de  lá  para  a  liha  Terceira, 
onde  foi  requisitado  peio  comandante  do  batalhão  académico,  João 
Pedro  Soares  Luna,  para  instructor  desse  corpo. 

Fêz  .parte  da  expedição,  que  desembarcou  no  Mindelo,  destin- 
guindo-se  logo  na  sortida  a  Villa  do  Conde.  Destinguiu-se  depois  em 
outras  occasiões,  principalmente  no  ataque  ao  sitio  do  Pasteleiro,  no 
dia  5  de  julho,  em  que  ficou  gravemente  ferido.  Recebeu  então  pelo 
se:i  valor  a  cruz  da  Torre  e  Espada.  Também  se  distinguiu  no  com- 
bate de  25  de  julho  de  1853,  em  que,  defendendo  o  posto  que  lhe  fora 
destinado,  á  direita  do  reducto  de  Campanhã,  mereceu  os  elogios  dos 
seus  superiores.  Levantado  o  cerco  do  Porto,  continuou  a  tomar 
parte  activa  nas  operações,  commandando  a  6."  companhia  de  caça- 
dores n."  12,  prestando  n'essa  qualidade  grandes  serviços  na  batalha 
de  Almoster.  Foi  elle  que  tomou  a  bandeira  do  novo  regimento 
miguelista. 


196 


Na  batalha  da  Asseiceira  foi  commandante  das  avançadas  e  o 
primeiro  a  romper  fogo,  desalojando  o  inimigo  das  suas  posições  e 
perseguindo-o  até  que  cahiu  gravemente  ferido. 

A  4  de  setembro  de  1854  foi  nomeado  commandante  do  corpo  de 
inválidos  de  Runa,  desempenhando  este  cargo  até  1849,  em  que,  pela 
morte  do  brigadeiro  Palha,  lhe  pertenceu  o  governo  interino  deste 
estabelecimento.  Passou  ao  commando  effectivo  quando  se  refor- 
mou, em  1851,  no  posto  de  brigadeiro. 


Por  penhorante  confiança  da  veneranda  senhora,  que  é  a  viuva 
illustre  do  Conselheiro  António  Correia  Caldeira,  me  foram  confia- 
dos documentos  honrosissimos  da  vida  militar  do  pae  de  seu  marido, 
e  entre  esses  o  conceito  que  das  suas  qualidades  militares,  moraes  e 
intellectuaes  formavam  os  marchaes  Duque  da  Terceira,  Duque  de 
Saldanha  e  Conde  das  Antas,  documentos  esses  que  são  dignos  da 
publicidade.  Desviar-nos-ia,  porém,  do  nosso  assumpto,  occuparmo- 
nos  desses  documentos.  Só  aproveitamos  os  que  esclarecem  as  notas 
transcriptas. 

Delles  se  vê  que,  antes  de  ser  nomeado  alferes  para  o  batalhão 
de  caçadores  x\.°  12,  era  já  n'elle  sargento-ajudante,  e  foi  depois  alfe- 
res-ajudante  e  tenente-ajudante. 

Dahi  proveio  a  sua  longa  residência  em  Ponte  de  Lima. 


Sobre  esse  batalhão,  esclarecendo  quanto  fica  dito,  é  digno  de 
ler-se  um  interessante  artigo,  que  se  intitula  —  O  batalhão  de  Ponte 
de  Lima  —  Caçadores  n.°  /P  — publicado  no  Almanach  de  Ponte  de 
Lima  para  1910  pelo  joven,  brioso  e  illustrado  tenente  José  de  Maga- 
lhães Barros  de  Abreu  Coutinho. 


197 


NOTA   2.* 

Nascimento  do  poeta. —  Casa  em  que  nasceu.— 
Edade  em  que  sahiu  da  terra  natal.  —  Ingrati- 
dão.— Um   alvitre   em   honra  de  sua  memoria. 


Ainda  por  captlvante  obsequio  do  Dr.  José  Alberto  dos  Reis, 
distincto  professor  e  illustre  reitor  da  Universidade  de  Coimbra, 
podemos  aqui  pnblicar,  extrahida  dos  archivos  d'esta,  uma  copia  da 
certidão  de  baptismo  de  Luiz  Corrêa  Caldeira, 

É  a  seguinte: 

CERTIDÃO 

O  Padre  Manoel  José  Gomes,  coadjutor  nesta  Fregfiiezia  de  Santa  Mari- 
nha d'Arcuzello,  Conceliio  de  Ponte  de  Lima,  etc. 

Certifico  que  revendo  o  livro  dos  Baptismos  d"esta  mesma  Freguezia,  a 
folhas  183  se  acha  o  assento  do  theor  seguinte:  Luiz,  filho  legitimo  de  José 
Marques  Caldeira,  Tenente  do  Batalhão  numero  doze,  e  de  Dona  Anna  Efi» 
genia  Corrêa,  ambos  da  Villa  de  Ponte  de  Lima ;  Neto  paterno  de  José  Mar- 
ques Caldeira  e  de  Dona  Joaquina  Tereza  de  Macedo,  da  Cidade  de  Coimbra, 
e  Materno  de  José  Rodrigues  Lima  e  de  Dona  Marianna  Tereza,  da  dita 
Villa.  Nasceu  no  dia  9  do  mez  de  Janeiro  de  1827,  e  foi  baptisado  solemne- 
mente  com  imposição  dos  Santos  Óleos,  por  mim,  o  Vigário  João  Alves  de 
Mello,  no  dia  13  do  dito  mez,  e  foram  Padrinhos  o  Reverendíssimo  Frei  Luiz 
dos  Sarafins,  Monge  Benedictino,  e  madrinha  Dona  Joanna  Ritta  do  Carmo 
Saraiva,  e  por  sua  procuração  tocou  o  Illustrissimo  Gaspar  Pereira  Ferraz 
Sarmento,  da  mesma  Villa.  E  para  constar  lavrei  o  presente  assento  era  ut 
supra.  O  Vigário,  João  Alves  de  Mello.  — Nada  mais  se  continha  no  dito  que 
aqui  fielmente  copiei  e  ao  qual  me  reporto.  Santa  Aíarinha  d'Arcozello,  18  de 
Junho  de  1844.  Em  ausência  do  Parocho,  o  Coadjutor,  Padre  Manoel  José 
Gomes. 

RECONHECIMENTO 

Reconheço  a  lettra  e  assignatura  supra  ser  do  próprio.  Ponte  de  Lima 
era  ut  supra.  Em  testemunho  de  verdade  (logar  do  signal  Publico)  O  Tabel- 
lião,  António  Rocha  Paris. 

Causa  reparo  que,  estando  Luiz  Corrêa  Caldeira  matriculado  no 
L"  anno  das  faculdades  de  mathemaíica  e  philosopliia,  no  anno  de 


198 


1843  a  1844,  o  tivesse  sido  com  uma  certidão  passada  em  18  de  Junho 
d'este  ultimo  anno. 

Haveria  permissão  para  junctar  mais  tarde,  depois  da  matricula, 
esse  documento?  Haveria  uma  posterior  substituição  por  erro  da 
anterior? 

Não  me  é  permittido  agora  deslindar  melhor  este  caso. 


Está  pelo  documento,  que  fica  transcripto,  authenticamente  veri- 
ficado que  o  poeta  nasceu  na  margem  direita,  e  assim  com  visiveis 
indicações  de  ter  nascido  na  casa  das  tias. 

Mas  qual  casa  era  essa?  Conheci  ainda  a  Senhora  D.  Marcelina 
Saraiva  morando  na  casa  do  Largo  da  Alegria,  que  faz  esquina  para 
a  velha  estrada,  tendo  n'ella  fallecido  no  dia  6  de  fevereiro  de  1866 
na  provecta  edade  de  95  annos. 

Penso  que  também  ahi  haveria  fallecido  a  Senhora  D.  Joanna. 

Evidentemente  não  foi  n'essa  casa  que  nasceu  o  poeta. 

Dizia-me  a  tradição  que  as  duas  senhoras  tinham  morado  na  casa 
do  mesmo  Largo,  fronteira  aquella,  e  que  é  hoje  habit"ada  pelo  Sr.  José 
Maria  de  Abreu  de  Lima  e  sua  di.-tincta  famiha;  e  também  me  dizia 
terem  residido  na  casa  de  Faldejães,  que  foi  de  João  Luiz  Salgado 
Achioli  e  Vasconcellos. 

Em  qual  d'e]las  residiriam,  ao  tempo  do  nascin:ento  do  poeta? 

Eis  o  ponto  a  investigar. 

O  meu  respeitável  e  illustrado  amigo,  Monsenhor  Pereira  Lima, 
digno  Prior  da  freguezia  de  Nossa  Senhora  dos  Anjos  da  Villa  de 
Ponte  de  Lima, —  com  o  obsequioso  intuito  de  auxiliar-me  —  entre- 
gando-se  a  pacientes  investigações,  nos  antigos  livros  da  sua  paro- 
chia,  chegou  a  esclarecer  este  ponto  por  forma  a  não  deixar  duvidas. 

Já  depois  de  impresso  o  que  fica  escripto  no  texto,  descobriu  no 
livro  4.°,  folhas  8,  a  reproducção,  promovida  pelos  pães  do  neophito, 
do  assento  de  baptismo  da  freguezia  de  Arcozêllo,  com  a  declaração 
de  que  nasceu  casualmente  n'esta  freguezia  e  dizendo-se  que  a  ma- 
drinha D.  Joanna  Rita  do  Carmo  Saraiva  era  moradora  no  logar  de 
Faldejães. 

Fica  assim  apurado,  sem  sombra  de  duvida,  que  o  poeta  nasceu 
na  casa  histórica,  de  que  se  occupa  Lima  Bezerra,  nos  Estrangeiros 
no  Lima  (paginas  302  a  304),  e  da  qual  começa  dizendo: 

Esta  casa,  com  seu  delicioso  jardim,  pomares,  hortas,  pinhal,  lago  e  vei- 
gas, tanto  enobrece  esta  freguezia. . . 

Bello  ninho  para  o  nascimento  de  um  poeta! 

Vista  deslumbrante  a  da  ampla  e  formosa  varanda,  formada  por 


199 


elegantes  columnas  de  pedra  !  Como  que  tendo  aos  pés  a  larga  veiga 
verdejante  a  mirar-se  no  Lima,  que  a  namora  e  beija,  na  estação  cal- 
mosa; e,  soffrego  e  ciumento,  a  abraça  e  invade  no  inverno! 

Casa  em  que  nasceu,  em  1628,  António  Pereira  Rego,  auctor  do 
celebre  livro  Instrucçani  da  Cavallaria  de  Brida,  escriptor,  poeta  e 
valoroso  soldado  da  independência  nacional,  que  mereceu  seroheroe 
e  protogonista  de  um  poemeto  de  Jerónimo  da  Motta,  Abbade  de 
Mujães. 

Diz  o  poeta  : 

Donde  o  Lima  a  ponte  morde 
Com  dentes  de  cristal  fino 

António  Pereira  Rego 
Nasceu;  e  desde  menino 
Em  vez  de  cana  pueril 
Montou  os  brutos  altivos. 
De  nobre  sangue  gerado, 
Ede  acções  heróicas  filho, 
Não  sei  qual  seja  mais  nobre, 
O  herdado  ou  o  adquirido. 

E  passados  uns  desaseis  annos  desde  o  nascimento  de  Luiz  Cal- 
deira, também  n'essa  casa  (que  havia  sido  comprada  por  seu  pae) 
nascia  um  querido  companheiro  dos  meus  primeiros  annos,  que  desde 
logo  revelou  as  brilhantes  aptidões  litterarias  e  scientificas  de  que 
era  dotado,  Lourenço  Malheiro,  engenheiro  de  minas,  fallecido  em 
1890,  quando  acabava  de  entrar  no  parlamento  e  a  fortuna  parecia 
sorrir-lhe  e  que  ia  levanta-lo  ás  eminências  para  que  os  seus  com- 
provados talentos  o  recommendavam! 

Infeliz ! 

* 


Terminada  a  guerra,  era  bem  natural  que  a  Sr.^  D.  Anna  Efi- 
genia  quizesse  ir  reunir-se  a  seu  marido.  E  tanto  mais  isso  se  im- 
punha ao  seu  amor,  que  elle  soffria  ainda  muito  do  grave  ferimento, 
recebido  na  batalha  da  Asseiceira,  em  que  um  estilhaço  de  metralha 
lhe  fracturou  e  dilacerou  o  braço  direito,  ficando  por  muito  tempo 
privado  do  movimento  d'esse  braço,  como  consta  do  attestado  do 
Cirurgião-Mór  de  Infantaria  Ligeira,  Marcellino  Miguel  Gomes  (1). 

Ferimento  este  que  por  certo  determinou  a  sua  collocação  em  Runa. 

Partiu  pois  para  Lisboa  a  Sr.""  D.  Anna  Efigenia  com  o  seu  filho 
mais  novo. 

António,  como  já  dissemos  no  esboço  deste,  ficou  sempre  ligado 
ás  tias. 


(1)  Documento  em  poder  da  familia. 


200 


Tinha  oito  annos  incompletos  o  futuro  poeta  das  Flores  da  Bibíía 
quando  saliiti  de  Ponte  de  Lima  com  sua  uiãe. 

É  o  que  mostra  o  seguinte  e  interessante  documento,  que  é  sagra- 
damente  guardado  por  sua  familia: 


*^ri- 


SIGNA  ES. 
liade.  ài  <^^annos 
Ahurc  ^Ue*^^^^oS«^ 
Rosto  ^f^^-e'^^-yv^ 
Cahéllo     -. 
Sobrolhoi  f^Oí-fiV^ 
Olhos 
Hariz  1 


J_  E  N  D  o-s  E  apresentado  hoje  nesta  Prefeitura 


^^^'^^^^ 


/^<;^^^'3ry-^    O 


se  lhe  concede  permisaio  de  residir  nesta  Capital, 
Tendo  em  sua  companhia  .^^g-g-^^ji.  ^^."^  .<í^s<s^ 


-ry 


■^.^^^ 


,<^^,^íí*-&-^ 


Declarou  íp  rnorar  para  ^:»^^;^*-.<^>^cs'í^4</<^ 
>^-;C  —      do<:^VT^estncto  a  cujo  Prove- 


^y  dor  se  apresentará  dentro  em  24  horas. 


E  para  que  possa  ser  admiltido  em  qualquer 
casa  de  hospeda o-em  ,  cu  particular  se  lhe  passou  o 
presente,  que  deverá  reformar,  acabado  o  prazo  do 
tempo  porque  Ihehe  concedido,  sob  pena  de  pagar 
4S  800  réÍ3  de  raulcta  para  a  Casa  Pia  ,  e  para  o  Of- 
ficial  do  justiça  que  for  intima-loy  , 

Lisboa  QZH  ^^íâ^f^Z^.^^íry^£^à,%i^^^^^f^i^^^r>i,Q  J^ 

Jx  yy         ,^n  Qyi^ecrelano   ueral 


Deveria  terminar  aqui  esta  nota  que  já  nâo  é  curta.  Mas  outras 
considerações  me  estão  imperiosamente  dominando  o  espirito. 

Não  posso  furtar-me  a  faze-las.  Não  posso  esquivar-me  a  dizer 


201 


que  os  representantes  do  município  de  Ponte  de  Lima  teem  uma  di- 
vida em  aberto  para  com  a  memoria  desse  mallogrado  mancebo,  que, 
não  obstante  ter  fallecido  aos  trinta  e  dois  annos,  projecta  rever- 
berações de  gloria  sobre  a  terra  do  seu  berço  ! 

Tem-na  sempre  tido  muito  grande  para  com  D.  Francisco  de 
S.  Luiz! 

Sim ;  porque  não  pode  julgar-se  solvida  para  com  a  sua  memoria 
tão  illustre  em  pôrem-lhe  o  nome  (sem  a  mais  singela  lapide  desi- 
gnando a  casa  em  que  se  suppòe  nasceu)  em  uma  via  publica,  que 
não  é  a  principal  praça,  nem  o  principal  passeio,  nem  a  principal 
avenida,  como  seria  de  honra  para  terra  que  o  fosse!  Mais  para  a 
terra  do  que  para  elle  ! 

O  seu  nome  é  o  de  um  benemérito  da  pátria ! 

É  o  de  um  Vulto  que  tem  um  largo  logar  na  historia  ecclesias- 
tica  da  Egreja  portugueza,  na  historia  litteraria  e  na  historia  poli- 
tica do  nosso  paiz. 

Foi  um  grande  sábio  e  um  grande  patriota  ! 

Não  é  só  o  filho  mais  illustre  de  Ponte  de  Lima,  mas  um  dos 
filhos  mais  illustres  de  Portugal !  É  um  dos  seus  varões  illustres ! 

E  porque  assim  hão  de  pensar  todos  os  que  conhecerem  a  sua 
nobre  e  gloriosa  vida,  atrevo-me  a  propor  o  alvitre  de  um  bem 
pequeno  monumento !  Bem  simples,  bem  modesto  e  de  bem  fácil 
execução  ! 

Para  elle  e  também  para  o  sobrinho.  Para  o  poeta  tão,  illustre, 
tão  esquecido  e  tratado  com  tão  absoluto  desdém ! 

Para  fazer  executar  esse  singelo  monumento  basta  que  haja,  em 
Ponte  de  Lima,  uma  camará,  não  digo  patriótica  porque  todas  o  são, 
mas  uma  camará  que,  occupando-se  menos  das  politicas  do  presente, 
se  occupe  mais  da  politica  do  futuro,  isto  é,  da  educação  litteraria  e 
civica  das  futuras  gerações. 

Essa  vereação,  se  chegar  a  havê-la,  deverá  votar  uma  verba,  que 
não  arruinará  o  município,  para  fazer  uma  edição,  popular  e  barata, 
de  um  pequeno  livro  destinado  a  servir  de  premio  aos  alumnos  das 
escolas  e  para  andar  nas  mãos  de  todos,  porque  a  todos  convém 
lê-lo. 

É  o  Elogio  Académico  de  D.  Francisco  de  S.  Luiz  por  José  Maria 
Latino  Coelho,  edição  de  1873,  com  as  notas,  e  não  a  edição  posterior 
da  Academia  (1878)  sem  ellas. 

É  o  monumento  litterario  de  um  sábio  levantado  por  outro  sábio! 

Ficariam  conhecendo  as  maiores  bellezas  a  que  se  presta  a 
nossa  lingua  e  que  lhe  podem  ser  dadas!  Con>.eceria;,i  também  as 
virtudes  moraes  e  as  virtudes  civicas  de  um  grande  sábio  e  de  um 
grande  portuguez ! 

Já  se  vê  que,  para  tal  edição,  seria  preciso  haver  prévio  contra- 
cto, fácil  de  obter,  com  a  Empresa  Litteraria  Fluminense,  que  tem 
hoje  a  propriedade  do  livro. 


202 


Mas  deveria  este  conter  uma  segunda  parte.  N'ella  seriam  trans- 
criptas  as  brilhantes  paginas  de  Pinheiro  Chagas,  consagradas  a  Luiz 
Corrêa  Caldeira  e  ainda  algumas  das  mais  sublimes  poesias  do  malo- 
grado poeta. 

Seria  um  livro  de  consagração  e  de  preciosos  e  úteis  ensina- 
n'.entos ! 

Lições  de  historia,  lições  de  civismo,  lições  de  litteratura  ! 


203 


NOTA  3. 


Pessoa  da  mais  alta  competência  litteraria  nos  informou 
que  o  distincto  escriptor  portuense,  o  Sr.  José  Pereira  de 
Sampaio  (Bruno)  se  havia  occupado,  em  um  dos  seus  livros, 
do  nosso  poeta.  Procurei  debalde.  Resolvi-me  por  isso  a 
escrever  ao  erudito  homem  de  letras,  perguntando-lh'o. 

Teve  elle  a  generosa  benevolência  de  honrar-me  com 
uma  carta,  que  aqui  se  publica,  porque  contém  o  seu  con- 
ceito auctorisadissimo,  honrandu  a  memoria  litteraria  do 
illustre  poeta. 

Diz  assim  • 

«Porto,  1  de  junho  de  1915. 

«lUustrissimo  Excellentissimo  Senhor. 

«Nào  me  recordo  de  passagem  de  livro  meu  publicado  onde  tra- 
ctasse  do  poeta  Luiz  Corrêa  Caldeira,  cujo  alto  merecimento  aliás 
muitoconsidero. 

«Devia  ter  sido  em  qualquer  artigo  da  Vo^  Publico,  no  tempo  em 
que  entremeava  alli  artigos  políticos  com  artigos  litterarios.  Mas 
quando?  Por  agora,  enfermo  e  cançado,  não  me  sinto  com  força  e 
disposição  para  fazer  a  busca.  Fal-a-hei,  porém,  por  isso  mesmo  que 
tenciono  dar  á  estampa  o  meu  proniettido  livro  acerca  dos  modernos 
poetas  portuguezes,  entre  os  quaes  deve  avultar  no  juizo  publico 
Corrêa  Caldeira,  hoje  tão  injustamente  esquecido. 

«É  o  que  me  occorre  responder  á  honrosa  carta  de  V.  Ex."*,  e  a 
V.  Ek."  agradecendo,  muito  penhorado,  a  benevolência  das  suas  ex- 
pressões para  mim,  respeitosamente,  me  subscrevo 

De  V.  Ex.^ 
Mt.o  Alt. o  Ven.»""  e  Cr.''»  Obg.^i-^ 

José  Pereik.\  de  S.^mpaio. 
«Casa  de  V.  Ex." 
«Bomjardim,  414. 


204 


Infelizmente  a  persistente  enfermidade  do  distinctis- 
simo  escriptor  não  permittiu  que  aqui  fosse  indicado  o 
n.°  e  anno  do  jornal,  onde  poderia  lêr-se  a  sua  apreciaçrlo 
litteraria. 


D.  Amélia  Janny 


I 

Amélia  Janny  foi  uma  nobre  mulher  e  uma  inspirada 

poetisa. 

O  vento  dos  preconceitos  sociaes  açoitou-lhe  o  berço! 


206 


Mas  ella  era  como  estas  plantas,  que  os  ventos  não  de- 
sarreigam,  nem  quebram;  e  antes  parece  que  mais  as 
fazem  prender  á  terra  e  adquirir  maior  vigor. 

A  natureza  não  a  priviligiou  com  dotes  de  formosura, 
mas  não  lhe  negou  os  da  sympathia;  e  era  alta,  elegante, 
gentil! 

Aos  setenta  annos,  sem  curvar  o  peito,  caminhava 
erecta  e  direita,  como  caminhava  antes  dos  vinte,  em  que 
a  conheci ! 

E  o  seu  aprumo  moral  era  como  o  physico!  Tinha  uma 
nobre  altivez  de  sentimentos,  que  lhe  provinha  da  su- 
perioridade do  seu  espirito  e  da  consciência  do  seu 
Valor. 

Foi-lhe  escudo  no  caminho  da  vida!  No  perigoso  meio, 
em  que  foi  creada,  ficou  sempre  intangivel  a  sua  honra  de 
mulher  e  imaculado  o  seu  nome  de  senhora! 

Pelo  muro  moral,  que,  com  maior  ou  menor  razão, 
existia  entre  os  estudantes  e  as  famílias  de  Coimbra, 
nunca  lhe  falei  nos  dias  da  mocidade.  Nunca  procurei 
falar-lhe,  posto  por  vezes  estivesse  bem  próximo  d'ella. 
Mas  sempre  a  acompanhei  com  muita  sympathia,  que  pro- 
vinha do  seu  talento  e  do  mysterioso  romance  do  seu  nas- 
cimento, que  eu  conhecia! 

Éramos  da  mesma  geração.  Tínhamos  quasi  a  mesma 
edade. 

Quando  ella  fêz  o  enterro  da  sua  mocidade,  enterrou. 
sem  o  saber,  também  a  minha ! 

E  que  lindo  enterro  lhes  fez !  Ora  vejam : 


Camará   Ardente 


No  luxuoso  salão  de  purpura  forrado, 
Avista-se  uma  urna  em  pedestal  doirado. 

Sobre  ella  ondeia  e  treme  a  chamma  de  mil  lumes 
Respiram-se  no  ar  suavíssimos  perfumes ; 


207 

E  sobre  o  pavimento,  em  profusão  de  cores, 
Alasíram-se  festões  de  peregrinas  flores. 

Em  desalinho,  solta  a  farta  e  longa  trança, 
Suspira  ajoelhada  e  moribunda  a  Esperança 

E  defronte,  gentil  e  bello  como  a  aurora, 
Na  urna  debruçado,  o  Amor  soluça  e  chora. 

E  quando  esmorecia  o  sôm  da  résa 
Sahida  a  meia  voz  dos  lábios  da  Tristeza 


E  se  iam  apagando  os  últimos  clarões 
Dos  cirios  funeraes  e  das  mortas  illusões; 


Então,  com  mão  febril,  fechei  o  athaude 
Onde  ficava  morta  a  núnha  Juventude ! 

É  bello  e  viril ! 


Uma  das  paixões,  que  a  acompanhou  em  todos  os  dias. 
da  sua  vida,  foi  o  amor  pela  sua  terra! 

Amou  Coimbra,  como  só  se  ama  uma  mãe !  As  offen- 
sas  feitas  a  Coimbra,  doiam-lhe  como  feitas  a  ella  pró- 
pria ! 

D'essa  sensibilidade  do  seu  affecto  se  encontraram 
provas  ainda  depois  da  sua  morte ! 

Fez  testamento.  Legava  os  seus  haveres  (que  eram 
modestos,  mas  sufficientes  para  lhe  garantir  uma  honesta 
independência  e  a  pôr  a  coberto  das  mais  exigentes  neces- 
sidades) a  uma  parenta,  que  sempre  protegeu.  Sabendo 
porém  que  essa  parenta  estava  em  communhão  politica, 
com  os  que  ella  chamava  os  inimigos  de  Coimbra,  deu 
um  traço  no  testamento  e  declarou  que  o  inutilisava ! 

D'ahi  resultou  um  letigio,  que  está  pendendo  no  tribu- 
nal de  Coimbra. 


208 


O  amor  por  Coimbra  foi  um  dos  elos  da  cadeia  da 
nossa  amizade. 

Logo  nas  nossas  primeiras  conversações,  coniieceu 
ser  eu  um  de  aqueles  para  quem  Coimbra  era  a  terra 
de  encanto  da  poesia  de  João  de  Lemos;  e  que  fizera 
meus  os  versos  do  poeta: 


Sou  quasi  teu  filho:  amei-te 
Da  vida  no  alvorecer. 
De  Minerva  o  sacro  leite 
Por  tuas  mãos  vim  beber  ! 


Foi  aqui  que  me  sorria 
O  mundo,  a  vida,  a  poesia. 
Sou  quasi  teu  filho,  sou ! 


Este  commum  sentir  deu-nos  umas  relações  quasi  fra- 
ternaes ! 

Começaram  pessoalmente  bem  tarde.  Só  nos  últimos 
annos. 

E  como  começaram  ?  Por  forma  bem  simples : 

Uns  bellos  rapazes,  que  me  são  queridos,  sollicitaram 
a  minha  collaboração  no  Almanach  de  Ponte  de  Uma 
para  1910.  Não  soube  resistir-lhes.  Escrevi  um  artigo  de 
homenagem  litteraria  a  Amélia  Janny,  que,  nos  annos 
anteriores,  apparecera  como  collaboradora  d'essa  publi- 
cação. 

Determinou  o  artigo,  por  um  lado,  a  admiração  pelo 
seu  talento;  e,  por  outro,  os  laços  de  sangue,  alli  des- 
conhecidos, que  ligavam  a  poetisa  á  formosa  terra  do 
Lima. 

Sahiu  sem  assignatura,  e  só  com  duas  iniciaes. 


209 


II 

Eis  o  artigo : 

«A  distincta  senhora  e  iliustre  poetisa  do  Mondego 
tem  direito  a  entrar  na  galeria  de  figuras  iliustres,  que 
aqui  se  expõe  annoalmente  á  consideração  e  respeito  de 
todos  os  amigos  desta  terra. 

«Não  é  pela  collaboração,  com  que  tem  honrado  estes 
pequenos  livros.  Não ! 

«Um  titulo  melhor,  mais  sagrado,  mais  intimo  a  impõe 
á  nossa  homenagem ! 

«É  o  serem  elles  — estes  livros  —  como  que  um  registo 
de  tudo  quanto  gloriosamente  pertence  a  esta  querida 
terra  do  Lima;  de  tudo  que  com  ella  se  prende  e  rela- 
ciona ;  de  tudo  que  a  honra ! 

«Nascida  juncto  daquelle  formoso  rio,  tão  irmão  deste 
nosso  pela  belleza  das  margens  e  pela  limpidez  cristalina 
das  aguas,  a  senhora  D.  Amélia  Janny  tem  sangue  limiense 
nas  Veias! . .  . 

«São-lhe  aqui  devidas  todas  as  honras,  como  a  pessoa, 
que  também  é  nossa/. . . 

«Mas  como  prestar-lh'as? 

«Tendo  de  escrever  acerca  da  iliustre  poetisa  e  de 
pessoas,  que  pelo  sangue  lhe  foram  conjunctas,  e  aqui 
nasceram,  como  pode  fazel-o  a  minha  penna  desprimorosa 
e  —  ha  tantos  annos!  —  entregue  a  assumptos  alheios  a 
cousas  litterarias  e  até  muito  em  divorcio  com  ellas?! 

«Como   é   que,    desacostumado   e   desfavorecido,   eu 

posso  ter  a  ousadia  de  escrever  de  Amélia  Janny,  que  é 

uma   sacerdotisa  do  bello;  e  que,  tendo  em  si  o  fogo 

sagrado  da  poesia,  se  eleva,  nas  azas  do  seu  génio,  a 

alturas,  onde  a  não  posso  seguir?  !. . . 

14 


210 


«Como?. . . 

«Só  o  saberei  fazer;  só  poderei  desempenhar-me  do 
imprudente  e  pesado  encargo,  deixando  falar  o  meu  cora- 
ção, a  tradição  da  minha  família  e  as  minhas  recordações 
pessoaes! 

«Só  assim!...  Desculpem-me  que  as  eVoque;  e  que 
por  ellas  me  dirija  ! .  . . 


«A  senhora  D.  Amélia  Janny  provém  de  uma  família, 
que  tem  os  mais  illustres  pergaminhos  lítterarios,  de  que 
pôde  orgulhar-se  esta  villa !  De  uma  familia,  em  que  os 
dotes  privíligiados  da  intelligencia  e  do  talento  foram  patri- 
mónio commum  de  todos,  cujos  nomes  andam  ainda  na 
memoria  dos  vivos ! 

«O  sábio  D.  Francisco  de  S.  Luiz  —  Cardeal  Saraiva; 
António  Correia  Caldeira,  eloquente  parlamentar  e  distin- 
ctissimo  homem  publico;  o  poeta  Luiz  Corrêa  Caldeira, 
têm  os  seus  nomes  inscriptos  nas  folhas  de  ouro  da  histo- 
ria, da  litteratura  e  da  politica  do  nosso  paiz ! 

«Frei  Luiz  Saraiva,  irmão  do  Cardeal,  foi  também 
homem  muito  intelligente  e  instruído ! 

É  o  que  sempre  ouvi;  e,  interessantíssimo  para  a 
épocha,  delle  !i  um  largo  manuscripto  em  poder  de  pes- 
soa, que  muito  me  pertenceu  pelo  sangue  e  pela  afini- 
dade. 

«As  duas  irmãs  de  ambos.  D.  Joanna  e  D.  Marcelina, 
possuíram  distinctas  prendas  de  senhoras,  e  uma  cultura 
intelectual,  que  era  rara,  n'esse  tempo,  em  pessoas  do 
seu  sexo,  que  nunca  sahiram  daqui,  como  creio  não  sahi- 
ram  ! . . . 

A  senhora  D.  Amélia  Janny  —  como  é  bem  sabido  — 
nasceu  de  um  romance  de  amor  de  António  Corrêa  Cal- 
deira, que,  na  Verdura  dos  annos,  foi  um  gentil,  esbelto  e 
amoroso  rapaz. 

Tendo-o  eu  conhecido  mais  tarde  —  muito  mais  tarde 


211 


—  e  com  elle  pessoalmente  tratado,  posso  dar  testemunho 
da  grandíssima  bondade  do  seu  coração;  da  inexcedivel 
lealdade  do  seu  caracter;  e,  portuguez  de  antiga  tempera, 
de  ser  dotado  de  escrúpulos  de  honra  e  de  uma  austeri- 
dade de  principios  e  de  proceder,  levados  ao  extremo  do 
maior  rigor! 

<A  senhora  D.  Amélia  Janny  é  herdeira  directa  dos 
talentos  litterarios  da  sua  familia! 

De  seu  tio,  o  malogrado  poeta  das  Flores  da  Bíblia 

—  tão  cedo  roubado  pela  morte  ás  palmas  da  gloria  que 
o  esperavam! — herdou  o  dom  privilegiado  da  poesia! 

«Mal  pensava  o  infeliz  poeta  que  á  creança  que,  sen- 
tada em  seus  joelhos,  elle  acariciava  e  beijava,  estava 
insuflando  e  transmittindo  a  musa,  continuadora  da  sua 
inspiração ! 

<0  poemeto— .-I  Guerra  —  (1870)  tem  versos,  que 
são  da  sobrinha  e  parecem  do  tio !  Elle  se  honraria  muito 
de  assiana-los! 


«Nunca  tive  a  honra  de  falar  á  distincta  poetisa! 

-iíMas  sempre  a  li.  Por  vezes  a  applaudi ! 

<No  histórico  sarau  litterario,  presidido  por  A.  F.  de 
Castilho,  realisado  no  desapparecido  e  saudoso  Thcairo 
Académico,  em  maio  de  1862,  as  minhas  mãos  não  foram 
as  que  menos  enthusiasticamente  a  aplaudiram ! 

Nas  minhas  palmas  ia  admiração  pelo  génio  poético, 
que  a  bafejava,  e  a  minha  sympathia  pela  familia,  de  que 
procedia ! 

Que  saudades ! 

«Que  lembranças  dessa  noite  litterariamente  celebre! 

«O  poeta  dos  Ciúmes  do  Bardo  recitou  a  lenda  de 
Nossa  Senhora  da  Nazareth,  a  Carta  á  Imperatriz  do 
Brazil,  o  Janota,  e  não  sei  que  mais. 

A  sua  recitação  era  vagarosamente  cadenciada  e  mo- 
nótona ! 


212 


« Theofilo  Braga  recitou  uns  formosos  versos  —  como 
elle  nunca  mais  os  fez  —  da  Visão  dos  Tempos. 

^Nào  lhes  deu  relevo,  que  fizesse  impressão! 

^Guerra  Junqueira,  quasi  uma  creança,  apparecia, 
pela  primeira  vez,  perante  a  academia  reunida;  e  recitou 
uns  Versos  que  mal  se  ouviram. 

« Anthero  de  Quental,  esse  adorável  rapaz  de  20  annos, 
com  a  fronte  aureolada  de  cabellos  de  ouro,  entrou  no 
palco  —  que  era  a  tribuna  dos  poetas  —  com  passo  firme 
e  o  ar  de  independência  desdenhosa,  que  predizia  o  futuro 
Calvino;  o  futuro  auctor  do  Bom  Senso  e  Bom  Gosto, 


Vista  de  Coimbra.  —  Do  lado  da  casa  onde  morava  a  poetisa 


onde,  mais  tarde,  a  golpes  profundos  e  brilhantíssimos, 
havia  de  deixar,  para  sempre,  mal-ferida  a  auctoridade, 
respeitável  e  respeitada,  do  pontífice  litterario  daépocha! 

<'Não  recitou.  Leu,  sentado  a  uma  mesa,  alguns  dos 
Versos,  que  depois  publicou  nas  Odes  Modernas. 

«Dos  outros  poetas  não  ficou  registo  na  minha  memoria ! 

«Appareceu  afinal,  sympathica  e  timida,  pela  mão  de 
Castilho,  a  senhora  D.  Amélia  Janny. 

«A  harmonia  dos  seus  versos  (que  aqui  não  reproduzo 
para  reproduzir  outros),  a  sua  recitação,  a  suavidade  da 
sua  voz  encantaram  a  irrequieta  assembleia,  que  a  pre- 


215 


meou  com  palmas  e  homenagens  de  respeito,  bem  raro 
nos  que  a  compunham ! 

«Dessa  saudosa  festa  h'tteraria  pôde  Castilho,  referin- 

do-se  depois  a  ella,  escrever,  com  justiça,  o  seguinte: 

<Como  que  symbolisando  a  musa  do  Mondego,  uma 
«gentil  poetisa,  veio,  nova  Sapho,  merecer  n'este  certame 
«coroa  de  louros  e  murtha ! 

•^Ditosa  filha  de  Coimbra!  com  os  teus  donosos  vinte 
«annos  em  flor;  com  a  tua  voz  suaVe  e  timida,  como  o 
«aroma  exhalado  da  tua  alma  ! 

«Amélia  Janny!  perdoa-me,  se  hoje  diante  do  maior 
«publico,  te  renovo  os  meus  applausos»  (1). 

«Esta  a  prosa  do  insigne  poeta  e  grande  mestre  da 
nossa  lingua ! 

«Mas  como  prestar  homenagem  á  personalidade  litte- 
raria  e  illustre  de  Amélia  Janny,  sem  lembrarem  logo  os 
formosíssimos  versos,  que  João  de  Deus  lhe  consagrou, 
escrevendo-os  no  seu  álbum? 

«Que  pode  haver  de  mais  sublime?  De  maior  glorifi- 
cação para  ella? 

«Para  aqui  vou  transcrever  esses  versos,  não  do  volume 
de  lyricas  do  divino  poeta,  coordenadas  pelo  snr.  Theo- 
filo  Braga,  onde  os  encontro  com  variantes,  com  que  não 
posso  conformar-me  (2)! 

«Não !  Prefiro  ir  buscal-os  ao  meu  saudoso  guarda- 
joias  do  poeta ...  um  velho  caderno  com  as  folhas  ama- 
relecidas e  soltas,  como  as  folhas  das  arvores  por  cima 
das  quaes  o  outono  passou ! 


(1)  Conversação  Preambular  do  poema  D.Jayme  ou  .4  Domina- 
ção de  Castella  por  Thomaz  Ribeiro,  1."  edição,  i862. 

(2)  Poesias  ly ricas  completas  coordenadas  sob  as  vistas  do 
auctor,  por  Theophilo  Braga,  pag.  156  a  pag.  159.  Faça  quem  quizer 
a  comparação ;  e,  nas  estrophes  omittidas,  ainda  são  maiores  as  va- 
riantes. 

N.  B.  —  Publicam-se  agora  integralmente  todos  os  versos. 


214 


«Para  ali  foram  copeados  do  original,  que  não  vem 
para  aqui  dizer  como  —  ha  tantos  annos  —  esteve  nas  mi- 
nhas mãos  ! .  . . 


A  Amélia   Janny 


Oh  Janny !  teus  ais  me  exaltam ; 
Partem  d'alma  e  n'alma  echôam ; 
Filhos  de  alma  á  alma  voam, 

Sim  Janny ! 
E  se  as  lagrimas  te  esmaltam, 
Te  aljofáram,  te  matizam, 
Pelas  faces  me  deslizam, 

Como  a  ti. 

Mas  tu,  flor  !  brotaste  agora  I 
Quando  o  sol  mal  te  inda  aponta, 
Porque  choras  como  á  conta 

Do  porvir? 
Se  ella,  a  flor,  sorri  á  aurora. 
Tua  irmã  na  primavera, 
E  ave  e  homem  —  anio  e  fera  — 

Vês  sorrir? 

Pomba,  eu  sei !  ha  em  toda  a  alma 
Mola  occulta :  por  mais  cedo 
Que  lhe  toque  incauto  dedo, 

Mal  nos  vae ! 
Outra  Oreb  a  sede  acalma, 
Mas  de  pranto  amargo  e  duro, 
Que  é  da  nuvem  do  futuro 

Que  elle  cae ! 

Tu,  Janny,  nas  azas  tuas, 
Do  teu  génio,  tens  anhelos. 
Que  pediam  sonhos  bellos 

E  de  amor ! 
Sonhas  inda?  tu  fluctuas. 
Já  nas  aguas  do  diluvio, 
Viva  imagem,  sopro,  effluvio 

Do  Senhor ! 


215 

Que  vês  tu?  Sobre  a  mais  alta 
Das  montanhas  d'este  globo. 
Que  vês  tu?  N'um  throno  o  roubo 

Que  é  o  rei. 
Digno  rei !  que  mais  exalta 
Mais  eleva  os  que  o  adoram, 
Quanto  mais  ódio  liie  imploram 

Povo  e  lei. 

Rei  é  Deus ...  se  é  escravo  o  homem 
Rei  fez  elle  o  homem  todo. 
Cada  qual  pode  a  seu  modo 

Bem  viver. 
Pois  se  as  feras  se  não  comem 
Uma  á  outra;  havia  aquelle 
Que  Deus  fez  á  imagem  d'elle 

Tal  fazer? 

Se  o  fez,  fel-o  porque  o  sangue 
É  manjar  de  régio  lábio .  .  . 
Deus  é  justo,  Deus  é  sábio. 

Não  quer  tal ! 
Manda  Deus  que  o  boi  se  cangue 
Mate  e  coma,  porque  esse 
Tal  qual  nasce,  á  terra  desce 

Tal  e  qual! 

Deus  é  livre:  imagem  sua 
Livre  a  alma  que  perscruta: 
Livre  o  braço  que  executa 

Não  servil ! 
Ante  o  crime  só  recua, 
Ante  o  sangue  .  .  .  petrifica! 
Mas  se  um  dedo  o  rei  lhe  indica 

Mata  o  vil! 

Oh,  se  Itália,  Itália  ainda 
Presta  ao  mundo  um  novo  móbil, 
Se  ainda  á  vida  esta  alma  ignóbil 

Restituo! 
Desce!  desce  éra  bem  vinda! 
Quer  manná  inebriante. 
Quer  espada  flamejante. 

Vem,  se  és  tu! 


216 

Bella  és  sempre!  De  Deus  filha, 
Saes  ao  pae  na  formosura ! 
Bella  és  sempre,  sempre  pura. 

Como  a  luz! 
Tu,  auctor  da  maravilha 
D'este  mundo,  ajuda-o  n'isto! 
—  Garibaldi!  ou  novo  Christol .  .  . 

Gloria  ...  ou  Cruz! 

Geme,  pomba !  . . .  Quem  não  ha-de , 
Chora,  rosa!  chora  dhalia. 
Dos  jardins  d'esta  outra  Itália, 

Portugal; 
Mas  se  um  dia  a  liberdade 
Passa  enxuta  o  mar  vermelho. 
Tu,  dos  anjos  casto  espelho, 

Cala  o  mal .  .  . 


«A  obra  poética  de  Amélia  Janny  anda  espalhada  por 
tão  grande  numero  de  jornaes  litterarios  e  outras  publica- 
ções d'esse  género,  que  impossivel  me  é  dar  uma  relação 
completa  de  todos! 

«Podem  encontrar-se  versos  seus  no  Cysne  do  Mon- 
dego, Prelúdios  Litterarios,  Estreia  Litteraria,  Pano- 
rama Photographico  de  Portugal,  Portugal  Pittoresco 
—  jornaes  litterarios  de  Coimbra  — ;  na  Illustração  Uni- 
versal, A  Mulher,  Semana  de  Lisboa,  Republicas  — 
jornaes  litterarios  de  Lisboa;  Almanach  de  Lembranças 
Luso-Brasileiro,  Almanach  das  Senhoras,  em  annos 
seguidos  (Lisboa),  A  Borboleta  (Braga),  A  Alvorada 
(Famalicão),  A  Guerra  (folheto  avulso),  A  Imprensa  Por- 
tugueza  aos  Povos  de  Andaluzia  —  numero  único  —  Al- 
manachs  do  Commercio  do  Lima,  e  muitas  outras  publi- 
cações. 

«A  musa  de  Amélia  Janny  nunca  envelhece!  Como 
Garrett,  ella  fará  versos  sentidos  e  bellos  até  morrer! 

«De   tão   rico   e   opulento  thesouro,  querendo  trazer 


217 


para  aqui  uma  das  suas  jóias,  eu  só  poderia  ter  difficul- 
dades  e  hesitações  na  escolha!  Não  tenho! 

«Transcrevo,  só  devo  transcrever,  aquella  que  a  auctora 
por  certo  mais  ama;  a  que  lhe  é  mais  saudosa  e  mais  que- 
rida ! 

«Todos  que  temos  sentido  no  peito  o  mais  santo  e 
mais  puro  dos  affectos,  faisca  divina,  —  o  amor  por  nos- 
sas mães;  todos  que  se  enlevam  n'esse  sentimento,  mais 
que  nenhum  outro,  reciproco  e  leal,  todos  que  fizeram 
d'elle  um  perenne  culto  de  saudade,  que  lhes  é  como  que 
religião;  —  todos  —  hão-de  reconhecer  que  esta  poesia  de 
Amélia  Janny  deveria  lêr-se  e  ouvir-se,  de  joelhos,  como 
uma  piedosa  oração!  (1) 

«Vejam: 


Aos  annos  de  minha  Mãe 


A  ti,  que  debruçada  no  meu  berço, 
Por  noites  de  amargura  e  de  agonia, 
Velaste,  coração  em  dôr  submerso, 
Abrazada  na  febre  em  que  eu  ardia; 

A  ti,  que  me  ensinaste,  entre  mil  beijos, 
A  louvar  o  Senhor,  em  cada  aurora, 
Que  encerraste  as  esperanças  e  os  desejos 
Em  Vêr-me  alegre  e  forte  d'hora  em  hora ; 

A  ti,  que  da  af feição  fazendo  escudo, 
Affrontaste  o  rigor  de  atroz  destino, 
Que  ao  deixares,  por  mim,  familia  e  tudo 
O  teu  seio  de  mãe  soltava  um  hymno; 

A  ti,  ó  minha  Mãe!  martyr  obscura. 
Que  percorreste  a  via  dolorosa, 
Forte  do  teu  amor,  com  mão  segura, 
A  amparar-me,  a  sorrir-me,  carinhosa; 


(1)  Tem  nota  no  fim. 


218 

A  ti,  que  eu  vejo  sempre,  se  a  doença 
Me  entristece,  me  abate  e  curva  a  fronte, 
Junto  de  mim,  qual  brilha,  em  noite  densa. 
Uma  estrella  surgindo  no  horisonte; 

Livro,  em  cujas  paginas  eu  leio 

Um  poema  de  amor  e  de  ternura. 

Voz  —  como  outra  não  ha  — ,  seguro  esteio, 

Reprehensão,  que  sorri;  perdão,  que  dura; 

Olhar  em  que  se  espelha  o  affecto  immenso. 
Onde  vão  reflectir-se  as  minhas  deres, 
Abrigo  sem  egual,  luz  do  que  eu  penso. 
Mystica  urna  de  immurchaveis  flores; 

A  ti,  no  dia  dos  teus  annos,  dera 
A  alegria,  que  em  prantos  consumiste. 
Os  folguedos  da  tua  primavera, 
Em  vêz  da  tua  vida  amarga  e  triste ! 


«Depois  da  harmonia  d'estes  versos,  em  que  se  sente  o 
carpir  meiancholico  das  rolas  e  os  trillos  suaves  dos  rouxi- 
noes  do  Mondego  e  do  Lima,  quaesquer  palavras  nossas  se- 
riam. .  .  o  pio  do  mocho! 


Esse  era  o  artigo  pubhcado  no  annuario  de  Ponte  de 
Lima.  Só  alli  podia  e  devia  ser  publicado.  Só  o  auctor  se 
atreveria  a  publica-lo  alli. 

Quantas  razões  havia ! 

É  que  o  talento  da  distincta  senhora  era  o  corolário 
de  uma  genial  permissa,  que,  em  pleno  século  18,  no  dia 


219 


26  de  janeiro  de  1766,  surge  á  luz  e  depois  se  manifesta 
existir  occulta  n'aquella  villa! 

Era  o  fructo  de  uma  arvore,  cuja  raiz  fora  levada  d'alli ! 

Era  a  demonstração,  evidentissima,  da  força  —  ao 
mesmo  tempo  querida  e  tremenda  —  de  uma  lei,  escripta 
pela  natureza  no  próprio  sangue  de  cada  sêr,  ora  em  cara- 
cteres dourados  e  brilhantes,  ora  em  traços  negros  e  horrí- 
veis ;  e  que  se  chama  a  lei  da  hereditariedade  I 

São  bem  dourados  de  talento  e  distinção  os  caracteres 
com  que  essa  lei  se  lê,  em  pessoas  da  familia,  que  têm 
a  mesma  origem  limiense ! 

Que  força  de  divina  luz  nos  glóbulos  sanguíneos  da 
obscura  familia,  a  que  pertenceu  algum  dos  progenitores 
do  homem  illustre,  ao  qual,  em  meados  do  século  18,  seus 
pães  deram  o  nome  de  Francisco  Justiniano  Saraiva! 

Depois  de  apparecer  n"este,  appareceu  em  quasi  todas 
as  pessoas,  que  teem  a  mesma  origem,  e  em  successivas 
e  prolongadas  gerações!  (1) 

Comparando  o  appellido  da  mãe  dos  Caldeiras.  D.  Anna 
Efigenia  Corrêa  com  o  da  mãe  do  Cardeal  Saraiva,  D.  Ma- 
ria Corrêa  de  Sá,  vê-se  que  é  d'essa  plebéa  familia  Corrêa, 
que  promana  uma  tão  grande  nobreza  e  fidalguia  intellec- 
tuaes ! 


O  artigo  do  annuario  limiense  sahiu,  como  fica  dito, 
sem  assignatura,  mas  não  foi  difficil  á  poetisa  saber  quem 
d'elle  era  o  auctor. 


(1)  Já  vae  na  5.^  geração ! 

Um  juvenil  advogado,  o  Sr.  Caldeira  Coelho,  neto  do  Conse- 
lheiro Corrêa  Caldeira,  recentemente  formado,  mal  tomou  a  palavra 
nos  tibunaes  criminaes,  revelou  dotes  de  distincto  orador  forense. 

E  tal  é  a  força  da  hereditariedade,  n'esta  familia,  que  entre  a  mãe 
do  esperançoso  advogado,  a  Senhora  D.  Maria  Thereza  Deslandes 
Caldeira,  e  D.  Amélia  Janny  —  que  nunca  se  encontraram  —  havia 
não  só  inteira  similhança  physica,  mas  até  de  gestos  e  de  caligraphia. 


220 
Tive  entào  a  honra  de  receber  a  seguinte  carta: 

111.'""  e  Ex.'"o  Senhor 

Nunca  me  senti  tào  pequenina  e  tão  grande! 

Pequenina  em  relação  ao  meu  valor;  mas,  erguida  a  uma  tão 
grande  altura  na  sua  proza  elegante  e  rendilhada,  subo  tanto  que  até 
se  me  perturba  a  vista ! 

Não  tento  agradecer  a  riquíssima  moldura  em  que  V.  Ex.'  metteu 
o  meu  pequeno  nome. 

Não  o  saberia  fazer ;  mas  não  posso  f urtar-me  ao  desejo  de  dizer 
a  V.  Ex."  quanto  ambiciono  conhecê-lo  e  apertar  a  sua  mão,  que  tem 
de  ser,  por  força,  mão  amiga ! 

De  modo  que  vou  augmentar  a  minha  divida,  fazendo-lhe  um  pe- 
dido :  é  o  de,  na  sua  passagem  para  P. . .  avisar-me  para  eu  ir  á  Esta- 
ção cumprimenta-lo. 

É  pedir  muito? 

A  sua  generosidade  é  capaz  de  dispensar  esta  fineza  á 

De  V.  Ex.-^ 
Veneradora  e  amiga 

Amélia  Ja.x.xy 

Seria  indelicado  desprimor  obtemperar  a  este  pedido? 

Com  um  vellio  amigo,  antigo  companlieiro  dos  bancos 
escolares,  que  desde  logo  revelou,  no  inicio  dos  nossos 
estudos,  possuir  o  cérebro  de  um  homem  de  sciencia  e  o 
nobre  coração  de  um  velho  portuguez,  o  Dr.  Chaves  e 
Castro,  eu  tinha  um  compromisso:  o  de  ir  estar  com  elle 
alguns  dias  e  irmos  juntos  passear  na  sua  bella  proprie- 
dade, beijada  pelas  aguas  do  Mondego  e  do  Ceira,  a  qual 
não  conhecia.   Esse  compromisso  me  levou  a  Coimbra. 

Por  essa  occasião  fiz  a  minha  visita  á  poetisa.  Não  foi 
preciso  que  algum  guia  me  fosse  mostrar  a  casa.  Era 
ainda  a  mesma  em  que  já  morava  nos  meus  tempos  de 
estudante,  próximo  daquella,  onde,  no  quarto  de  Alberto 
Sampaio,  pela  primeira  vez,  falei  a  Anthero  com  aquella 
familiaridade  escolástica,  que  dispensava  cerimoniosa  apre- 
sentação. 


221 


Durante  os  dias,  que  estive  em  Coimbra,  a  visitei  nessa 
sua  casinha  da  Couraça  de  Lisboa,  onde  tudo  era  simples 
e  singelo,  mas  disposto  com  ordem,  elegância  e  bom  gosto. 

Durante  as  nossas  conversações,  por  vezes,  a  sua  porta 
se  abria  para  receber  a  Visita  de  senhoras,  de  professo- 
res e  outras  pessoas  distinctas  de  Coimbra,  que  iam  ievar- 
Ihe  homenagens  de  estima  e  consideração. 

Tantos  acontecimentos  tinhamos  visto  passar,  em 
outro  tempo,  por  diante  de  nós;  tantas  pessoas  nos  eram 
conhecidas,  e  a  respeito  das  quaes  completávamos  reci- 
procas informações,  que  parecia  continuarmos  conversa- 
ções que  já  haviamos  tido  no  passado! 

Era  interessantíssimo  o  seu  dizer,  cheio  de  observação 
e  espirito. 

E  nunca  faltava  o  assumpto !  Mulher  intelligentissima, 
dotada  de  rara  memoria,  durante  meio  século,  esteve, 
naquella  sua  casinha  da  formosa  encosta,  a  vêr  e  registar 
todos  os  acontecimentos,  conhecendo  mais  ou  menos, 
todos  os  homens  distinctos  das  diversas  gerações  acadé- 
micas, que,  n'esse  largo  periodo,  passaram  por  Coimbra ! 

Tinha  uma  singular  atracção  aquelle  ninho  da  ave 
canora!  Ninho  de  poesia,  de  virtude  e  de  bondade!  Onde 
a  caridade  recebia  culto  por  diversas  formas  e  aparecia 
nas  suas  variadas  manifestações  (1). 

E  que  deslumbrante  panorama  o  desse  formoso  ninho ! 

Debruçado  sobre  o  Mondego,  vendo  correr  as  suas 
aguas  e  ouvindo  os  rouxinoes  na  margem !  Abaixo  a  ponte. 
Em  frente,  o  ridente  bairro  de  Santa  Clara,  coroado  pelo 
histórico  convento  com  o  culto  e  a  lenda  poética  da 
Rainha  Santa !  A'  esquerda,  lá  ao  longe,  a  formosa  estan- 
cia da  Lapa  dos  Esteios,  ou  Lapa  dos  Poetas!  Mais  á 
quem,  os  sítios,  a  que  anda  ligada  a  trágica  morte  da 
linda  Ignês,  as  Lagrimas  e  a  Fonte  dos  Amores!  Sitios 
a  que  nem  falta  a  poesia  no  nome,  mas  onde  falta  agora, 


(1)  Vejam-se  as  correspondências  de  Coimbra  para  o  Diário  de 
Noticias  de  20  e  21  de  março  de  1914. 


222 


—  creio  —  o  copado  cedro  dos  versos  da  Victoria  Linda ^ 
que  muitas  vezes  me  vieram  á  memoria  pensando  na  morte 
de  uma  outra  Victoria  Linda,  que  é  a  ultima  figura  deste 
livro ! 

Foi  ahi,  que,  durante  mais  de  meio  século,  a  poetisa 
esteve  entoando  cânticos  a  tudo  quanto  é  bello  e  bom;  a 
tudo  quanto  é  nobre  e  grande!  Esteve,  durante  esse  largo 
período,  compondo  versos  com  a  mesma  natural  facilidade 
despretenciosa,  com  que  qualquer  outra  senhora  cuida  das 
suas  flores  ou  das  suas  avesinhas. 


V 


A  poesia  — disse  alguém  —  é  a  musica  das  almas! 

Se  nem  todos  amam  os  versos  e  a  poesia  é  porque 
nem  todos  têem  a  alma  afinada  para  perceber  as  bellesas 
e  harmonia  dessa  divina  musica! 

Instinctivamente  a  percebeu  Amélia  Janny.  Ninguém  lh'a 
ensinou.  Advinhou-a  bem  cedo,  quando,  ainda  como 
creança,  brincava!  Não  tinha  quinze  annos! 

Foi  n'essa  edade  que.  em  uma  tarde  de  chuva,  esten- 
dendo da  sua  janela  a  mão  para  aparar  algumas  gotas  de 
agua,  fez  uma  pequena  quadra,  que  ficou  na  memoria  das 
pessoas  da  familia,  não  tendo  nunca  sido  publicada: 

O  chuva!  cahi,  cahi ! 
Cahi-me  na  minha  mão: 
Assim  pudera  a  virtude 
Cahir-me  no  coração. 

Desde  esse  momento  sentio,  dentro  do  peito,  a  chamma 
sagrada! 


225 


Fez  depois  versos,  que  rasgou;  e,  aos  16  annos,  appa- 
recem  os  seus  primeiros  versos  publicados.  Foram-no 
por  António  Lúcio  Tavares  Crespo,  seu  parente  por  afi- 
nidade, em  um  jornal  de  Leiria.  O  L/z,  e  depois  reprodu- 
zidos por  Augusto  César  da  Silva  Mattos  no  Cysne  do 
Mondego,  de  que  era  redactor. 

Silva  Mattos  foi  grande  amigo  e  admirador  de  Amélia 


Vista  de  uma  parte  do  Terreiro  da  Universidade  e  de  uma  parte  da  Via  Latina 

Janny.  Juiz  exemplar,  apezar  de  poeta,  e  bom  poeta. 
apezar  de  juiz,  é  um  dos  que  muito  tem  mostrado  quanta 
verdade  ha  nos  versos  do  quinhentista: 

Não  fazem  mal  as  musas  aos  douctores 
Antes  mais  lustre  a  suas  lettras  dão! 


Li  agora  esses  primeiros  Versos  de  Ameh'a  Janny,  que 
se  encontram  no  n,*^  11  do  Cysne  de  Mondego,  de  11  de 
Maio  de  1857.  São  uma  longa  elegia  á  morte  de  uma 
amiga. 


224 


Entre  elles  e  os  que  agora  ahi  se  lêem  que  largos 
estádios  percorridos! 

Era  a  águia,  ainda  implume,  que  tentava  o  vôo.  De- 
pois, ganiiando  azas,  ergue-se  á  maior  altura  para  cantar 
Camões  e  Victor  Hugo,  sem  que  lhe  offusquem  a  vista 
e  a  ceguem  os  raios  deslumbrantes  do  Sol  d'essas  immen- 
sas  glorias! 

A  elegia  do  Cysne  marca  apenas  uma  data.  Nunca 
mais  deixou  de  poetar. 

Em  todas  as  festas  e  solemnidades  nacionaes,  em 
todas  as  festas  de  caridade,  em  saraus  litterarios,  em 
recitas  commemorativas,  e  sempre  nos  benefícios  a  favor 
da  Sociedade  Philantropico- Académica ,  apparecem  Ver- 
sos de  Amélia  Janny  e,  muitas  vezes,  apparecia  ella  a 
recita-los. 

No  Theatro  Académico,  no  Theatro  de  D.  Luiz,  no 
Salão  da  Associação  dos  Artistas  —  onde  recitou  a  sua 
bella  poesia  Progresso  —  ella  por  vezes  se  fez  ouvir  e 
colheu  farto  quinhão  de  applausos. 

Quando  alguma  celebridade  artística  passava  por  Coim- 
bra, não  deixava  de  a  saudar  com  os  seus  Versos.  Acho 
muito  bellos  os  que  dedicou  a  Celestina  Paladini! 


Não  se  limitava  a  cantar  os  Íntimos  e  ternos  senti- 
mentos, que  aninhava  no  coração. 

Lançava  a  vista  para  mais  largos  horizontes!  Deixa- 
va-se  arrastar  pelos  altos  ideaes,  que  lhe  illuminavam  a 
mente  e  lhe  ardiam  no  coração. 

Por  Vezes,  pedia  a  benção  a  Calliope;  e  ella,  uma 
fraca  e  modestíssima  mulher,  calçava  o  cothurno  da  mu- 
sa épica  para  entoar  cânticos  á  Pátria  e  aos  grandes 
nomes  da  sua  historia! 

É  d'esse  género  a  bella  poesia  por  ella  recitada,  em 


_^25 

1880,  no  Theatro  Académico,  por  occasião  das  festas 
•camoneanas,  na  recita  organisada  pelos  estudantes  d'essa 
•épocha.  Admirem-na: 

A  Camões 


Nós  vêmol-o  surgir,  heróico,  austero,  grande, 
Envolto  n'essa  luz  que  só  o  génio  tem, 
E  ao  contemplal-o  assim,  o  coração  se  expande, 
E  rende-se  ao  poder  que  d'esse  vulto  vem. 

Três  séculos  depois,  mais  viva,  mais  intensa 
Resplende  e  maravilha  a  gloria  de  Camões, 
Herança  collosal  d'uma  grandeza  immensa. 
Que  cada  geração  transmitte  ás  gerações. 

No  seu  poema  enorme,  em  cantos  magestosos, 
Desdobra-se  o  valor  do  povo  portuguez, 
Deslumbra,  ao  descrever  em  versos  assombrosos, 
O  fero  Adamastor  e  a  desditosa  Ignez. 

Soffreu  como  ninguém,  luctou  como  um  gigante. 
Um  malfadado  amor.. .  rasgou-lhe  o  coração, 
E  pôde,  ao  naufragar,  exhausto,  agonisante, 
Salvar  o  seu  paiz,  erguendo  uma  só  mão! 

£  que  essa  mão  continha  a  historia  nunca  lida 
Dos  brios  nacionaes,  dos  feitos  d'além  mar. 
D'essas  victorias  mil  d'uma  nação,  erguida 
Ao  máximo  explendor  que  é  dado  conquistar. 

E,  salvo  o  seu  poema,  a  morte  era  o  repouso. 
Era  a  alvorada  amiga,  era  a  suprema  luz. 
Era  a  ventura,  emfim,  o  ambicionado  goso. 
De  quem,  sem  murmurar,  levara  a  sua  cruz! 

-Previu,  prophetisou  a  queda  vergonhosa 
Da  pátria,  a  quem  legara  os  cantos  divinaes, 
E  ao  expirar,  talvez  de  fome,  luminosa 
A  gloria  lhe  cingia  as  vestes  immortaes! 

15 


226 

De  El-Rei  D.  Sebastião  nos  ímpetos  vehementes» 
Da  próxima  mina  o  passo  adivinhou, 
E  de  Alcacerquivir  nos  areaes  ardentes, 
Prestigio,  cVoa,  rei,  poder  — tudo  rolou. .. 

Do  muito  que  foi  nosso  é  pouco  o  que  hoje  resta,. 
Do  Velho  leão  do  mar,  do  ousado  Portugal, 
Apenas  um  tropheu  o  seu  poder  attesta: 
—  Um  livro  -esse  padrão  do  épico  immortal! 

Que  se  a  destruição  passa  como  Ashavero, 
Levando  a  decadência  ao  seio  das  nações, 
O  génio  as  faz  viver.  A  Grécia  teve  Homero, 
A  Itália  teve  Dante,  e  os  Luzos  tem  Camões. 

Nos  lances  mais  cruéis,  nas  magnas  da  existência. 
Na  terra  e  mar  gravou  em  bronze  o  seu  valor, 
E  teve  na  afflicção,  no  exilio,  na  indigência, 
A  força  de  viver,  a  fé  que  esmaga  a  dor. 

A  inveja  quiz  pousar-lhe  um  veu  sobre  a  memoria, 

A  ingratidão  teceu-lhe  o  fúnebre  lençol, 

E  elle  resurgiu  nas  paginas  da  historia, 

Qual  dentre  nuvens  sae  mais  fulgurante  o  Sol. 


Nem  todos  podem  ser  o  que  elle  foi  —Portento  —  ! 
Mas  vós  podeis  seguil-o.  —  Avante,  mocidade ! 
No  vosso  coração  erguei-lhe  um  monumento, 
E  amae,  como  elle,  o  estudo,  a  pátria  e  a  liberdade! 


Eu,  que  a  ouvi  recitar  e  a  applaudi,  n'esse  Theatro, 
quando  ella  tinha  vinte  e  um  annos,  lendo  agora  esses 
versos,  parece-me  estar  ainda  a  ouvil-a! 

Outros  tem,  de  egual,  acendrado  patriotismo! 


227 


V 


A  obra  poética  de  Amélia  Janny  é  enormíssima.  Enchia 
volumes. 

Tendo  de  transcrever  para  aqui  versos  da  illustre  poe- 
tisa, teniio  grandes  difficuldades  na  preferencia.  Tantos 
são  os  que  se  me  offerecem. 

Começarei  por  dar  publicidade  a  uns,  ainda  inéditos, 
que  ella  me  mandou  em  carta  de  15  de  agosto  de  1910: 


Três  Cantos 


Ó  dias  luminosos,  sempre  em  festa, 
Quando  somos  creanças,  a  folgar, 
Cantando  o  hymno  de  que  a  lettra  é  esta : 
Gosar,  gosar! 

O  loura  adolescência,  ó  sonho  lindo, 
Que  nos  povoa  o  somno  e  o  despertar, 
Em  doce  melodia  repetindo: 
Amar,  amar! 

O  sombra  da  illusão,  que  foi  ventura, 
Fumo  que  o  vento  dissipou  no  ar! 
De  que  sf3  resta  o  psalmo  d'amargura: 
Chorar,  chorar ! 


Entre  tantissimas  composições  da  distinctissima  poe- 
tisa, eu  quero  honrar-me  em  trazer  para  aqui  a  que  ella 
consagrou  á  que  chama  a  sua  confidente  e  amiga: 


228 


A  Poesia 


Poesia!  eu  te  amo,  confidente  e  amiga, 
Com  quem  minha  alma  se  entrelaça  e  chora! 
Tu,  que  és  nas  trevas  de  veladas  noites, 
A  estrella  d'alva  precedendo  a  aurora. 

No  teu  regaço  descançando  a  fronte, 
Sorri-me  a  crença  de  um  melhor  Viver; 
Olvido  tudo  que  me  opprime;  e  góso 
Com  teus  afagos  divinal  prazer. 

Fogem-me  as  débeis  affeições  da  terra, 
Que  a  aragem  fria  da  traição  balança; 
E  ao  vê-las  todas  resvalar  no  abysmo, 
Sinto  com  ellas  fenecer  a  esperança. 

Então  surgindo  luminosa  e  bella, 
Deixando  em  ondas  fluctuar  o  veu. 
Tu  Vens  n'um  beijo,  que  me  enxuga  o  pranto, 
Roubar-me  á  terra,  recordar-me  o  ceu  I 

Ruge  a  calumnia  a  tripudiar  maldicta, 
Por  sobre  as  rosas  do  sentir  mais  puro 
Curvada  ao  peso  de  um  soffrer  cruento 
A  paz  d'esta  alma  nas  soidões  procuro. 

Mas  tu  despontas  magestosa  e  altiva, 
E  a  um  leve  aceno  da  nevada  mão, 
O  desalento  desparece;  e  eu  fito 
A  lisa  estrada  que  diviso  então. 

Da  consciência  no  pallido  espelho 
Revejo  as  scenas  de  um  viver  formoso. 
Sem  que  uma  culpa  lhe  ensombrasse  o  brilho. 
Ou  negra  mancha  lhe  empanasse  o  góso. 

E  tu,  sorrindo,  graciosa  e  linda. 
Dos  negros  olhos  na  divina  luz, 
Dás-me  a  ventura  que  me  nega  o  mundo, 
Ergues  ditosa  quem  vergava  á  Cruz ! 


229 

Poesia!  eu  te  amo!  por  caladas  noutes, 
Quando  entre  folhas  se  adormece  a  aragem, 
E  a  lua  passa  no  cristal  do  rio 
Em  longos  beijos  reflectindo  a  imagem ; 

Quando  exhaurida  me  descae  a  fronte 
E  no  futuro,  desolada,  scismo, 
Sem  que  uma  esperança  me  illumine  a  vida, 
Sem  ter  a  força  de  encarar  o  abysmo ; 

É  então  que  as  azas,  desprendendo  rápidas, 
Fendendo  o  espaço,  qual  subtil  vapor. 
Vens  dar-me  a  fé,  que  se  extinguira  em  lagrimas, 
E  a  doce  crença  que  murchava  em  flor. 

Visão  querida,  que  anciosa  invoco, 
Se  um  dia  perco  teu  materno  abrigo, 
N'essa  hora,  solta  dos  terrenos  laços, 
Livre,  minha  alma  voará  comtigo! 


Não  OUSO  fazer  a  apreciação  d'estes  formosos  versos! 
Ahi  os  tem  o  leitor. 
Aprecie  e  admire-os! 


VI 


Como  documento  do  Vigor  do  seu  estro  e  do  seu  poder 
descriptivo  com  as  finas  cores  da  sua  pallieta,  ha  uma 
poesia  que  desejo  appareça  n'este  livro,  já  porque  é  pouco 
conhecida  e  merece  sê-lo,  já  porque  é  uma  das  que  lhe 
era  mais  querida. 


250 


O  Medico 


Nas  horas  de  remanso  iriadas  de  ventura, 
Quando  a  alegria  solta  os  cantos  seductores, 
Quando  nos  foge  o  tempo  e  tudo  nos  murmura 
A  canção  do  prazer,  e  a  vida  é  aroma  e  flores, 

Ninguém  o  vê,  ninguém  se  lembra  que  elle  existe, 

—  Heroe  sublime  e  bom,  de  si  próprio  esquecido, 
Entrando,  como  a  luz,  na  casa  pobre  e  triste, 

A  tudo  o  que  padece  attento  sempre  o  ouvido. 

Passa  sem  elle  a  festa,  o  baile  deslumbrante, 
O  banquete  ruidoso,  a  dança  estonteadora 
Aonde  a  mocidade,  inquieta  e  palpitante. 
Vive  secMos  d'amor  no  espaço  d'uma  hora ! 

Quem  pensa  n'elle  então,  no  martyr  ignorado, 
Que  consome,  a  estudar,  as  longas  noites  frias. 
Em  lucta  permanente,  em  duello  despiedado, 
A  combater  com  a  morte  em  lentas  agonias?  ! 

Onde  a  tristeza  e  a  dôr,  o  desespero  e  as  lagrimas. 
Se  juntam  n'um  concerto  estranho  e  procelloso; 
Quando  a  mãe  desgrenhada  abraça  o  filho  pallido 
Em  que  a  doença  estampa  o  sello  pavoroso ; 

Sempre  que  a  humanidade  o  seu  auxilio  implora; 
Da  noite  a  escuridão,  os  temporaes,  a  neve, 
O  conchego  do  lar,  a  familia  que  o  adora, 

—  Nada  o  detém;  caminha  a  passo  firme  e  breve. 

E  medico:  pertence  aos  seios  que  soluçam. 
Ás  mãos  que  para  elle  estendem  supplicantes 
Os  que,  loucos  de  dôr,  de  dôr  apenas  pulsam, 
E  lhe  pedem  a  vida,  em  gritos  lancinantes! 

Entrou?  entrou  com  elle  a  esperança  radiosa, 
Interrogam-lhe  o  olhar,  esperam  a  sentença; 
Faz-se  o  silencio  em  torno  ao  leito  onde  repousa 
Alguém  que  geme  e  soffre  o  horror  d'atroz  doença. 


251 

«Doutor!  brada-lhe  um  pae,  a  minha  filha  é  nova, 
«Formosa  e  boa,  e  é  mãe  —  não  deve  inda  morrer. 
<'E-lhe  esta  casa  um  céu,  é  fria  e  negra  a  cova.  .  . 
«  —  Tudo  pôde  alcançar  a  sciencia  quando  quer.  .  , 

Pôde  roubar  á  morte  a  victima  que  chora? 
Trocar,  no  d'alegria,  o  pranto  d'aff lição? 
Terá  de  a  ver  morrer,  impassível,  embora 
Lhe  estremeça  d'angustia  e  magua  o  coração  ? 


Que  de  vezes,  meu  Deus,  domina  triumphante 
A  doença  que  enlucta  e  esmaga  uma  familia, 
E  bemdiz  o  trabalho,  a  lida  fatigante, 
Os  dias  d'anciedade,  as  noites  de  vigilia; 

Mas  quantas,  quantas  mais,  debalde  pensa  e  estuda, 
Tentando  penetrar  na  noite  da  incerteza, 
È  interroga  a  sciencia  implacável,  muda. 
Ante  o  poder  da  morte  arrebatando  a  presa ! 

Austero  no  dever,  altivo  no  seu  posto, 
Acceita  a  ingratidão  ~  a  moeda  mais  vulgar  — 
Benévolo,  sereno,  a  placidez  no  rosto. 
Na  consciência  a  paz,  sempre  o  perdão  no  olhar ! 

Fatiga-se  na  lucta,  alvejam-lhe  os  cabellos, 
Invade-lhe  a  existência  uma  tristeza  infinda.  .  . 
Sumiram-se,  d'ha  muito,  os  seus  ideaes  mais  bellos, 
Mas,  se  tudo  mentiu,  a  sciencia  resta  ainda. 


Mais  tarde,  quando  passa  o  velho  sábio,  o  medico. 
As  creanças,  a  rir,  querem  beijar-lhe  a  mão.  .  . 
E  quando,  emfim,  termina  o  nobre  sacerdócio, 
A  sua  historia  fica  em  mais  d'um  coração !  .  .  . 


Ainda  uma  pequenina  composição  para  contraste.  Re- 
commenda-se  pela  singelesa  e  espontaneidade. 


252 


N'um  dia  de  annos 


Três  de  março  —  alegre  data, 
Que  entre  perfumes  se  espera, 
Porque  do  cinto  a  desata 
A  deusa  da  primavera. 

E  a  primavera  da  vida. 

Que  nos  cinge  em  seus  fulgores 

É  tão  ditosa  e  florida 

Como  a  quadra  dos  amores. 

Que  o  destino,  em  seus  arcanos.,. 
N'um  abraço  deixou  presa 
A  festa  dos  vossos  annos, 
Á  festa  da  natureza. 


VI 


Ella,  que,  em  toda  a  sua  vida,  amou  tanto  o  seií 
Mondego,  teve,  ao  fim  d'ella,  preitos  de  admiração  para 
outro  rio. 

Amou  tâmbem  o  Lima. 

Nas  visitas,  que  lhe  fiz  em  Coimbra,  manifestou-me 
Vehementes  desejos  de  conhecer  Ponte  de  Lima.  Dahi 
um  convite  e  a  acceitação  d'elle  para  o  futuro  mês  de  se- 
tembro. 

Não  pôde  ir,  por  causa  do  compromisso  tomado  parai 
a  assistência  a  um  casamento,  cuja  data  não  podia  ser  alte- 
rada, nos  dias  em  que  se  realizam  as  festas  annuaes- 
d'aquella  villa.  Teve  de  ir  dias  antes. 


233 


A  carta,  que  precedeu  essa  visita,  contêm,  em  poucas 
palavras,  com  tanta  sinceridade  e  modéstia,  o  resumo  da 
sua  vida.  que  quero  reproduzi-la,  omittida  apenas  a  parte 
em  que  é  exageradamente  amável  e  honrosa  para  mim. 


«Coimbra,  5-9-910. 

'Ex.""'  amigo 

Agradeço,  comovida,  toda  a  amizade  de  que  a  sua  carta,  rece- 
bida hontem,  vem  cheia. 

A  mim.  pobre  creatura,  creada  modestamente,  trabalhando  muito, 
a  exemplo  de  minha  mãe;  quasi  sempre  sem  creada,  por  varias  razões; 
singelamente  vestida:  frequentando  pouco  a  sociedade.- que  eu  via 
com  maus  olhos,  —  impressiona-me  immenso  o  que  V.  Ex.^mediz! 
«  ••  diz-me  que  não  tem  commodidades,  nem  pessoal  para  me 
receber  I 

Não  me  torne  a  dizer  isto,  pois  não?  Não  são  as  festas,  embora 
muito  pomposas,  como  diz  o  jornal  que  V.  Ex.''  fêz  a  fineza  de  man- 
dar-me,  que  ahi  me  levam.  Tenho  a  aspiração  de  conhecer  esse  Lima, 
qufe  me  não  será  Lethes,  porque  ficará  sempre  como  a  mais  linda  mi- 
ragem na  minha  saudade;  os  esplendores  d'essa  natureza;  a  graça 
d'essa  terra  amada  por  quantos  a  conhecem. 

<;0  seu  espirito,  meu  amigo,  é  a  mais  inquieta  e  matizada  borbo- 
leta. Não;  as  suas  azas  nasceram  comsigo,  como  as  das  aves.  Não 
tem  o  sol- •-,  mas  achei-lhe  uma  graça  infinita  pela  sua  inesperada 
amabilidade ! 

Deve  sentir  um  grande  prazer  n'esse  descanso  de  poucos  dias, 
que  essa  verificação  de  tristes  poderes  lhe  vae  roubar,  sem  proveito 
para  ninguém. 

«Deixe  passar  a  minha  ignorância,  sem  reparo;  mas  acceite,  sem 
sacrifício,  a  amizade  e  admiração  com  que  o  recorda  a 

Amélia  Jax.vy.» 


Durante  os  dias  que  alli  esteve,  conquistou  a  admiração 
e  as  sympathias  de  toda  a  gente  que  d'ella  se  approximou : 
grandes  e  pequenos,  alguns  bons  rapazes  das  escolas  su- 
periores e  algumas  pessoas  distinctas  da  terra,  e,  entre 
estas,  a  Senhora  Condessa  e  Conde  de  Bertiandos,  que 
muito  expressivamente  lhe  manifestaram  a  sua  sympathia.. 


234 


Demos  um  pequeno  passeio,  acompanhando  o  rio  até 
á  Ponte  da  Barca,  pela  margem  esquerda,  e,  depois  de 
alguma  demora  em  Arcos  de  Vai  de  Vez,  admirando  os 
formosos  panoramas  que  enquadram  aquella  villa,  regres- 
samos pela  margem  direita,  não  se  cançando  de  admirar 
as  bellezas  do  rio,  fazendo  repetidamente  parar  o  trem ! 

Ficou  com  saudosas  impressões.  Em  carta,  que  pre- 
cedeu apenas  doze  dias  a  sua  morte,  mandou-me  os  ver- 
sos, que  vão  lêr-se,  que  deviam  ter  sido  publicados  na 
Limiana,  e  não  foram  por  virtude  da  suspensão  tempo- 
rária d'esta  interessante  revista  litteraria  regional. 

Intitulam-se : 


Ponte  de  Lima 

(Aos  seus  filhos) 

Não,  não  posso  esquecer  o  mago  encanto 
D'essa  terra  graciosa  e  sonhadora, 
Onde  as  horas  e  o  tempo  correm  tanto, 
Onde  tudo  nos  prende  e  a  vida  inf lora ; 

Dos  montes  que  se  elevam  como  altares 
Onde,  perto  do  céu,  Deus  nos  escuta 
A  narração  dos  prantos  e  pesares 
Da  Vida,  na  tremenda  e  eterna  lucta ! 

Do  Lima  preguiçoso  e  disfarçado, 
Mudando  de  caminho,  a  cada  instante, 
Nas  curvas  serpentinas  resguardado 
Por  margens  lindas,  d'arvoredo  ondeante; 

Dos  Palácios  as  paginas  gloriosas 
Da  sua,  tão  authentica,  nobreza, 
Mantida,  sempre,  nas  acções  briosas. 
Dos  seus  filhos  no  porte  e  na  firmeza. 

Bem  gravada  no  intimo  do  peito, 
Bem  presa  na  memoria  do  meu  ser 
Tenho  a  data  em  que  a  vi !  Com  que  respeito 
Invoco  d'essa  tarde  o  esmorecer  1 . . . 


255 

Ponte  romana,  enegrecida  e  linda, 
Banhada  de  luar  e  de  poesia. 
Quando  te  atravessei,  iembro-me  ainda 
Como,  nervoso,  o  coração  batia  ! 


Passavam  auras  perfumadas,  leves, 
E,  na  paz  d'essa  noite  constelada, 
Parecia-nie  ouvir  as  notas  breves. 
Os  maviosos  sons  d'uma  Balada  ! 

Foi,  talvez,  devaneio,  essa  harmonia, 
Ephemero  prazer  diluido  em  pranto. 
Um  ecco  do  passado  •  •  a  fantasia 
Bordando  um  sonho  que  eu  amara  tanto ! 


VIII 


Eram  muitas  as  pessoas  que  lhe  pediam  para  coUigir 
em  livro  os  seus  versos. 

Muito  especialmente  a  instigavam  a  isso  o  Dr.  Guima- 
rães Pedrosa,  o  abalisado  professor,  com  cuja  amisade 
muito  se  honrava,  João  de  Paiva  e  eu. 

Dizia-me  que  era  preciso  uma  grande  selecção,  e  que 
se  sentia  sem  forças  para  a  fazer. 

Chegou-me  a  dizer  que  tinha  começado  esse  trabalho  e 
que  teria  por  auxiliar  a  Senhora  Marqueza  de  Pomares ;  e 
não  podia  tê-la  melhor,  porque  a  nobre  e  distinctissima  se- 
nhora, além  de  amiga  dedicada  de  Amélia  Janny,  é  também 
uma  distincta  poetisa. 


Em  1915  veiu  a  Lisboa  e  aqui  esteve  trez  mezes,  hos- 
peda da  Senhora  D.  Emilia  Midosi,  a  respeitabilissima 


236 


senhora  que  é  viuva  "de  Henrique  Midosi,  e  que  professava 
pela  poetisa  a  mais  carinhosa  affeição. 

Foi  aqui  que  compôz  o  soneto  dedicado  a  D.  Constança 
da  Gama. 

Indo  para  Coimbra  escreveu  os  versos  a  Ponte  de  Lima 
e  outros  ao  Tribunal  de  Haya.  São  aquelles  e  estes  os 
seus  últimos  versos. 

Ella  que,  em  1870,  tinha  fulminado  a  carnificina  d'esse 
anno,  escrevendo  o  seu  brilhante  poemeto  A  Guerra,  parece 
que  adivinhava  que  os  campos  de  uma  grande  parte  da 
Europa  iam  converter-se  em  mares  de  sangue!  Saudou 
por  isso  a  conferencia  de  Haya.  Pensou  até  em  ir  de 
perto  saudar  os  sacerdotes  da  Paz ! 

Chegou  a  fazer  as  malas  para  ir  á  Hollanda  na  com- 
panhia de  duas  senhoras,  sobrinhas  de  João  de  Paiva. 

Não  pôde  ir!  Cahia  de  cama,  e  nunca  mais  se  levan- 
taria delia!  No  dia  19  de  marco  de  1914,  falleceu ! 


Foi  uma  pobre  mulher  cheia  de  uma  enorme  riqueza 
moral  e  intellecíual ! 

Teve  no  peito  um  thesouro  de  nobres  affectos  e  no 
espirito  os  mais  elevados  ideaes ! 

Viveu  sempre  com  a  mente  ás  musas  dada! 

Foi  uma  alma  gentil ! 


NOTA  1. 


Silva  Mattos,  o  distincto  amigo,  distincto  magistrado  e  distincto 
poeta,  depois  de  ler  o  artigo  do  annuario  limiense  (não  escrevo ponte- 
limense  por  uma  razão  chorographica  e  porque,  dizia  Castilho,  que 
havia  palavras  que  lhe  faziam  o  effeito  de  lhe  estarem  a  picar  o 
ouvido  com  lasquinhas  de  corno)  '  devolveu-m'o  com  os  seguintes 
versos: 


De  Joelhos 

(Ao  meu  amigo  P.  O.)- 

D'alma  lúcidos  espelhos 
Um  a  um  seus  versos  dão. 
Devem  lêr-se  de  joelhos 
Com  fervor,  com  devoção. 

Que  amor,  que  ternura  brilha 
No  sentir  que  elies  contêm! 
Distilam  da  alma  da  filha 
Enlevos  d'amôr  da  mãe. 

Desde  que  os  li,  meu  intento 
Foi  seguir  os  teus  conselhos. 
Versos  de  tal  sentimento 
Devem  lêr  se  de  joelhos! 


(1)  Em  puro  latim:  Llniia,  Limiae,  o  rio  Lima;  e  por  isso  tem  uma  immediata  e 
-egitima  filiação  o  meu  limiense. 


238 


NOTA  2. 


Por  occasiào  do  fallecimento  de  Amélia  Janny,  em  diversos  jor- 
naes  foram  publicados  artigos  prestando  homenagem  ao  talento  e  ás 
virtudes  da  illustre  poetisa. 

D'esses  artigos  quero  transcrever  aqui,  supprindo  assim,  quanto 
possível,  as  defficiencias  do  meu  escripto,  o  que  foi  publicado  na 
Capital,  na  secção  que  se  intitula— 5erões  Femininos,  devido  á 
penna  elegante  da  distincta  senhora,  que,  sob  o  pseudonymo  de 
Roxane,  esconde  o  seu  nome  illustre,  mas  não  o  seu  fino  talento;  e 
que  todos  sabem  ser  a  Senhora  D.  Amélia  Caldas  Xavier. 

Eis  o  artigo: 

«Quando  hontem  os  jornaes,  no  cumprimento  da  sua  missão  impe- 
riosa, me  trouxeram  a  fria  noticia  da  morte  de  Amélia  Janny,  senti 
dentro  da  minha  alma  o  travo  amargo  d'uma  surpreza  dolorosa, 
impressionando  tristemente  o  meu  espirito. 

«Tinha-me  habituado  desde  creança  á  sympathia  d'este  nome 
feminino,  subscrevendo  sempre  versos  de  extraordinário  brilho  poé- 
tico e  grande  mérito  litterario. 

«O  anno  passado,  pelo  verão,  encontrámo-nos,  a  poetisa  e  eu,  no 
hospitaleiro  e  nobre  salão  da  sr.""  D.  Maria  Amália  Vaz  de  Carvalho, 
em  Santa  Catharina,  e  o  conhecimento  pessoal  da  illustre  poetisa 
deu-me  o  prazer  que  geralmente  sente  quem  sabe  admirar  ao  des- 
cobrir as  delicadezas  d'uma  fina  alma  de  mulher,  cheia  de  emotivi- 
dade, e  as  scintillaçôes  luminosas  d'um  espirito  gentil,  cultivado  e 
vivo,  da  mais  interessante  vivacidade.  A  partir  d'esse  dia.  trocaram-se 
as  nossas  visitas  durante  a  sua  curta  permanência  em  Lisboa  —  n'esta 
Lisboa  que  não  tinha  para  a  poetisa  os  encantos  do  seu  suggestivo 
Mondego,  que  tanto  enternecera  a  sua  alma,  inspirando-lhe  lindos 
versos  de  requintado  sabor  romântico  e  de  incontestáveis  bellezas. 

«D'uma  d'essas  visitas  a  que  alludo,  ficou-me  a  inapagavel  recor- 
dação d'algumas  poesias  que  me  disse,  na  mais  singella  despretensão 
litteraria  e,  o  que  é  mais  interessante,  a  d'uns  magníficos  sonetos, 
compostos  ultimamente  para  um  concurso  de  sonetos  de  amor,  aberto 
não  ha  muito  tempo  ainda,  por  uma  revista  de  Lisboa  e  que  me  deram 
a  extranha  impressão  de  serem  versos  dos  mais  radiosos  vinte  annos . .  - 
tal  era  a  frescura,  a  vida,  a  expontaneidade  do  sentimento,  a  graça 
das  imagens  e  os  tons  quentes  do  seu  extraordinário  colorido. 

<Tinha  73  annos  a  illustre  senhora,  a  delicada  e  fina  poetiza,  que 


259 

eu  ha  pouco  ainda  ouvi  com  tanto  interesse  e  tão  sincera  ternura,  e 
que  ao  ler  agora  a  inesperada  noticia  da  sua  niorte  tantas  saudades 
senti  que  me  deixara.  .  .  Mais  um  belio  espirito  que  se  apaga,  uma 
commovida  alma  de  mulher  que  desapparece  .  .  . 

«A  poetisa  do  Mondego,  como  em  Coimbra  lhe  chamavam,  deixa, 
com  os  seus  versos  dispersos  em  varias  publicações,  muitas  tristezas 
e  saudades  dispersas  pelas  almas  dos  que  a  conheceram  e  affectuosa- 
mente  a  admiraram.» 

ROXANE. 


Joaquim  Champalimaud  e  Vasco  Leão 


õa(1) 


O  anno  de  1895  tem  sido  fatal  para  a  Relação  do  Porto ! 

Pouco  tempo  ha  que  a  morte  lhe  roubou  um  dos  seus 
mais  distinctos  juizes,  o  sr.  Joaquim  d' Araújo  Cabral  Mon- 
tez de  Champalimaud! 

A  leiva  do  cemitério,  revolvida  pela  enxada  do  coveiro 
para  abrir  a  sepultura  d'este  magistrado  illustre,  mal  come- 
çava a  solidificar-se,  e  já  uma  outra  sepultura  se  abre  para 
abrigar  os  restos  mortaes  d'um  seu  digno  companheiro  de 
tribunal,  o  sr.  João  Vasco  Ferreira  Leão! 

Caracteres  de  indole  differente,  a  ambos  irmanava  a 
mesma  paixão  da  justiça,  o  mesmo  amor  de  illustrar  e 
enriquecer  o  espirito  para  o  cumprimento  do  dever. 

^Erudimini  qui  jiidicatis  terram:»,  diz  o  psalmo:  e 
ambos  elles  eram  zelosos  observantes  d'este  preceito,  im- 
posto a  todos  os  julgadores  pelas  lettras  sagradas. 

Champalimaud  foi  admirável  exemplo  de  amor  pelo 
trabalho  e  de  escrupuloso  desempenho  da  profissão,  que 
tanto  se  empenhava  em  honrar! 

Era  para  vêr  e  admirar  como  aquelle  homem,  desde 
tantos  annos  torturado  pela  doença,  débil  e  sem  forças, 
que  mal  podia  subir  as  escadas  do  tribunal,  onde  entrava 


(1)  Artigo  publicado  no  n.°  519  da  Revista  dos  Tribunaes,  de 
15  de  setembro  de  1895. 

Os  perfis  dos  juizes  Poças  Falcão  e  Dias  de  Oliveira  foram 
publicados  no  livro  —  No  Campo  da  Justiça. 

16 


242 


sempre  cançado  e  offegante,  pouco  depois  tomava  parte 
vigorosa  nas  questões  que  se  discutiam,  e  se  esforçava 
pelo  acerto  das  decisões,  pugnando  com  ardor  pelo  que 
julgava  justo  e  legal  até  ficar  extenuado  e  sem  fala! 

Cavalheiro  de  primorosa  educação  e  distincto  porte, 
gentilissimo  nas  relações  pessoaes,  era  intractavel  quando 
defendia  a  justiça,  ou  julgava  que  esta  era  offendida;  e, 
ao  mesmo  tempo,  a  lucta  não  lhe  obscurecia  a  perspicácia 
e  clareza  do  entendimento,  pois  que  para  logo  se  tornava 
dócil  e  se  rendia  á  opinião  que  combatia,  se  lograssem 
convencê-lo  que  era  esta  a  mais  legal. 

Chegado  que  fosse  a  este  estado  do  espirito  — diga-se 
em  honra  da  sua  immaculada  memoria  —  não  raro  inutili- 
sava  os  trabalhos,  que  trazia  preparados,  para  perfilhar  os 
alheios! 

Nenhuma  razão  pessoal,  nenhum  sentimento  de  vai- 
dade sobrelevavam  ao  amor  da  justiça  que  o  dominava! 

O  julgamento  em  conferencia  (a  que  tanto  teem  que- 
rido jungir-nos,  como  forma  única  de  julgar  collectiva- 
mente,  uns  pretendidos  innovadores  que  a  si  próprios 
puzeram  borla  e  capêllo  em  organisação  judiciaria)  perde- 
ria muitos  dos  seus  gravíssimos  defeitos  com  juizes  como 
J.  Champalimaud! 

As  paginas  dos  seus  autos  attestam  a  somma  de  cuida- 
dos e  de  illustração  jurídica  que  punha  nas  suas  decisões 
este  tão  enfermo  e  tão  zeloso  magistrado;  mas  era  princi- 
palmente no  viver  intimo  do  tribunal  que  mais  sobresahiam 
as  suas  qualidades  e  distinctas  virtudes,  a  sua  educação 
de  legista,  e  a  alta  e  perfeita  comprehensão,  que  possuia 
dos  seus  deveres  de  julgador. 

Havia  n'elle  aquella  «perpetua  e  constante  vontade>  do 
<ísiium  ciiique  tribuere^,  que  os  romanos  consideravam 
attributo  da  justiça,  e  que  o  é  por  excellencia  do  verda- 
deiro magistrado! 

O  grande  pendor,  em  que  perennemente  estava,  para 
diminuir  penalidades,  mostra  que  o  juiz  que,  nas  comarcas 
em  que  serviu,  passou  sempre  por  austero  e  ríspido,  era 
uma  nobre  alma! 


243 


Vasco  Leão  tinha  a  religião  da  honra  e  o  culto  do  dever. 

Amava  a  justiça  e  a  liberdade.  . .  sim . .  .  elle  amou  tam- 
bém a  liberdade! 

Nascido  em  1830,  o  seu  berço  foi  molhado  pelas  lagri- 
mas que  o  despotismo  fez  chorar  a  sua  mãe! 

Era  por  isso  natural  adversário  de  todos  os  que  que- 
rem felicitar-nos  com  instituições  do  passado. 

Tendo  concluído  —  como  Joaquim  Champalimaud,  de 
quem  foi  condiscípulo,  e  a  quem  tão  de  perto  havia  de 
acompanhar  na  morte  —  o  seu  curso  universitário  em  1855, 
foi  em  1856  nomeado  delegado  do  procurador  régio  para 
a  comarca  da  Ilha  do  Pico,  sendo  algum  tempo  depois 
transferido  para  a  da  Ilha  do  Fayal. 

Desde  logo  se  revelaram  as  aptidões  do  magistrado; 
e  o  seu  brioso  proceder  de  homem  e  de  funccionario  por 
tal  forma  alli  se  assignalou,  que,  passados  mais  de  trinta 
annos,  d'elle  existia  ainda  honrada  nomeada  n'aquellas 
terras  do  archipelago  açoriano! 

Eleito  deputado  por  Guimarães,  sua  terra  natal,  nas 
legislaturas  de  1871  a  1874  e  de  1875  a  1879,  e  par  do 
reino  pelo  districto  de  Bragança  em  1887,  preoccupa- 
ram-no  quasi  exclusivamente  no  parlamento  os  assumptos 
judiciaes  e  os  da  classe,  sendo,  pelo  seu  amor  e  assidui- 
dade no  trabalho,  escolhido,  durante  todo  aquelle  periodo, 
para  secretario  da  commissão  de  legislação  da  camará  elec- 
tiva, tomando,  em  tal  qualidade,  constante  e  activa  parte 
nos  trabalhos  de  revisão  e  discussão  do  projecto  do  Código 
do  Processo  Civil  e  redigindo  as  numerosas  actas  das  ses- 
sões da  commissão. 

Dá  testemunho  da  elevação  do  seu  espirito  e  da  bon- 
dade da  sua  alma  um  projecto  de  lei  sobre  o  ensino  dos 
surdos-mudos,  que  por  elle  foi  apresentado  ao  parlamento. 

Apaixonado  por  tudo  que  considerava  nobre  e  digno; 
tenaz  na  defeza  das  opiniões  que  julgava  de  interesse  da 


244 


justiça  ou  do  paiz,  por  vezes  descia  á  estacada  da  im- 
prensa a  combater  em  prol  d'elias. 

Era  um  paladino  do  justo.  Tinha  a  organisação  d'um 
combatente ! 

Em  Vez  da  penna  tomaria  a  espada  e  arriscaria  a  vida 
se  por  tal  forma  fosse  preciso  defender  o  direito,  a  justiça, 
a  liberdade! 

Com  os  seus  escriptos  por  vezes  honrou  esta  Regista, 
e  os  artigos  aqui  publicados  em  1887  e  1889  sobre  o  pro- 
jecto de  organisação  judiciaria,  que  estava  então  affecto 
ao  parlamento,  mostram  quanto  amor  lhe  merecia  tudo 
quanto  tendesse  a  melhorar  a  administração  da  justiça  e  a 
elevar  a  magistratura,  que  devotadamente  amava! 

Dedicado,  leal,  cavalheiroso,  era  um  nobre  compa- 
nheiro de  um  Valor  inapreciável! 

Prostrado  no  leito,  ferido  mortalmente  pela  doença 
que  tão  prestes  ia  arrebata-lo,  reanimavam-no  ainda  os 
assumptos  da  profissão  e  do  tribunal,  e  a  illusão  de  que 
breve  voltaria  aos  trabalhos  d'elle! 

Nobre  e  consoladora  illusão,  digna  da  sua  honrosa 
Vida  de  magistrado! 


Bem  mereceram  da  justiça! 

Nas  paginas  d'este  jornal,  dirigido  por  magistrados,  e 
destinado,  sem  distincção  de  classes,  a  todos  os  homens 
do  foro,  a  todos  os  homens  da  lei,  queremos  pôr  este 
memento,  em  homenagem  a  dois  dignos  soldados  d'ella ! 

E,  imitando  as  palavras  do  poeta  que  melhor  soube 
definir  a  saudade,  e  com  que  elle  terminou  o  elogio  aca- 
démico de  um  varão  illustre,  diremos:  — Seja  leve  a  terra 
da  pátria  aos  que  dignamente  a  serviram  e  honraram ! 


n   memoriam 


Na  sentida  morte  de  Sofia  de  Abreu  de  Magalhães 
Pereira  Coutinho  (1) 


Répoiídez,  a-t-on  vu  son  ombre, 
S"évanouir  dans  la  nuit  sombre. 
Ou  fuir  vers  le  jour  immortel  ? 
La  vit-on  monter  ou  descendre  ? 
Oú  déposerons-nous  sa  cendre? 
Est-ce  à  la  tombe  ?  est-ce  à  Tautel  ? 

-Ne  pleurez  pas,-prions  — les  saints  Tont  réclamée; 
Prions:  adorez-la,  vous  qui  Tavez  aimée  ! 

V.  Huoo,  Odes. 


Desappareceu! .  . .  Tinha  desanove  annos!  Era  bon- 
dosa como  uma  santa  e  bella  como  uma  flor !  Simples  e 
modesta  como  a  violeta !  Pura  como  as  flores  de  laran- 


(1)  Não  é  uma  figura  do  passado  ! 

E'  de  hontem,  é  de  hoje  e  será  de  amanhã ! 

Vive  ainda  pela  nossa  saudade ! 

Faz  aqui  a  sua  apparição  como  figura  celestial,  estendendo  as 


246 


jeira,  que  só  lhe  poderam  ornar  a  grinalda  do  noivado 
místico  e  sacrosanto  da  eterna  Gloria ! . . . 

Abandonando  a  linguagem  das  cousas  materiaes  e  ter- 
renas, porque  não  hei-de  empregar  a  linguagem  do  que, 
por  santo  e  sublime,  é  superior  á  nossa  estreita  e  pobre 
comprehensão. 

Porquê?  Procurando  alar  o  pensamento  ás  regiões 
onde  subiu  esse  ser  querido,  direi  aos  que  a  amaram : 

Sim!...  Desappareceu! ! . . .  Os  anjos  teem  sempre 
uma  breve  passagem  na  terra !  Pertencem  ao  ceu ! 

«Botão  de  rosa  murcho  á  luz  da  aurora>...  o  vento 

da  morte  a  levou ! 

Rose 
Close 
La  brise 
La  prise  ! 

Bella,  gentil  e  timida  como  uma  alvéola ! 

Tinha  a  fina  delicadeza  das  aves  ribeirinhas  e  o  ar  triste, 
que  ellas  manifestam  ao  verem-se  fora  da  sua  região ! 

O  anjo  sentia  a  nostalgia  do  ceu !  Adormeceu ! . . . 
Depois. . .  bateu  as  azas. . .  fugiu! 

Acodem  á  lembrança  aquelles  versos  do  Prémier 
Regret,  de  Lamartine,  e  que  são  talvez,  na  traducção  de 
Bulhão  Pato,  os  que  melhor  correspondem  ao  pensamento 
do  grande  poeta  francez : 

Como  de  noite  a  avesinha, 

Menos  formosa  do  que  ella, 
Esconde  ríaza  singela, 
O  colo  para  dormir : 
No  veu  da  sua  tristeza 
Escondeu-se  por  instantes, 
E  adormeceu .  ■ .  mas  antes 
Meu  Deus,  da  noite  cahir! 


suas  imaculadas  azas  de  anjo  por  sobre  o  pobre  livro  e  o  pobre 
auctor ! 

Teve  esse  escripto  publicidade  na  Nação  e  foi  reproduzido  no 
Jornal  de  Vianna,  na  Aurora  do  Lima  e  no  Commercio  do  Lima. 


247 


Nascida  junto  do  formoso  rio,  na  ridente  Villa  de  Ponte 
de  Lima,  foi  lá  que  se  finou ! 

Filha  estremecida  dos  excellentissimos  senhores  José 
de  Abreu  Pereira  Coutinho  e  D.  Maria  Augusta  de  Maga- 
lhães Barros  de  Araújo  Queiroz,  a  innocente  menina,  pelo 
fino  perfil  da  sua  belleza,  pelo  encanto  da  sua  ingenuida- 
de, pela  attracção  da  sua  timidez  e  da  sua  sympathia,  era 
o  enlevo  querido  dos  seus  pães,  de  sua  familia,  de  todos 
que  a  viam  e  amavam ! 

A  sua  vida  foi  um  sonho  lindo!  Passou  como  passa  o 
aroma  da  flor ! 

Dava-lhe  a  bondade  uma  especial  e  rara  distincção! 


A-^ 


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Uma  vista  da  villa  em  dia  de  mercado 

Ao  cimo  avista-se  a  Capella  das  Pereiras,  perto  da  qual  a  adorável  menina  nasceu 
e  onde  costumava  ir  á  missa 


Via-se-lhe  na  meiguice  do  rosto  a  belesa  da  alma  como 
se  vê  a  chamma  atravez  do  cristal ! 

Foi  a  mais  doce  das  creaturas !  Nunca  soube  oppôr  a 
sua  Vontade  á  vontade  dos  que  mais  a  amavam  !  Passou 
pelo  mundo  obedecendo  e  sorrindo! 

Querida  Sofiinha!  Adorável  creança!  Pomba  innocente! 
Anjo  querido ! 

Os  olhos,  que  te  viram  crescer,  enviam-te  uma  lagrima, 
que  vae  misturar-se  ás  lagrimas  dos  teus  desolados  pães 


248 


c  das  tuas  formosas  irmansinhas,  mais  risonhas  e  alegres 
do  que  tu . .  .  e  agora  santamente  entristecidas ! 

A  mão,  que  muitas  vezes  te  acariciou,  colhe  hoje  — 
trémula  —  ,  no  campo  triste  da  morte,  um  goivo  para  des- 
folhar na  tua  sepultura! 

A  bocca,  que  te  beijou,  diz-te  pela  bocca  do  grande 
lyrico : 

Anjo !  quem  do  ceu  vos  trouxe 

E  vos  perdeu  ? 
Desterro  que  isto  não  fosse 
Quanto  não  é  mais  doce 

Viver  no  ceu  ! 


É  esta  a  minha  despedida !  Adeus. 


nOTA   FiriAL 


Na' carta  de  Alberto  Sampaio,  a  paginas  111,  dá  elle 
auctorisação  para  ser  publicada  uma  carta  anterior. 

Não  fazer  essa  publicação  seria  menospreso  pela  honra 
que  aquella  auctorisação  envolve. 

Seria  uma  falta  de  respeitosa  delicadeza  para  a  me- 
moria virtuosa  e  querida  de  um  dos  homens  de  maior 
Valor  moral  e  intellectual  d"este  paiz,  cujo  nome  não  é, 
infelizmente,  tão  conhecido  como  devia  e  merecia  sê-lo! 

Não!  Fallecido  em  1  de  Dezembro  de  1908,  a  morte 
só  fez  augmentar  ainda  mais  o  respeito  e  admiração,  que 
me  mereceu  em  vida! 

Refere-se  a  carta  a  uns  escriptos  sobre  o  caso  acadé- 
mico da  Rolinada,  onde  appareceram  alguns  dos  nossos 
companheiros  d'essa  épocha,  que,  com  outros,  de  novo 
apparecem  n'este  livro. 

Por  todas  essas  razões  se  usa  da  auctorisação.  A  carta 
será  publicada. 

Sei  que  haverá  quem  diga  que  esta  publicação  obe- 
dece a  um  pensamento  de  Vaidade. 

Talvez!  Reconheço-o.  É  que  um  documento,  que  tra- 
duz a  amizade  e  consideração  de  um  homem,  tão  illustre 
e  tão  virtuoso,  é  para  envaidecer  aquelle  que  o  possue  e 
a  quem  foi  dirigido! 

E  acrescenta-se: 

Quem,  em  sua  vida,  deu  algumas  demonstrações  de 
não  obedecer  ás  suggestões  da  vaidade  e  de  ter  o  desdém 
por  honrarias,  tem  auctoridade  para  reclamar  esta. 

Não  prescinde  d'ella. 


250 


-C-v-»-^  ^_^,^     «,-v^  ^-/   -i^  >    t^O,"     —    'í-^t--», 

f-«t-^í^,^        Co-u     ^Z-e-^-t-^      dtrt^\        ^^yu^   4^' 


251 


t^^     Oy^    iL^  Ij^^,  ^c^^^    f^Uei^-^ 

fiy-^.^^  Y      d    Oiju^  ^  ^  -^^  c*y}A^.^  o^^   -«t^ 
(/{^^  -r^  O^      e/U^    Aj»^  í^  x^t-c-^v-  ^~    <y»U^  o^   , 

^«^o^t/ííx^c^,-» —   y-7  /:i-i/i^  OiyruyL^-7  ^  )  st- 

iX-c  €,  ^        íjC      U-»        ÊxTU' UV^     X-<^c_.    2V^  í>-7  e-d-cZo  . 


252 


4- 


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U^C^I-t^»—»  Ç/^ 


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iriDicE 

Pela  ordem  dos  escriptos 


Pags. 

Uma  explicação v 

-Á  memoria  de  Amélia  Coutinho  Filgueiras  Osório vii 

O  ultimo  Marquez  de  Ponte  de  Lima la    16 

Linha  descendente  de  Pedro  Alvaros  Cabral 17»     19 

Serviços  de  D.  Leonel  de  Lima 20  »    23 

Freguezias,    cujos   parochos   eram  apresentados  pelos 

Marqueses 24  »    25 

Decreto  de  13  de  agosto,  que  extinguio  os  privilégios  ...  26  »    28 

António  Corrêa  Caldeira 29  »    46 

Certidão  de  baptismo  e  considerações  sobre  a  falta  de 

respeito  pelas  leis  do  bom  gosto 47»    49 

João  de  Deus 51  »    71 

Francisco  Guimarães  Fonseca 73  »    74 

O  Echo  do  Lima 75  »    76 

António  de  Magalhães  Barros 75  »    76 

Anthero  de  Quental  77  »  112 

Rodrigo  Velloso 113  »  114 

Júlio  Pereira  de  Carvalho  e  Costa 115 

Refutação  de  um  artigo  do  In  Memorian 116  >^  120 

Fernando  Rocha 121  »  126 

José  Luciano  de  Castro 127  »  151 

Lamartine  e  a  Imprensa  em  1848 153  »  154 

Á  Memoria  de  D.  Anna  dos  Prazeres  Calheiros  de  Ma- 
galhães   155  »  160 

Luiz  Corrêa  Caldeira 161  »  193 

José  Marques  Caldeira 195  »  196 

Casa  onde  nasceu  o  poeta,  edade  em  que  sahiu  da  terra 

natal  e  um  alvitre  em  honra  da  sua  memoria 197  »  202 

Uma  carta  de  José  Pereira  de  Sampaio  (Bruno) 203 


254 

Pags. 

Amélia  Janny ~  205 

Artigo  em  honra  da  sua  memoria  por  D.  Amélia  CaMas 

^^^'■e»" 238  »  239 

Joaquim  Champalimaud  e  Vasco  Leão 241  »  244 

Sofia  de  Abreu  Coutinho 245  »  248 

Alberto  Sampaio  e  uma  carta  sua  (nota  final) 249  »  252 


riDiCE  ono/nnsTico 


A 

Pags. 

Acácio  de  Carvalho  Fontes 75 

Affonso  de  Albuquerque 2 

Agostinho  da  Cruz  (Frei) 169 

Agostinho  de  Moraes  Pinto  Almeida 135 

Alberto  Sampaio 80,  81  e  108 

Alberto  Telles 76  e  83 

Alexandre  da  Conceição 84 

Alexandre  Herculano 55  e  58 

Alexandre  de  Seabra 149 

Alves  Matheus 76 

Amélia  Janny 45  e  89 

André  Ponte  de  Quental  da  Camará 77 

Anna  Ephigenia  Corrêa  (D.) 29,  47,  197  e  200 

Anna  Guilhermina  Maia  (D.) 78 

Anna  de  Lima  (D.) 11 

Anselmo  de  Andrade 83 

Anthero  José  da  Maia  e  Silva 78 

António  Alves  da  Fonseca 131 

António  de  Araújo  de  Azevedo  Pereira  Pinto 157 

António  de  Azevedo  Castello  Branco 85,  84,  1 16  e  117 

António  Bernardino  Cerqueira  Lobo 91 

António  Feijó 43  e  164 

António  Francisco  Barata 35 

António  Luiz  de  Seabra 36 

António  de  Magalhães  Barros 75 

António  de  Magalhães  Barros  (filho) 167 

António  Nobre 164 

António  Pereira  Rego 1 99 

António  Rodrigues  Sampaio 55 


256 

fags. 

Aristides  Motta 108 

Arthur  Fernando  Rocha 125 

Augusto  César  Barjona  de  Freitas 130 

Augusto  Lima 164 

Augusto  Ribeiro 134 


Barbosa  Leão 1 46 

Bartholomeu  de  Quental  (Frei) 78 

Basílio  Alberto 53  e  94 

Basílio  José  Ferreira 54 

Bernardino  Pinheiro 1 48 

Bernardo  de  Albuquerque  e  Amaral 54,  56  e  -95 

Bernardo  de  Sá  Nogueira .  6 

Blacons 14 

Bocage 77 

Bulhão  Pato (?)  ,164  e  179  246 


c 


Champfleury 1 

Châtelet 14 

Chaves  e  Castro 220 

Caldeira  Coelho  (António  Corrêa) 219 

Caldeira  (José  Marques) 29  e  1 95 

Camará  Leme  (José  Alfredo) 65 

Camíllo  Castello  Branco 131 

Camões 87,  163,  179  e  224 

Cândido  de  Figueiredo 164 

Cardeal  Saraiva 45 

Carlos  Bento 36 

Carlos  Ramiro  Coutinho 131,  137  e  139 

Casal  Ribeiro 36 

Castilho  (António  Feliciano) 55,  58,  163  e  168 

Castilho  e  Mello 148 

•Castro  Freire 164 

Celestina  Paladini 224 

Conde  de  Almoster 139 

•Conde  das  Antas 131,  137  e  139 

Conde  da  Barca 1 57 

•Condessa  e  Conde  de  Bertiandos 235 


257 

Pags. 

Conde  de  Santa  Maria 62 

Conde  de  Thomar 138 

Conde  de  Villa-Flôr 5 

Couto  Monteiro 1 64 

Cruz  Coutinho ' 146 

Cunha  Ri  vara 35 

Cunha  Souto  Maior 36 

Custodio  Duarte 94 

Custodio  José  Vieira 138  e  144 


D 


Dante 87 

Delfim  M.  Oliveira  Maia 144 

Delgado  (João  Pinto) 177 

Diogo  Bernardes 168 

Domingos  Ribeiro  Vieira 124 

Duque  de  Ávila 36  e  57 

»       »    Loulé 106 

»       »   Ragusa  5 

»        >>    Saldanha • 53,  159  e  196 

»      da  Terceira 57,  41  e  106 

»      de  Welingtoii 3 


E 


Eça  de  Queiroz  83,  106  e  117 

Eduardo  de  Andrade 81 

Eduardo  David  e  Cunha 91 

Elias  Garcia 6 

Emilia  Midosi,  (D.) 255 

Eugénio  de  Castro 164 


Fausto  de  Queiroz  Quedes  (Visconde  de  Valmôr) 56 

Fernando  de  Quental 77  e  81 

Fernando,  (Rei)  (D.) 158 

Fernando  Rocha 83e  119 

Fernão  Alvares  Cabral  17 

17 


258 

Pags. 

Fernão  Annes  de  Lima 11 

Ferrão  (Francisco  António  F.  da  Silva)  9 

Fialho  Machado 92  e  94 

Filippe  de  Quental 80,  85,  e  139 

Filomeno  da  Camará 85  e  116 

Florido  Telles  de  Vasconcellos 85 

Fonseca  Pinto  (António  Joaquim) 63 

Fontes  Pereira  de  Mello 36  e  76 

Francisco  de  Castro  Matoso  Corte-Real 130 

Francisco  Joaquim  de  Castro  Pereira  Corte-Real 156 

Francisco  Machado  de  Faria  e  Maia 85 

Francisco  de  Paula  Mendes 147 

Francisco  Pereira  Sanches  de  Castro 6 

Francisco  Roberto  de  Magalhães  Barros 76 

Frei  Francisco  de  S.  Luiz 22,  198,  199  e  210 

Frederico  Philemon 60,  81 ,  87  e  105 


Gama  Machado 1 

Garrett 56,  51 ,  129,  159,  160,  165  e  189 

Gaspar  Pereira  Ferraz  Sarmento 197 

Gaspar  de  Queiroz  Botelho 142 

Germano  Vieira  Meyrelles 81 ,  82  e  108 

Gomes  Coelho  (Júlio  Diniz) 148 

Gonçalves  Crespo 164 

Gonçalves  Dias 165  e  164 

Guerra  Junqueiro 165  e  212 

Guilherme  Vasconcellos  Abreu 85  e  97 

Guimarães  Fonseca 62,  65,  73  e  85 

Guimarães  Pedrosa 255 


H 


Helena  de  Vasconcellos  e  Souza  (D.)  (Marqueza  de  Castello 

Melhor) 11 

Henrique  da  Gama  Barros 1 52 

Henrique  de  Macedo 91 

Henriques  Sêcco  (Dr.  António  Luiz) 159 

Hohenzollern 10 

Homero 68 

Humberto  (Príncipe) 118 


259 


Pags. 

Jayme  Cardoso  de  Gouveia  Corte-Real 62 

Joanna  Cabral  de  Vasconcellos  (D.) 18 

Joanna  Saraiva  (D.) 31,  48,  197  e  198 

João  de  Barros 2 

João  de  Barros  Mimoso 1 30 

João  Bento  de  iMedeiros 47 

João  Cândido  Furtado  d'Antas 133 

João  de  Deus 100,  133  e  213 

João  Fernandes  de  Lima  Vasconcellos  Brito  Nogueira 18 

João  Gomes  Cabral 17 

João  (Infante)  (D.)  55 

João  de  Lemos 163,  164  e  208 

João  de  Lima  (Vide  errata)  (D.) 11 

João  Lobo  de  Moura 83 

João  Machado  de  Faria  e  Maia 63,  93,  116  a  120 

João  de  Paiva 235 

João  Penha 164 

João  de  Sousa  Vilhena 60  e  85 

Joaquim  António  de  Aguiar 41 

Joaquim  Maria  da  Silva 137 

Joaquim  Martins  de  Carvalho 120  e  135 

Joaquim  de  Vasconcellos 78 

José  Affonso  Botelho 132 

Jerónimo  da  Motta  (abbade  de  Mujães) 199 

José  Alberto  dos  Reis  (Dr.) 47  e  197 

José  de  Azevedo  e  Meneses 78 

José  Bernardino  de  Abreu  Gouveia 85 

José  Caldas 76 

José  da  Cunha  Sampaio 60,  80,  82,  91 ,  1 18  e  250 

José  Dias  Ferreira 75 

José  Ernesto  de  Carvalho  e  Rego 53 

José  Estevão 36  e  115 

José  Falcão 83,89,91  e  100 

José  Freire  de  Serpa 164 

José  Leite  Monteiro 8  J 

José  Luciano  de  Castro 35 

José  de  Magalhães  Barros 196 

José  Maria  de  Abreu  de  Lima 199 

José  Maria  Andrade  Ferreira 38 

José  Mimoso  de  Barros  Alpoim 130 

José  Moreira  da  Fonseca 1 44 


260 

Pags. 

José  Pereira  de  Sampaio  ( Bruno) 203 

José  Ribeiro  Perry 131 

José  de  Sá  Coutinho 91  e  145 

José  Teixeira  de  Queiroz 130 

Júlio  Mardel 17 

JuIio  Pereira  de  Carvalho  e  Costa 109,  110  e  115 


Lamartine iii,  157,  153  e  245 

Latino  Coelho ". 38  e  201 

Leonel  de  Lima  (D.)  3  e  21 

Levy  Maria  Jordão 55 

Lima  Bezerra 198 

Lopes  de  Mendonça 164 

Lourenço  de  Almeida  Azevedo 68e  86 

Lourenço  Malheiro 199 

Luiz  Jardim,  Conde  de  V^alenças 74 

Luiz  de  Magalhães 77 

Luiz  Saraiva  (Frei) 210 

Luiz  (D.)  (Rei) 55 


M 


Manoel  Duarte  d'Almeida 84 

Manoel  Faria 31 

Marcelina  Saraiva  (D.) 31 ,  41 ,  198  e  210 

Marcelino  de  Mattos  (Dr.) 144 

Maria  Cabral  de  Noronha  (D.) 18 

Maria  Xavier  de  Lima  Hohenloe  (D.) 18 

Manoel  Alves  da  Silva 108 

Manoel  de  Arriaga 85  e  89 

Manoela  Rey 147 

Maria  Amália  Vaz  de  Carvalho  (D.) 238 

Maria  José  Deslandes  Caldeira  (D.) 45  e  196 

Maria  da  Silva  Baptista  Rocha  (D.) 124 

Maria  Theresa  Deslandes  Caldeira  (D.) 219 

Marianna  Povoas  (D.) 70 

Marianno  Machado  de  Faria  e  Maia 83,  91  e  92 

Marqueza  de  Alorna 33 

»         de  Pomares 235 


261 

Pags. 

Marquez  de  Chaves 4 

»         de  Fronteira , 33 

»         de  Loulé 41 

Michelet 96 

Miguel  (D.)  136 

Mendes  Leal 36  e  55 

Mousinho  da  Silveira 9 


N 


Nicolau  Callieiros 1 57 

Noailles  (Duque  e  Marquez  de) 14 


O 


Oliveira  (Dr.  Manoel  de) 20  e  26 

Oliveira  Martins 77  e  96 

Oliveira  Valle 122 

Osório  de  Vasconcellos  (Alberto) 6 


Palmella  (Duque  de) 7 

Passos  Manoel 56 

Pedro  Alvares  Cabral 2  e  17 

Pedro  5."  (D.) 55 

Pereira  Caldas 177 

Pereira  Lima  (Monsenhor) 198 

Petrarcha 87 

Pinheiro  Chagas 46,  169,  179  e  184 

Pinho  Leal 11 

Pizarro  (Joaquim  de  Sousa  Quevedo) 6 


Q 

Queiroz  Ribeiro 164 


262 


R 

Pags. 

Rachel  Xazareth  (D.) 69 

Ramalho  Ortigão 48  e  147 

Raymundo  Capella  83 

Rebello  da  Silva  (Luiz  Augusto) 55,  36  e  55 

Ricardo  Guimarães  (Visconde  de  Benalcanfôr) 165 

Rodrigues  Cordeiro 132,  163,  164  e  166 

Rodrigo  da  Fonseca  Magalhães 36,  38  e  39 

Rodrigo  Velloso 13,  57,  60  e  98 

Roque  Barcia 52 


Sá  da  Bandeira 6  e  137 

Sá  de  Miranda 1 63 

Santa  Thereza  dfe  Jesus 169 

Santos  e  Silva 136,  137  e  139 

Santos  Valente 83  e  1 05 

Sebastião  de  Almeida  e  Brito 143 

Serra  e  Moura 1 38 

Silva  Mattos 163,  223  e  237 

Silva  Tullio 55 

Simão  de  Novaes  (Frei) 78 

Simões  (actor) 94 

Soares  Luna 195 

Soares  de  Passos 133,  141,  163  e  179 

Souza  Martins 97 


Tavares  Crespo 223 

Tavares  Ferreira  (José  Maria) 138 

Telles  de  Vasconcellos 132 

Teixeira  de  Vasconcellos 147 

Theophilo  Braga 61,  65,  67,  83,  163  e  212 

Thomaz  José  Xavier  de  Lima  de  Vasconcellos  de  Brito  No- 
gueira Telles  da  Silva  (D.) 2  e  19 

Thomaz  de  Lima  Vasconcellos  Brito  Nogueira  (D.) 18 


265 

Pags. 

Thomaz  Ribeiro 76  e  165 

Thomaz  Xavier  de  Lima  Nogueira  Telles  da  Silva 19 

Tolentino 32 

Torres  e  Almeida 131  e  140 


V 


Venâncio  Jacintho  Deslandes  Caldeira 45 

Vicente  Ferrer 36 

Victorino  da  Conceição  Rebello  (D.) 62 

Victor  Hugo 100,  105,  115,  186,  191,  224  e  245 

Victoria  Linda 222 

Vieira  (Padre  António)  78 

Vieira  de  Castro 53,54,56,98,  116  e  118 

Virieu 14 

Visconde  de  Faria  e  Maia 78 


ERRATAS 


A  paginas  11,  linha  8,  onde  sele:  -D.  José  Xavier  de  Lima  ,  deve  lêr-se:  <^D.João 
Xavier  de  Lima  . 

A  pagina  43,  linha 9,  onde  se  lê:    nada  melhoraram»,  deve  lêr-se:  ^màA  melhoram^ . 

A  paginas  47,  linha  13  e  a  paginas  48,  linha  l.a,  onde  sele:  «Ruado  Carrerido»,  deve 
lêr-se:  «Rua  do  Carracido ^ . 

A  paginas  105,  nota,  onde  se  lê:  «Function  du  Poete,  deve  lêr-se:  ■'Fonction  du 
Poetei. 

A  paginas  168,  linha  13  (legenda  da  gravura),  onde  se  lê:  Campo  do  Arnêdo»,deve 
lêr-se:  «Campo  do  Arnado*. 


■■''m^^m 


CT     Pinto  Osório,  Augusto  Carlos 
1372    Cardoso 

P$5       Figuras  do  passado  por  Pedro 
Eurico 


\ 


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