M. Corrêa oos Santos
P40ELAH1A, TYPOORAPHIA
E ENCAOERNAÇAO
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TELEPHONS 3350
10. RUA DA PRATA, 16
LISBOA
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Figuras do Passado
Figuras
DO
Passado
POR
PEDRO EURICO
J
Composto e impresso na Typo-
graphia Editora JOSÉ BASTOS
— Rua da Alegria, 100 — Lisboa
1915
CT
Unn EXPLICAÇÃO
Um pseudonymo é um disfarce. E' a mascara, muitas
Vezes tão transparente e diaphana, que não occulta o
rosto do que a usa.
Mas, inda assim, mascara conveniente! Mascara res-
peitosa e necessária!
E' o nosso caso.
O que isto escreve presou, acima de tudo, a sua pro-
fissão e o seu nome de magistrado.
Zelou este como devia a si e á sua classe.
Quando, por distracção e desenfado do seu espirito,
como remédio morai para intimas dores, se entreteve
com bugigangas litterarias, não quiz assigná-las com o
mesmo nome com que assignava as graves decisões de
um tribunal respeitável.
Assignou-as com o pseudonymo de Pedro Eurico.
O pseudonymo de novo apparece agora.
Porquê?
Porque se chega a alturas da vida e a situações n'ella,.
em que não são permittidas cavaliarias e extravagâncias,
nem mesmo litterarias!
O coração nunca envelhece: poderia allegar. Mas
quantos, por formas bem diversas, repelliriam a m.axima?
O auctor nunca ambicionou, nem podia ambicionar, o
titulo de homem de letras. Simples curioso d'ellas o foi
pelas necessidades do espirito.
As suas faculdades exerceram-se em um campo, cujo
cultivo esterilizava todo o pendor litterario.
VI
Amando o Bcllo, teVe — por obrigação legal e por
Índole — de cultivar o Bem!
Lenibrou-se sempre d'aquelle conselho, que Jiiles Le-
maitre tão bellamente exprimiu dizendo:
«Uma boa acção moral é a única obra de arte que pode
"fazer quem não é artista*.
Mas, ás vezes, da pedra bruta salta uma faisca de luz!
Voltando agora de novo aos devaneios litterarios, de
novo retoma o pseudonymo, porque, além do que fica
dito, elle tem ainda outra utilidade.
E' como que o bordão de quem, sentindo-se pouco
seguro de si, receando a queda, a elle se ampara para
que essa queda seja menos desastrosa e menos promova
o riso do publico.
Quer dizer : se a critica tiver de ser severa e de mal-
tratar o livro e o auctor, que tenha a caridade de o fazer
contra o nome litterario e não contra o verdadeiro e
authentico.
Presa este e desdenha aquelle.
Á MEMORIA
DE
Amélia Coutinho Filgueiras Osório
Não pode .profanar-se com a publicidade o que é-
sagrado e intimo !
Mas n'este livro, em que revivem tantas memorias
queridas, pertence — não pode deixar de pertencer — a
primeira pagina d'elle á que me é mais querida de todas l
A que mais tem vivido em mim!
Á da pessoa, que mais influiu nos destinos da minha
vida!
Á d'aquella, a quem estive ligado pelos laços da Igreja;
e, já antes, pelo parentesco do sangue e — muito mais do
que por este —pelo parentesco das almas!
Á da formosa e valente rapariga, que tudo — tudo! —
sacrificou por mim... morrendo em Africa... aos vinte
e cinco annos. . . com dois de casada. . . depois de haver
sido mãe!
E, n'esses breves dias, elia não foi só o ser idola-
trado, a companheira de coração de seu marido! Foi
também, pela cultura do seu espirito, um companheiro-
nas letras e um auxiliar dos seus trabalhos officiaes!
Nobre e santa amiga!
Pertence-te este humilde livro, porque n'elle se presta
VIII
homenagem a affectos e sentimentos, que também foram
teus!
Ensineí-te a amar João de Deus e os seus versos, os
quaes, quando eu os publicava, tu os coligias, ainda antes
da nossa união, na casa que foi dos nossos Avós, onde
nasceu miniia Mãe e onde nasceste tu!
Os que agora ahi apparecem saiiiram da mesma pasta
de veliudo — a minha pasta de estudante— onde foram
coliocados pelas tuas mãos delicadas: as mãos que sabiam
tirar do piano maravilhosas melodias!
No reverso do teu retrato a óleo, estão — transcriptas
de um d^aquelles livros que liamos em commum — estas
palavras de Lamartine, que contêm outro retrato, porque
são o teu retrato moral:
«Cette jeune personne avait reçu de la nature un
esprit délicat.
«Elle descendait, sans fausse honte, aux plus humbles
fonctions du ménage; et elle se livrait aux lectures les
plus solides et les plus elegantes de la Vie lettrée.»"
Sobre a pedra do teu jazigo puderam, com justiça,
ser gravadas — copiando-as de um livro de tristes memo-
rias — estas palavras : Quando a mulher alia ás virtudes
da alma os dotes da intelligencia, é o ideal do bel lo e
também o ideal do bem. '
Já lá vão tantos annos! Tem-me sido longa, áspera,
por vezes tempestuosa, a jornada caminhando para ti!
Mas já me não demoro... approxima-se o momento
do encontro das nossas almas !
* Bulhão Pato, Sob os Cyprestes, pag. 128.
o Ultimo Marquez de Ponte de Lima
(Esboço biográphico e histórico)
O ultimo Marquez de Ponte de Lima foi uma figura
originalíssima, que deveria apparecer-nos naquelia galeria
de typos de raridade humana, que Champfleury celebri-
sou no seu interessante livro — Les Excentriques.
Esboçada a sua phisionomia moral pela penna elegante
do escriptor francez — que foi um dos iniciadores do rea-
lismo—ficaria o seu retrato como de um dos mais sym-
pathicos e de mais formosa alma !
Ao lado do illustre portuguez Gama Machado, ficaria
bem este outro portuguez, por tantos titulos mais illus-
tre ainda!
No Marquez verificava-se aquella regra formulada, para
os excêntricos, por um celebre observador: Uhomme ex-
térieur est moulé sur Vhomme intérieur!
É que á originalidade de proceder e de pensar corres-
pondia a originalidade do trajar e vestir!
Sempre de sobrecasaca comprida de briche, ou de ca-
saca preta; e, raras vezes, no inverno, um capote, á antiga,
do mesmo panno nacional da sobrecasaca! Um inalterável
chapéu de feltro de copa baixa e abas largas. Bengalão de
1
canna da índia! Era assim que o Marquez percorria as
ruas e ia tomar assento na Camará dos Pares, de que foi
secretario, e a cujas sessões, durante certo período, com-
parecia com assiduidade.
Nascido em berço de oiro, no meio da opulência; se-
nhor de uma grande fortuna herdada e de um herdado
poderio, fidalgo por nascimento, e da mais antiga e authen-
tica linhagem histórica, ninguém foi mais despido do
amor das grandezas e mais alheio ás vaidades humanas !
Democrata pelo coração e instincto, foi um fiel obser-
vante dos mais rigorosos e radicaes preceitos da fraterni-
dade e egualdade humanas!
Cidadão integro, coração bondosíssimo, alma cândida,
foi o amigo dos pequenos, dos pobres, dos humildes, com
os quaes de preferencia vivia e se irmanava!
II
D. José Xavier de Lima Vasconcellos de Brito No-
gueira Telles da Silva, que este foi o seu nome, nasceu
na Praça de Almeida em 12 de novembro de 1807.
Pertencia á mais antiga nobreza do reino. Na lingua-
gem heráldica era azulissimo o seu sangue. Girava-lhe nas
veias o de .Affonso de .Albuquerque, o do chronista João de
Barros, e era descendente e directo representante de Pe-
dro Alvares Cabral, o descobridor do Brazil (1). Seu pae,
D. Thomaz José Xavier de Lima, fallecido aos 45 annos,
militou com o posto de coronel na legião extrangeira, que,
(1) Veja-se no fim a nota \.
em 1808, foi para França, distinguindo-se em alguns com-
bates. Sendo ajudante do Duque de Ragusa, quando as
tropas francezas vinham invadir Portugal, patrioticamente
desertou e foi apresentar-se ao Duque de Wellington para
combater pela pátria.
Tinha o 3.° Marquez de Ponte de Lima a mais illustre
ascendência por armas e letras.
O titulo de Visconde foi o primeiro, que houve em
Portugal, concedido ao seu ascendente D. Leonel de Lima,
a quem, no século xv, o Rei Affonso V fez Visconde
de. Villa-NoVa da Cerveira e Alcaide-Mór de Ponte de
Lima (1).
O titulo de Marquez d'esta villa foi concedido a seu
Vis-avô, quando primeiro ministro da Rainha D. Maria I.
Succedeu n'elle a seu pae em 1822.
Era o 17.'' Visconde de Villa NoVa da Cerveira; o
5.*' Marquez de Ponte do Lima; o 21.° senhor do mor-
gadio de Soalhaes, no Minho; o 20.*' do de S. Lourenço,
em Lisboa; e senhor também dos morgadios da Casa de
Mafra. Disfructava os bens da commenda de Santa Maria
de Borba e de Santa Maria de Satam (Vide B. de S. Cle-
mente, tomo 4.° pags. 448 e 450).
Outhorgada a Carta Constitucional em 29 de abril de
1826, logo, no dia seguinte, escolhidos os membros da
nobreza que haviam de constituir a Camará dos Pares,
foi, apesar da sua menoridade, nomeado par do Reino.
Apresentada a carta regia da sua nomeação na respectiva
Camará, em 7 de dezembro, não tomou posse, n'essa
legislatura, por falta de edade (2).
(1) Veja-se a nota B.
(2) Diz assim a Carta Regia :
Honrado Marquez de Ponte de Lima, amigo. Eu EI-Rei vos envio
muito saudar, como aquelle que muito amo.
Attendendo aos vossos merecimentos e qualidades, hei por bem
nomear-vos par do reino. O que me pareceu communicar-vos para
vosso conhecimento.
Escripta no Palácio do Rio de Janeiro, a 30 de abril de 1826.
Rei com. guarda.
Assim reunia á nobreza herdada a nobreza própria e
legal de novo regimen constitucional.
4-
Pois este Grande do Reino, este fidalgo de raça. este
nobre de uma fidalguia, que era até principesca, e mais
que quatro vezes secular, praticou mais a democracia e
foi mais apaixonado observante dos preceitos da egualdade
de que uns certos plebeus do nosso tempo, que, pelos
acasos da fortuna ou da politica, adquiriram posições, que
os fazem arrotar, por toda a parte e por todas as for-
mas, a sua importância, olhando-nos, impertinentes e
impertigados. d'alto, por cima do hombro, e como que
intimando toda a gente a reconhecer-lhes a sua pretenciosa
superioridade!
II
Espalhadas em Portugal, no primeiro quartel do sé-
culo XIX, as ideas liberaes, commungou n'ellas.
Dotado de viva intelligencia, seguia, aos dezenove
annos, os estudos litterarios, próprios da sua cathegoria
social, quando, depois de jurada a Carta Constitucional,
na regência da infanta D. Izabel Maria, se levantou a
insurreição absolutista do Marquez de Chaves e outros
caudilhos anti-liberaes.
Immediatamente o joven Marquez, interrompendo os
seus estudos, foi tomar logar entre os defensores da nova
ordem de cousas, alistando-se, como cadete, no regimento
de cavallaria n.° 4.
Pelo seu nascimento e senhor de uma grande e opu-
lenta casa, á qual andavam inherentes extraordinários pri-
vilégios; estando, além d'isso. já nomeado par do reino,
podra, desde logo, ser-lhe dado o posto de official. Mas
não! Foi como cadete, isto é, como simples soldado com
algumas distincções, que se alistou.
N'essa obscura e humilde qualidade fez toda a campa-
nha de 1826 a 1827, nas provincias do Minho e Traz-os-
Montes, sujeitando-se a todos os perigos e duros trabalhos
da guerra, como qualquer outra praça de pret sem diffe-
rença alguma.
Tomou parte nos combates da Ponte do Prado e da
Ponte da Barca, e seguiu a sorte dos seus companheiros
de armas, que, sob o commando do Conde de Villa-Flôr,
perseguiram os absolutistas até Melgaço, obrigando-os a
transpor a fronteira do território portuguez.
Quando o seu regimento entrou em Villa Nova da Cer-
veira, a Camará, sabendo que estava dentro dos muros
da villa o titular d'ella, o representante dos seus nobres
solarengos, resolveu ir, em corporação, cumprimentá-lo.
Um dos Vereadores preparou-se para lhe lêr uma alocução
de boas-vindas.
Procurando-o no quartel, onde estava instalado o seu
regimento, indicaram-lho. Os vereadores ficaram atónitos!
CustaVa-lhes a acreditar que fosse quem lhes indicavam o
personagem, que procuravam !
E' que foram encontrar o Marquez, em mangas de
camisa, a limpar o seu cavallo ! Foi assim, de ferro em
uma das mãos, e de brossa na outra, que recebeu os
representantes do município! Agradeceu os cumprimen-
6
tos, que lhe dirigiam; fez-lhes uma cortezia e continuou
na limpeza do animal.
Para elle as obrigações de soldado eram todas egual-
mente dignas! (1)
Rechaçados os absolutistas, obrigados a passar a fron-
teira e a internarem-se em Hespanha, despiu a farda de
soldado e voltou para a sua casa de Lisboa.
Mas, logo no anno seguinte, em 1828, proclamado o
absolutismo de D. Miguel, correu de novo ás armas,
ainda como soldado cadete do mesmo regimento de cava-
laria 4.
N^esta qualidade fez parte das tropas liberaes, que,
depois dos combates do Vouga, da Ega e da Cruz de
Morouços, tiveram de retirar sobre o Porto e em seguida
emigraram atravez da Galliza, sob o comando do briga-
deiro Joaquim de Sousa Quevedo Pizarro e do heróico
Bernardo de Sá Nogueira, já então notável por feitos
illustres e que tão gloriosamente figura depois na historia
com os nomes de Visconde e Marquez de Sá da Ban-
deira.
Assim soffreu todos os duros transes, privações e
maus tractos desse triste êxodo, que são descriptos por
todos os historiadores. Embarcou depois para Inglaterra
com os seus 2.Ò80 companheiros de armas, que a tantos
ficaram reduzidos os 5.000, que, antes de passar a fron-
teira, se reuniram na Portela do Homem.
(1) Foi narrado este facto e outros respectivos á vida do Marquez
de Ponte de Lima, por ocasião da sua morte, no jornal A Democra-
cia, de que era redactor, com Elias Garcia, o meu muito talentoso amigo
Alberto Osório de Vasconcellos, de illustradissima e preclara memoria.
Creio não me enganar julgando ser narrador ou informador daquelles
interessantes factos um distincto e muito instruído official de enge-
nharia, camarada e amigo de Osório de Vasconcellos, e que com elle
vivia muito em contacto.
Por vezes escrevia no jornal curiosas narrativas do passado sob
o pseudonymo de Velho Democrata. Era o coronel, depois general e
ministro da guerra, Francisco Pereira Sanches de Castro, natural de
Villa Nova da Cerveira, e que ali tinha casa e família.
Por despacho do governo miguelista de 20 de agosto
de 1828 lhe foram mandados sequestrar todos os bens
com o fundamento de haver sahido do reino sem li-
cença (1).
Quem era senhor de tão opulenta fortuna achou-
se assim reduzido á pobresa de qualquer outro emi-
grado!
Em 1851 partiu de Inglaterra para a Ilha Terceira,
nini^MRií
Restos do Paço do Marquês, em Ponte de Lima
onde se congregavam os defensores da liberdade que
para ella pretendiam conquistar a pátria.
Tomou parte nos combates dos Açores e foi um dos
7500. que desembarcaram no Mindelo e entraram no
Porto.
(1) Carta do Marquez de Palmela, datada de Londres, em 5 de
setembro e dirigida a D. Pedro 4.°. Vid. Barão de S. Clemente, Vol. 5.°
pag. 247.
Durante o cerco, fez serviço em artilharia com o posta
de alferes, destinguindo-se pela certesa dos seus tiros.
O regente D. Pedro, attendendo á alta hierarchia social
do Marquez de Ponte de Lima e á sua valentia de soldado,
quiz promovê-lo a mais elevado posto. Quiz fazê-lo seu
ajudante de campo. Pediu escusa e nào acceitou (1). Quiz
também fazê-lo seu camarista. Não acceitou ainda !
Somente lhe acceitou o presente de um fardamento nôvo
e a condecoração da Torre e Espada (2).
Esta e a commenda de Christo, que lhe pertencia por
successão de seus maiores, foram as únicas condecora-
ções, que teve e de que fêz uso.
Facto digno de registo é que, quer na campanha de
1826 a 1827, quer na de 1828, quer na emigração (onde
tantas paixões e luctas se levantaram!), quer depois no
Porto, o titular, o marquez, o grande senhor, com privilé-
gios quasi realengos, desapparece ! Ninguém o Vê ! Nunca
se salienta ! Só se conta com elle como um soldado obs-
curo, firme, disciplinado, prompto e fiel cumpridor das
ordens dos seus chefes !
IV
Terminada a guerra civil, restaurada a Carta, não alar-
deou serviços, nem pediu recompensas. Sem se ligar a
partidos, limitou sua acção politica ao exercicio das func-
(1) Democracia cit.
(2) Idem.
ções legislativas, como membro da Camará dos Pares,
da qual, como fica dicto, foi secretario. O seu voto, livre
sempre de compromissos partidários, era dado com a
mais rara isenção e independência !
Por Vezes ficava isolado e único ! Só obedecia á sua
convicção.
Era dos que nada lucravam e pessoalmente tudo per-
diam com o novo regimen ! Acceitou-o porém com todas
as suas consequências, por mais contrarias que ellas lhe
fossem !
Donatário da Coroa, dahi lhe provinha uma grande parte
das suas rendas. Tinha o privilegio de nomear tabelliães
de notas em alguns concelhos.
Era também padroeiro exercendo o direito de apresen-
tação de parochos em numerosas freguezias (1).
Estas grandes regalias regeitou ! A todos os enormissi-
mos privilégios da sua casa, voluntária e abnegadamente
renunciou !
Ha esse respeito um facto, que o caracterisa.
O decreto de 15 de agosto de 1832, chamado dos
foraes e doações regias, foi uma das benéficas providen-
cias de Mousinho da Silveira, que mais clamores levantou.
Foram-lhe feitas acerbas criticas e soffreu, durante
muitos annos, uma grande impugnação dentro e fora do
parlamento (2).
iMuito especialmente a soffreu nas discussões, que pre-
cederam a approvação da carta de lei de 22 de junho de
1846 para o explicar e esclarecer.
Era a camará dos pares, onde principalmente se encon-
(1) Veja-se a nota C.
(2) Veja-se o livro —Repertório Comentado sobre Foraes e Doa-
ções Regias por Francisco António Fernandes da Silva Ferrão, 1848.
10
travam os privilegiados feridos, o ponto em que estavam
concentrados os elementos que pretendiam destrui-lo !
Uma Vez porém, que o espirito do decreto foi posto
em discussão, ou^^iu-se uma voz mais vibrante e mais alta
dizer — Approvo /. . .
Era a Voz do Marquez de Ponte de Lima !
Pois a medida legislativa, que o Marquez assim applau-
dia, extinguia onerosos privilégios, aliviava a terra, favo-
recia o povo, mas deixava-o sem uma grande parte dos
rendimentos, que elle e os seus ascendentes haviam uso-
fruído!(l).
Um raro altruista! Um espartano! Um estóico, que
merece a admiração da posteridade !
V
A sua antiga nobresa chamaVa-o à corte. Mas o ultimo
Marquez de Ponte de Lima não tinha feitio para cortesão,
nem pulmões para respirar entre aulicos.
Viveu sempre afastado dos paços reaes, e não por
despeitos, ou ambições insatisfeitas, pois excepcionalisi-
mamente, se julgava dever comparecer, lá comparecia.
Quando, ha poucos annos, falleceu a ultima filha da
Rainha D. Maria 2.''^, a que foi a formosa infanta D. An-
tónia, relembrou a imprensa a pomposa solemnidade do seu
casamento com o príncipe Leopoldo de Hohenzollern ; e
n'essa descripção figura o Marquez de Ponte de Lima,
(1) Veja-se a nota D.
11
como um dos dignatarios da corte, a quem, na solemnidade
religiosa, coube uma das principaes funcções.
Afastava-se da corte, como das reuniões da aristocracia
pela força dos seus instinctos e dos seus iiabitos.
Comprazia-se em viver antes de preferencia com os
modestos e os humildes.
Celibatário, Viveu sempre na terna e doce companhia
de seus dous irmãos, D. José Xavier de Lima e D. Anna
de Lima, simples e bondosos como elle.
Residiam todos três n'esse grande palácio de S. Lou-
renço (não longe do qual estou escrevendo), que passou
depois para sua sobrinha, a Marqueza de Castello Melhor,
D. Helena de Vasconcellos e Sousa.
A capella do palácio é tão vasta que serve hoje de
egreja parochial á freguesia.
Faz o palácio frente para o Largo da Rosa e occupa a
maior parte da rua, que actualmemte se chama de Mar-
quez de Ponte de Lima.
A ruína dessa grande e fidalga habitação era tal que o
Marquez, diz-se, por vezes, tinha de abrir um guarda-chuva'
para passear nos seus salões!
Na mesma ruína cahiu uma parte desse nobre edifício,
de grande e sumptuosa fabrica, que, em Ponte de Lima,
se chamava o Paço do Marquez, e de que hoje só exis-
tem uns deturpados restos, que serão a quinta parte do
que ainda conhecemos.
O Paço de Giela, nos subúrbios da vila dos Arcos de
Vai de Vez, é que ainda formosamente se ostenta, mos-
trando o que foi (1).
Mas, n'esse arruinado palácio de S. Lourenço, abri-
(1) O Paço de Giela, com metade do termo dos Arcos e outras
terras, foi doado pelo Rei D. João 1.° a Fernão Annes de Lima por
se haver passado da Qalliza quando elle conquistou Tuy. Esse
fidalgo veiu a ser o tronco da familia dos Viscondes de Villa Nova
da Cerveira, que depois muito augmentou o edificio e a matta.
(Chorografia Portuguesa pelo Padre António de Carvalho da Cos-
ta, tomo 1.°. pag. 223; Pinho Leal, Porto Ant. e Moder.
12
gava quantos pobres lhe pediam albergue e que elle podia
albergar.
Pouco tempo antes da sua morte, seguindo os costu-
mes antigos, ceava, uma noite, com seus irmãos, quando
sentiram um extraordinário barulho no tecto, e delle viram
cahir. . . uma grande cobra (1).
Paço de Giela, em Arcos de Vai de Vez. — Primitiio solar da família
Determinaram-se então a ir fazer uma exploração e
pesquisa aos altos do palácio.
Foram e ali encontraram um individuo deitado em cama
bem preparada a lêr um jornal !
Interrogado, respondeu-Ihes que era um operário hon-
rado, que, em uma noite, não tendo onde pernoitar, viera
para ali, e, não havendo sido por ninguém incommodado,
comprara aquella cama e mobilia e ali se instalara : que
já ali estava . . . havia três meses ! »
O Marquez riu-se e pediu-lhe desculpa de o haver in-
commodado (2).
(1) Democracia, cit.
(2) Idem.
15
Não tinha um inimigo, nem mesmo um adversário!
Apesar do seu feitio original, era, pela sua bondade, em
toda a parte onde apparecia saudado e respeitosamente
tractado.
Um anno resolveu perdoar metade das rendas a todos
os inquilinos pobres.
No dia do pagamento, disse a todos: «ganhamos a
meias; «vocês ficam com uma metade e eu com outra. >
Por vezes — diz-se — se sujeitou a grandes privações e as
fêz soffrer á sua virtuosa familia, porque dava aos pobres
o que era indispensável para si e para os seus!
Facto característico da sua despretenciosa e despren-
dida originalidade é o seguinte :
Estava em um estabelecimento de trens de aluguer,
quando ali foram procurar uma carruagem, para ir bus-
car um medico reclamado para um doente em perigo de
vida.
Procurou-se o cocheiro, mas estava ausente. Por mais
que se buscasse, nào appareceu. Havia trens mas faltava
cocheiro.
Então o Marquez promptificou-se a substitui-lo ! Prepa-
rado o trem, saltou para a boleia, foi buscar o medico,
levou-o ao doente e voltou a conduzir o trem para o esta-
belecimento (1).
(1) Idem.
14
VI
Como explicar o extraordinário modo de sentir e Viver,
os hábitos adoptados por fidalgo tão opulento e tão illus-
tre?
E' porque era baixo ou grosseiro de espirito e senti-
mentos ?
Não ! Era intelligente ! Tinha uma distincta apresenta-
ção! Era uma alma nobre e delicada!
E' que elle era o producto de uma lei sociológica, de
uma lei talvez providencial !
Era a sociedade antiga, que desapparecia, e a moderna
que surgia na mesma pessoa!
Era um dos mais altos representantes dos privilégios
e das desegualdades sociaes, que se tornava o represen-
tante da egualdade civil, da egualdade politica e da egual-
dade christã !
O principio da fraternidade humana encarnou n'elle I
Tomou todo o seu sêr !
Havia no coração desse opulentissimo fidalgo a paixão
da egualdade ; o desdém e o aborrecimento enjoativo pelas
grandesas e vaidades humanas !
Repetiam-se n'elle, mas com maior serenidade, os sen-
timentos daquelles membros da aristocracia franceza — os
Noailles, os Châtelet, os Virieu, os Blacons — que na
noite celebre de 4 de agosto (chamada na historia a Saint-
Barthelemy dos abusos) renunciaram aos lucrativos privi-
légios e excepcionaes prerogativas seculares, que lhes
pertenciam !
Nenhum porém o fez como o iMarquez de Ponte de
15
Lima, sem alarde politico, sem segundas vistas, sem o
amor ou especulação da popularidade.
Se nunca foi, nem quiz ser cortezão dos reis, também
não quiz nunca ser cortezão do povo, este novo soberano,
ao qual não faltam nem cortezãos nem especuladores a
lisonjea-lo.
Elle, que se humilhava com os humildes, que tratava
de egual para egual os pequenos, sabia elevar-se a toda a
altura da sua hierarchia social e da dignidade da sua posi-
ção com os pretenciosamente Vaidosos!
Anda narrado um caso, que bem pinta essa sua feição
moral.
Deparou-se-lhe um doestes fidalgotes de província, que
espremidamente se dizem primos de todos os authenticos
fidalgos e parentes de algum grande sancto da christan-
dade ! Typos, cuja prosápia heráldica está na razão inversa
da pobreza de miolos e até, muitas vezes, compensando-a
por essa forma, com a de bens de fortuna.
Dirigindo-se ao Marquez, que o recebeu com a sua
natural bonhomia, deu-lhe o tratamento á^ primo, que elle
acceitou. Mas, no proseguimento da conversa, empregou
o Marquez o tratamento de senhoria, a qual, posto que já
andasse pelo preço dos tremóços, como diz um soneto do
satyrico Paulino Cabral, era comtudo o tratamento geral,
porque a excellencia só então ainda era dada aos que
legal e rigorosamente tinham direito a ella !
O provinciano, que, como primo, se julgava de fidal-
guia não menor, deu também senhoria ao Marquez, o
qual mudou immediatamente dando e.icellencia ao seu
interlocutor.
Este, lambendo-se com a elevação, emendou a lingua
e passou a dar também excellencia ao Marquez. Mas logo
Voltou este á senhoria! E sempre assim, no decorrer
d^essa, ou de outra conversação !
16
Até que o desmiolado e vaidoso, interrompendo, disse
que nào sabia como queria que o tractasse, pois que tinha
notado a variação do tractamento.
«Como quizer, como quizer — replicou — é indifferente;
mas o mesmo tratamento é que nós não podemos ter!»
Assim espirituosamente amarrotou o vaidoso, que era
da laia de outros, que snobicamente por ahi se exhibem e
abundam, com sapinhos nojentos em tarde chuvosa de
maio !
VII
Estava-se no fim do anno de 1877.
Apesar da robusta saúde, que sempre tinha gozado, a
morte approximava-se.
A missão do 3.° Marquez de Ponte de Lima estava
cumprida. Tinha findado o seu bem extraordinário papel
no mundo. Os seus dois irmãos e companheiros queridos
iam soffrer um golpe, que os lançaria na mais profunda
consternação.
Os pobres, perdendo um grande amigo, iam também
derramar sinceras lagrimas!
Na fria manhã do dia 21 de dezembro, na simplicidade
e despretenção dos seus hábitos, entreteve-se, ainda muito
cedo, olhando de uma das janellas do seu palácio para
um pateo interior a ver chamuscar um porco.
Depois, recolhendo-se, sentou-se junto de uma meza,
e conversou com seu irmão. Reclinou a cabeça e serena-
mente, para sempre, adormeceu no Senhor!
A sua alma pura acolheu-se ao seio de Deus'.
NOTA A
(Pag. 2)
Na Memoria Apresentada á Academia Real das Sciencias pelo
Visconde de Sanches de Baêna sobre o Descobridor do Brazil, Pedro
Alvares Cabral e no artigo do sr. Júlio Mardel, no «numero extraor-
dinário» da revista Brazil-Portugal , destinado á commemoração do 4.°
centenário do Descobrimento do Brazil, encontra-se a seguinte linha
genealógica descendente do grande navegador :
VI — Pedro Alvares Cabral, ou de Gouveia, Descobridor do Bra-
zil, casou com D. Izabel de Castro, 5.^ neta de El-Rei D. Fernando
de Portugal e de El-Rei D. Henrique de Castella, filha de D. Fer-
nando de Noronha e de sua mulher D. Constança, de Castro, que
era irmã do grande Affonso d'Albuquerque e que foi camareira-mór
da infanta D. Maria.
Jazem em Santarém na Igreja da Graça.
VII — Fernão Alvares Cabral, teve varias mercês, foi moço
fidalgo, etc. . . Foi grande valido de D. João III. Morreu n'um nau-
frágio no Cabo da Boa Esperança; casou com D. Margarida de
Castro, filha do commendador d'Arruda, alcaide-mór da mesma villa,
e de sua mulher D. Brites de Castro, filha de Ayres da Silva,
5.° Senhor de Vagos.
Tiveram entre outros filhos :
VIII — João Gomes Cabral, que foi Capitão das Guardas dos
Reis D. João III e D. Sebastião. Morreu em Alcacer-Quibir. Foi
cazado com D. Brites de Barros, neta do chronista João de Barros.
Houveram entre outros herdeiros :
IX — Fernão Alvares Cabral, que casou com D. Joanna Carva-
lhosa da Maya, filha herdeira de Ruy Gomes Carvalhosa, thesoureiro-
raór do reino, senhor do morgadio de Palhavã, e de sua mulher
D. Maria de Maya de Lemos. D'este casamento nasceram duas filhas
e herdou a casa de seus pães a primogénita.
2
18
X — D. Maria Cabral de Noronha, senhora da grande casa de
seus pães e avós. Casou pelo anno de 1622, com o senhor da casa
de Mafra, da Enxara dos Cavalleiros e dos Concelhos de Aregos e
Soalhães, alcaide-mór de Castello-Bom, governador e capitào-general
de Mazagào, D. João Luiz de Vasconcellos e Meneses, que morreu
em 15 de maio de 1648.
Foi sua herdeira :
XI — D. Joanna Cabral de Vasconcellos e Menezes, que além-
dos senhorios da casa de seus pães, teve o senhorio da ilha do Fogo.
Esta senhora foi primeiro casada com o infeliz Conde de Arma-
mar, decapitado com o Duque de Caminha e Marquez de Villa-Real,
na Praça do Rocio, em Lisboa, e a segunda vez com o 9." Visconde
de Villa-Nova da Cerveira, D. Diogo de Lima Brito Nogueira, nas-
cido em 1615.
Foi do Conselho de Estado e do da Guerra, governador das
Armas de Entre Douro e Minho, estribeiro-mór de El-Rei D. Af-
fonso VI, senhor de varias alcaidarias-móres, commendador de Chris-
to. Morreu no seu Palácio da Rosa em 24 de Abril de 1665 e sua
mulher havia morrido no seu solar de Ponte de Lima em o anno
de 1653.
Um filho d'este matrimonio, o primogénito, morreu afogado no
Tejo, quando em companhia de El-Rei D. Affonso VI, navegavam
em frente de S. José de Ribamar. Parece que este teve, em vida de
seu pae, o titulo de Visconde, porque seu irmão João, que lhe suc-
cedeu, era o 11.° Visconde e seu pae fora o 9." na ordem numérica
dos Viscondes.
XII — D. João Fernandes de Lima Vasconcellos Brito Nogueira,,
11.° Visconde de Villa Nova da Cerveira, nasceu em Ponte de Lima,
a 12 de outubro de 1655. Casou com a Condessa de Athouguia,
D. Victoria de Bourbon, viuva do Conde D. Manuel Lima de Athaide.
Do casamento com o Visconde houve, entre outros herdeiros :
XIII — D. Thomaz de Lima Vasconcellos de Brito Nogueira, 12.°
Visconde de Villa Nova da Cerveira, que morreu em 26 de abril de
1674. Casou com a princêza Maria de Hohenloe, filha de Luis Gus-
tavo, Conde de Hohenloe e Príncipe do Sacro Romano Império, etc,
etc. (Vid. Os Grandes de Portugal, por D. António Caetano de
Sousa). Tiveram: D. João de Lima, que morreu menino, e a filha
que lhes succedeu.
XIV — D. Maria Xavier de Lima Hohenloe. Foi 13. ^ Viscondessa
de Villa Nova da Cerveira. Nasceu no 1." de Dezembro de 1697, e
casou em 28 de Outubro de 1720 com Thomaz da Silva Telles, filha
dos 2.°* Marquezes de Alegrete; morreu a 5 de julho de 1730.
19
D'este casamento nasceram vários filhos, seguindo a linha com
o primogénito.
XV — D. Thomaz Xavier de Lima Nogueira Vasconcellos Telles
da Silva, nascido em Ponte de Lima a 12 de outubro de 1727, foi
14.° Visconde de Villa Nova da Cerveira, L° Marquez de Ponte de
Lima, 1." ministro de D. Maria 1." e seu mordomo-mór. Foi soba sua
gerência que Diogo Ignacio de Pina Manique fundou a Casa Pia.
Casou em 4 de julho de 1745 com D. Eugenia Maria Josefa de Bra-
gança, nascida em 1725, filha dos Marquezes de Alegrete e neta
materna dos Duques de Cadaval. Marido e mulher morreram em
1780. D'este enlace nasceu, entre outros, o filho primogénito.
XVI — D. Thomaz Xavier de Lima, 15.° Visconde de Villa Nova
da Cerveira, que morreu em vida de seu pae em 1780, tendo casado
com D. Maria José de Assis Mascarenhas, em 1777, filha dos 5.°^
Condes de Óbidos.
Teve d'este casamento um filho, com o qual segue a linha,
XVII — D. Thomaz José Xavier de Lima Vasconcellos de Brito
Nogueira Telles da Silva, nascido a 12 de dezembro de 1779, e f oi
16." Visconde de Villa Nova da Cerveira e 2° Marquez de Ponte de
Lima. Casou em 1807 com D. Helena José de Assis Mascarenhas,
que nasceu a 21 de fevereiro de 1784, sendo filho dos 4.°* Condes
de Óbidos. D'este casamento nasceu
XVIII — D. José Xavier de Lima Vasconcellos Brito Nogueira
Telles da Silva, 17.° Visconde de Villa Nova da Cerveira e 5." Mar-
quez de Ponte de Lima.
Este foi o ultimo Marquez d'este titulo, de que nos occupâmos.
20
NOTA B
(Pag. 3)
No Almanach de «O Commercio de Lima^ , de 1909,
o sr. Dr. Manoel de Oliveira, distinctissimo medico
municipal em Ponte de Lima, deputado e senador ao
Congresso da Republica, iilustre pelos dotes da sua intei-
ligencia e variada iliustração, escreveu um artigo, a que
devemos fazer honrosa referencia, e seria graVe falta não
a fazer n'este nosso estudo.
Nesse artigo, que tem por titulo Pro Veritate, se lê o
seguinte:
«Os municipios na Edade Média, revoltando-se contra
«as exigências legaes dos senhores de Juro e herdade,
«evidenciavam essa força mysteriosa de vida e revolução,
«mais por instinto do que por consciência nitida de seus
«direitos, mais em defeza natural de seus interesses do
«que em ódio a seus senhores.
«A critica parcelar da Historia, baseada nessas luctas
«titânicas do município de Ponte de Lima, aponta D. Leo-
«nel, o visconde, e seus descendentes mais próximos,
«como tyranos desta nossa terra, tão encantadora e tão
«linda. Quem assim a ouvir julgará que esses homens só
«de extorsões viviam, ignorando os enormes serviços que
«prestavam á Pátria e que se elles exigiam tributos, estes
«lhes eram facultados pelas leis e costumes da Edade-Me-
«dia, nas doações de juro e herdade que lhes faziam os
«monarchas, como paga de seus trabalhos nas conquistas
«e descobertas marítimas. ^
A estes períodos, acrescentou o distincto escriptor
uma erudita nota histórica, que julgamos dever transcre-
ver na integra.
21
E' a seguinte:
De um códice dos fins do século xvi vamos transcrever o sum-
mario dos principaes serviços prestados á Pátria por D. Leonel de
Lima e seus descendentes immediatos. É o duplicado d'um requeri-
mento feito por D. Luiz de Brito Nogueira ao cardeal rei, pedindo-
Ihe para, a despeito da lei mental, ser encorporada na sua casa, a de
seu sogro D. Francisco de Lima, que foi o ultimo representante va-
ronil no ramo direito da sua linhagem.
-. . .Lionel de Lima foi na tomada de Ceita, he em tempo d'el
Rey Dom Duarte foi cos Iffantes a Tamgere com muita gente he
alguns de seus filhos co elle. He sendo hum dia a guarda do palan-
que sua, elle cos seus sosteve não ser emtrado aquelle dia, onde
ganharão muita honra.
He foi mais he alguns de seus filhos co elle, he com muita gente
com el Rey dom Afonsso o quinto na tomada Dalcaçere.
He foi na tomada de Tamgere he na Darzilla, em que levava
seiscentos de pé, he sesenta de cavallo, he os seiscentos erão bes-
teiros, lanceiros he escudados, he muitos navios, he mantimentos.
He se achou em todas as guerras de Castella. que o mesmo Rey
teve onde fez muitos e valiosos serviços.
He foi muito estimado de quatro Reys que sérvio, por que todos
sérvio sempre co a lança na mão, he foi o capitão que mais vitorias
teve na fronteira de galiza, onde estava, he que mais terras tomou
por que emtrou por galiza até o Padrão seis legoas de Santiago, he
tomou he destruhio muitas villas he lugares, he os trouxe á obediên-
cia dei Rey de Portugal.
He foi mandado por embaixador a Castella por mandado dei Rey
Dom Afonsso o quinto no tempo dei Rey dom João o segundo de
Castella. He na batalha Dulmedo que El Rey teve cos Iffantes seus
cunhados pelejou elle tam valerosamente, he fez taes cousas que lhe
fez o dito Rey de Castella mercê de duzentos mil reis decostamento.
He em tempo dei Rey Dom João o segundo se fez prestes para
o socorro Da graciosa com perto de mil homens de pé, antre escu-
deiros e peães, he muitos navios que mandou á sua custa fretar a
galiza; he sendo muito velho, he co huma espingarda por uma perna
que lhe derão nas guerras de Castella, de que nunca foi são, lhe não
safreo o coração ficar n'este Reyno, he mandou levar uma tumba
cuberta de veludo preto, em que o enterrassem se lá morresse. He
este foi o primeiro Bisconde.
— Dom João de lima seu filho, herdeiro de sua casa he Titollo, foi
guarda mor dei Rey Dom João o segundo; foi em vida de seu pae
cos Iffantes a Tamgere, he co el Rey Dom Afonsso o quinto na
tomada Dalcaçere, he assi se achou na tomada de Tamgere, he na
tomada Darzilla, he em todallas guerras de Castella, he na entrada
da ponte de Samora foi muito mal ferido dhuma espinguardada.
22
— Dom francisco de lima seu filho herdou sua casa he Titollo,
mandou-ho el Rey Dom Manoel Azamor quando foi o Duque de Bar-
guança que levasse trezentos homens: e assi o mandou Arzilla co
sessenta de pé he oito de cavallo. He assi foi ao cerco Darzijla co
cento e çimcoenta de pé he corenta de cavallo, onde esteve hum
anno e se achou com o Conde de Borba em todas as emtradas que
fez. He em huma foi por Capitão só coa sua gente he co corenta de
cavallo que lhe o Conde deu, he nella tomou e çaqueou algumas aldeãs
de que trouxe muito grande preza sem perda de nenhum dos seus.
— Dom João de Lima seu filho herdou sua casa he Titollo, foi
por mandado d'el Rey Dom João o terceiro, quando mandou os
morgados a Ceita co muita gente, he navios he mantimentos co
muito gasto de sua fazenda, e assi sérvio sempre em todas as mais
cousas que socederão he que o mandarão . . .-
A muitos d'estes factos summariados por D. Luiz de Brito no
seu memorial, referem-se, e por vezes largamente, os nossos velhos
chronistas. A seguinte resenha bibliographica servirá de roteiro aos
estudiosos e de justificação ás palavras acima transcriptas:
D. Leonel de Lima:
Expedição a Ceuta: Chronica de D. Duarte, por Nunes de Leão,
cap. VIII, pag. 23. Chronica de Duarte, de Ruy de Pina, cap. xv.
Africa Portugueza, por Faria e Souza, cap. iii, pags. 37 e 41.
Expedição de Tangere e guarda do palanque : Chronica de
D. Duarte, por Nunes de Leão, caps. xi e xii ; Chronica de
D. Duarte, de Ruy de Pina, caps. xxvii e xxx.
Embaixada de Castella em 1443 : Europa Portugueza, por Faria
e Souza, tom. ii, part. iii cap. iii, pag. 370.
Leonel de Lima foi uma das principaes personagens que figura-
raram no pomposo baptisado de D. João II (vide Europa Portu-
gueza, cap. IV, pag. 428), e foi uma das mais notáveis da corte de
D. Affonso V (vide Historia Genealógica da Casa Real, tom. iii.
pag. 8). — Alguns dos filhos segundos de Leonel de Lima praticaram
também actos de bravura na Africa. Lembraremos Pedro de Lima,
em Alcácer (Chronica de D. Duarte de Menezes, pag. 227) e Álvaro
de Lima, que foi captivo na expedição de Tangere em 1464 (Africa
Portugueza, cap. vi, pag. 59) e foi na entrada de Merida em 1476
(Europa Portugueza, tom. ii, part. iii, cap. iii, pag. 420). A res-
peito 4e D. Leonel de Lima, veja-se ainda : Chronica da Conceição,
tom. II, cap. II e seguintes. Escola da Penitencia, cap. xxiv, pag. 395.
D. João de Lima, o ii visconde:
Jornada de Alcácer: Chronica de D. Duarte de Menezes, por
Azurara, pag. 170.
23
Tomada de Tangere, o velho: idem, idem, pag. 242.
Entrada da Ponte de Çamora; Chronica de D. Affonso V, de
Ruy de Pina, cap. 184; Chronica dei Rey Affonso V, por Nunes de
Leão, cap. iv; Chronica do Principe D.João, por Dameào de Qoes,
cap. Lxviii; Europa Portugueza, tom. ii, part. iii, cap. iii, pag. 402.
D. Francisco de Lima, o iii visconde :
Sobre a ida a Arziila e as entradas nas fronteiras mouriscas,
veja-se Chronica de D. Manuel, por Dameão de Góes, ò.^ parte,
caps, VIII e XI. Sobre esta aparatosa expedição, veja-se também a
interessantíssima noticia dada pelo sr. dr. Figueiredo da Guerra, no
seu notável Archioo Viannense, pag. 75, noticia extrahida do Memo-
rial de Calheiros. Ha na apreciação dos factos certa divergência
entre Góes e o auctor do Memorial. Vide ainda Africa Portugueza,
por Faria e Souza, pag. 90.
D. João de Lima, o iv visconde:
Ia por capitão á índia em 1518, quando lhe sobreveio um desas-
tre no navio próximo do Cabo da Boa Esperança, estando a ponto
de perder-se e tendo por isso de regressar a Portugal. Ásia Portu-
gueza, tom. I, cap. II), pag. 185. — Voltou á índia como capitão, em
companhia de Diogo Lima, em 1522. — i4s/a Portugueza, tomo i,
cap. VII, pag. 217. — Foi governador de Calecut, onde praticou
actos de subido grande valor. Ásia Portugueza, tom. i, cap. ix,
pag. 236 e seguintes. — Chronica de D. João III, por Francisco de
Andrade, 1.^ parte, cap. 57, 70 a 75, 78 a 84, 88 a 91, etc.
24
NOTA C
(Pag. 9)
Da Chorografia Portugueza do Padre Carvalho, vê-se que os
Viscondes de Villa-Nova da Cerveira tinham a prerogativa realenga
do direito de apresentação de muitos parochos e da nomeação de
officiaes de justiça.
No concelho de Arcos de Vai de Vez apresentavam os parochos
das seguintes freguezias :
Sancta Comba de Guilhafonce.
S. Jorge.
Nossa Senhora do Valle.
Sancta Maria da Oliveira.
Sancta Eulália de Gondariz.
S. Cosmêde.
S. Salvador de Cabreiro.
Sancta Maria de Mei.
Sancto André da Portela.
Nossa Senhora das Neves de Padrôso.
Sancta Comba de Eiras.
Sancto Estevão de Aboim.
S. Salvador de Sabadin.
Sancta Vaia de Rio de Moinhos.
Sancta Maria de Prozêlo.
S. Bartholomeu de Monte-Redondo.
Sancta Maria de Távora.
S. Paio de Jolda.
S. João de Villar do Monte,
No concelho de Coura :
Sancta .Maria de Paredes.
S. Pedro de Castanheira.
S. João de Bico.
S. Miguel de Christelo.
Sancta .Marinha de Padornêllo.
S. Pedro de Formariz.
25
S. Paio de Aguas Longas.
S. Pedro de Ruivães.
No concelho de Famalicão :
S. Salvador de Ruivães.
Mais:
Sancta Cruz do Douro, no concelho de Baião.
S. Martinho de Soalhaes (no concelho d'este nome).
Sancto André ds Portel.
Priorado de Alemquer.
S. Lourenço, em Lisboa.
S. Miguel de Barrio (em Ponte de Lima).
Apresentavam os Viscondes de Villa Nova da Cerveira seis íabel-
liães e um alcaide, no concelho de Arcos de Vai de Vez ; e pagavam-
Ihe pensão os seis tabelliães do concelho de Ponte de Lima.
Tinham o senhorio da villa dos Arcos de Vai de Vez; o (dos
então concelhos) de Santo Estevão de Facha e de Geraz do Lima, o
do concelho de Coura, o das terras do Beiral do Lima e Couto de
Nogueira, em Villa Nova da Cerveira, que era a cabeça do Viscon-
dado. Era donatário e Capitão-general da ilha do Fogo (Vid. Carva-
lho, cit. e a Resenha das Fam. Titul. e Grandes de Portugal por
Albano da Silveira e Sanches de Baêna, Tomo 2.°) fora as diversas
commendas, como a de Sancta Maria de Passos, de Valongo, S. Mi-
guel da Foz de Arouce (Cron. cit.) e as de Sancta Maria de Borba
e Sancta Maria de Satam, como já dissemos no texto.
26
NOTA D
O decreto de 13 de agosto e as rendas que elle aboliu.
(Pag. lOj
No já citado artigo — Pro Veritate—áo Dr. Manoel
de Oliveira — que diz possuir parte dos papeis do archivo
dos antigos donatários de Ponte de Lima, os quaes pas-
saram para o adquirente do grandioso edificio d^aquella
villa e lhe foram cedidos pelas senhoras, representantes
e herdeiras d'aquelle adquirente, — indica o distincto es-
criptor qual a importância das rendas, que cobravam os
Marquezes naquella qualidade de donatários.
Em face de taes documentos, pôde dizer o seguinte :
cRecebiam o quinto de todo o trigo, centeio, cevada, milho,
«painço, aveia, vinho e linho produzidos dentro dos limites marcados
«pelo foral de D. Thereza confirmado por D. Manoel e verificados
«em 1626 e 1640. Alem d'estes direitos recebiam tributos em dinheiro
«de todas as casas de Ponte de Lima, excepto das privilegiadas.
«Em 1814, a avença do quinto rendia para o donatário 330$250 réis
«em metal e 150 alqueires de pão.>^
Vamos para aqui transcrever o texto dos principaes
artigos do decreto que aboliu todas essas onerosas ren-
das e excepcionaes alcavallas, e que o Marquez, que as
perdeu, foi um dos primeiros a applaudir. Tem 18 arti-
gos. Copiaremos os artigos desde 2 a 9, que são os que
mais interessam ao nosso intento :
Art. 2.° — Os bens da nação, tomada collectivamente, são os
bens do uso geral, e commum dos habitantes, como portos, canaes,
rios navegáveis, estradas geraes, e pontes n'ellas construídas, cães,
e edifícios destinados para a residência do rei, ou para as sessões
27
das camarás, secretarias, tribunaes, aquartelamentos, estaleiros,
arsenaes, e outros semelhantes. Os bens da nação, adquiridos por
títulos de successâo, e execução fiscal, e não destinados ao uso geral,
e commum, serão regulados pelas leis da fazenda, e formarão parte
do thesouro publico disponível : a nenhuma d'estas espécies de bens
he applicavel a jurisprudência dos bens chamados — da coroa—: a
natureza d'estes bens fica extincta, bem como todas as leis relativas
a elles, e á sucessão d'elles.
Art. 5." — As doações feitas pelos reis d'estes reinos de bens
chamados da coroa; de bens da fazenda publica; de direitos cha-
mados— direitos reaes— ; do gozo exclusivo de bens destinados ao
uso geral, e commum dos habitantes; os foraes daáos ás terras do
reino, ou pelos reis, ou pelos donatários; e os foros, pensões, quo-
tas, rações certas, e incertas, laudemios, luctuosas, e mais direitos,
e prestações de qualquer denominação que sejão, impostas pelos
reis, ou pelos donatários em virtude de suas respectivaas doações,
ou pelos foraes, ainda que estejão reduzidos a emprazamentos, ou
sub-emprazamentos, ou a censos, são por sua natureza revogáveis.
Art. 4." -As contribuições, e tributos pagos pelos povos, sendo
essencialmente destinados para as despezas publicas, não podem
fazer o património de alguma corporação, ou individuo de qualquer
hierarchia que seja : as contribuições e tributos serão de sua natu-
reza geraes, e devem ser repartidas entre todos os habitantes da
monarchia, segundo as leis geraes. Os direitos, foros, pensões, e
mais prestações enumeradas no art. 3.", e impostos pelos donatários,
ou pelos foraes, são verdadeiros tributos e contribuições, que nem
todos pagavão, nem de todas as terras, e não podem continuar a
subsistir.
Art. 5.°— Ficão por conseguinte cassadas e revogadas todas as
doações de quaesquer dos bens enumerados no art. 3.°, feitas pelos
reis a qualquer corporação, ou individuo de qualquer hierarchia que
seja ; e extinctos todos os foraes dados ás differentes terras do reino,
ou fossem dados pelos reis, ou pelos donatários da coroa.
Art. 6.° — Ficão extinctos todos os foros, pensões, quotas, cen-
sos, rações certas e incertas, jugadas, teigas de Abrahão, laudemios,
luctuosas e mais direitos e prestações de qualquer denominação que
sejão, impostos nos bens enumerados no art. 3.", ou pelos reis, ou
pelos donatários, ou por contractos, de emprazamento, ou sub-empra-
zamento, ou de censo, fundados, em doações regias, ou em foraes,
ou em sentenças, ou posses, ainda que sejam immemoraveis, ou por
outro qualquer titulo, posto que não especificado.
Art. 7." — Ficão extinctos os prazos da coroa, os relegos, os
reguengos, os senhorios das terras, e as Alcaidarias mores, salva a
conservação puramente honorária dos titulos.
Art. 8."— As terras e os edifícios, e demais bens enumerados
no art. 3 °, em que estavão impostos os tributos e prestações e mais
28
direitos extinctos, pelos arts. 6." e 7.°, ficão livres e allodiaes em
poder de quem pagava esses tributos, prestações e mais direitos
extinctos, para poder dispor delies como quizer em todo, ou por par-
tes, ou transmitti-los a seu* herdeiros e successores e dividi-los por
elles como seus próprios, ou os houvesse dos reis, ou dos donatários,
ou d'aquelles, que os tivessem havido dos reis, ou dos donatários.
Art. 9.°— Ficào revogados, a beneficio dos gravados, todos os
impostos cobertos com os nomes de emprazamento, ou sub-empraza-
mento, ou de censo, ou de retro aberto, ou de outra qualquer deno-
minação, feitos sobre os bens especificados no art. 3.°, ou fossem
feitos pelos reis, ou pelos donatários, ou por os que d'elles obtiverão
esses bens ou por qualquer titulo.
Art. 10."— Fica revogada a lei mental e todas as leis que regu-
lavào a successão dos bens da coroa.
Paço na cidade do Porto, 13 de agosto de 1852.
D. Pedro, Duque de Brag.\nça.
José Xavier Mousinho da Silveir.^.
António Corrêa Caldeira
(Esboço biográphico)
O Conselheiro António Corrêa Caldeira (António José
Marques Corrêa Caldeira, nos registos universitários),
doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, lente substituto ordinário da mesma Faculdade,
secretario do governo civil de Lisboa, secretario do Con-
selho de Estado, deputado em muitas e successivas legis-
laturas, conselheiro do Tribunal de Contas, vice-presidente
da Camará dos deputados nas sessões legislativas de 1872,
1875 e 1874, Par do Reino, nasceu na villa de Ponte de
Lima em 13 de outubro de 1815 e ali passou os primeiros
annos da sua mocidade.
Foi um homem illustre por talento e virtudes, tendo
uma grande notoriedade e consideração politica desde 1842
até 1876, em que falleceu.
Era filho de José Marques Caldeira, official do exer-
cito, oriundo de uma familia das proximidades de Coim-
bra, o qual morreu no posto de general de brigada, e da
Senhora D. Anna Ephigenia Rita Corrêa, dama limiense,
sobrinha de Frei Francisco de S. Luiz.
Pertencia assim, por sua mãe, o nosso biographado á
50
familia do glorioso monge benedictino, que patrioticamente
abandonou o recolhimento e obscuridade do claustro, bem
como os estudos, em que nelle tanto se comprazia, para
se pôr á frente da revolução de 1820!
O sábio, que foi escolhido para redigir o manifesto ás
Igreja Matriz, onde foi baptizado
nações, explicando as causas d'esse grande movimento
nacional, tornando-se a voz da revolução! O varão insigne,
que foi um dos membros do governo superior do reino na
ausência do rei! O patriota, que presidiu, com Manoel
31
Fernandes Thomaz, ás cortes constituintes de 1822 e
depois á legislatura de 1827!
Frade liberal e frade catholico e virtuosíssimo, que veio
a ser Bispo-Conde de Coimbra, ministro de Estado, rei-
tor da Universidade, Patriarcha de Lisboa e Cardeal da
Sancta Igreja Romana !
Tendo, pelas exigências da Vida militar, sabido seus
pães da villa de Ponte de Lima, ficou o filho entregue aos
cuidados de suas tias, irmãs do futuro cardeal, D. Joanna
e D. Marcelina Saraiva, que o crearam e educaram como
seu filho predilecto e estremecido.
Frequentou a aula de latim na casa situada no Largo
do Adro da Matriz, que faz esquina para a Rua do Souto
Caza onde foi a aula de latim
(hoje de Vieira Lisboa), a qual é actualmente habitada
pelo bondoso homem e honrado negociante, o Sr. Manoel
Faria.
N'ella ensinava a lingua de Virgílio e Horácio o pro-
52
fessor Falcão, um d'estes mestres de ríspido focinho —
na phrase de Tolentino— , dos quaes tanto abundava a
épocha.
Pode dizer-se que madrugaram no nosso biografado as
scintillações de uma intelligencia, que, mais tarde, tanto
havia de preluzir !
Sendo dos mais novos era o primeiro e mais distincto
dos aiumnos!
Não obstava porém isso a que o professor, odiento e
fanático absolutista, o maltractasse e lhe dirigisse chufas
e motejos, allusivos ao tio, o respeitável e virtuoso Bispo
resignatario de Coimbra, cujo liberalismo havia concitado
os ódios de todos os retrógrados da épocha!
Teve por isso que abandonar a aula, onde já não tinha
que aprender e que só frequentava, porque as angustio-
sas circumstancias da familia lhe não permittiam ir cursar
os estudos superiores, para os quaes o estavam impellindo
as aptidões, que já se evidenciavam n'elle.
II
Cedo lhe começou a vida do trabalho.
Acabada a guerra civil, estabelecida a ordem legal,
chamado até á gerência da pasta do reino o Bispo-Conde
resignatario, seu tio, obteve um pequeno logar na perfei-
tura do Minho, donde passou para a de Coimbra e depois
para a secretaria do respectivo governo civil.
Foi assim que pôde seguir os estudos universitários,
matriculando-se na Faculdade de Direito, em novembro
de 1856 e concluindo a formatura em 1841.
Estudante, que desde logo se revelou muito distincto,
oo
obteve o primeiro premio pecuniário no 4.° e 5.° anno do
-seu curso. Nos annos anteriores, por virtude dos aconte-
cimentos políticos, não houve classificações pecuniárias
,nem honorificas.
Frequentou o 6.° anno e recebeu o capello com o
•grau de doutor em 24 de Julho de 1842.
Já depois do exercício dos cargos officiaes e das
funcções legislativas, a que vamos referir-nos, conquis-
tou, em brilhante concurso, o logar de lente substituto
extraordinário da faculdade em que se doutorou (1854)
■e foi ainda promovido a lente substituto ordinário (1855).
As seducções da politica e da vida da capital, afasta-
ram-n'o de Coimbra e do professorado universitário.
Em 1844 havia sido nomeado secretario geral do go-
verno civil de Lisboa, e conservou esse cargo até 1851.
N'elle foi — como se diz vulgarmente — o braço direito do
governador civil, Marquez de Fronteira, honrado soldado
da liberdade, fidalgo de antiga linhagem, neto daquella
encantadora mulher e gloriosa poetisa, que se chamou
D. Leonor de Almeida, Condessa de Oeyhansen e de
Assumar, Marqueza de Alorna, e que teVe, no mundo da
elegância e das lettras, o nome de formosa Alcipe!
De 1845 a 1846 foi governador civil interino, conser-
vando o logar de secretario, que depois voltou a exercer.
Demittiu-se deste cargo, quando, triumphante a revo-
lução do Duque de Saldanha, em 1851, se inaugurou o
governo chamado da regeneração, ao qual, como depu-
tado, fez intransigente opposição.
34
Em 1856 foi nomeado secretario do ConseFho de Es-
tado, que então reunia também as attribuições, que hoje
pertencem ao Supremo Tribunal Administrativo. Exerceu
esse logar até 1859, em que foi nomeado conseliíeiro do
Tribunal de Contas, cargo que desempenhou até ao seu
fallecimento.
Era extremamente cuidadoso no desempenho das suas
funcções officiaes. Considerava uma deshonestidade o-
recebimento dos ordenados sem o correspondente traba-
lho. Detestava os parasitas do orçamento, que sempre
lhe repugnaram. Professando estes sentimentos, exerceu
os seus cargos com o maior cuidado e brio.
IV
Posto fosse assim funcionário muito distincto e que^
como tal, conquistasse nome honroso pela sua inteligên-
cia, illustração e integridade, foi comtudo o parlamento o
campo onde mais se manifestaram as altas qualidades do
seu espirito e o brilho do seu talento.
Entrando pela primeira vez na Camará, em 1848, foi
successivamente eleito deputado em onze legislaturas,
desde a daquelle anno até á de 1871 a 1874, em que,
sendo vice-presidente, foi nomeado par do reino.
Desde que, pela primeira vez, tomou a palavra, em
1848, marcou distinctamente o seu logar no parlamento
portuguez.
A sua estreia, precedendo poucos dias a de Luiz Au-
35
gusto Rebello da Silva — que foi um dos principes da elo-
quência parlamentar nos tempos áureos d'ella, — foi de
maiores effeitos politicos do que a deste, como consta dos
jornaes da épocha.
E mais augmentou depois o prestigio da sua palavra e
a auctoridade d'ella.
A um dos seus companheiros de parlamento, grande e
insuspeita auctoridade para o apreciar, o sr. José Luciano
de Castro, ouvi dizer o seguinte:
«Tinha um grande valor parlamentar; falava com grande
facilidade e correcção.»
Foi nas legislaturas de 1852 e de 1855 a 1856, como
deputado da opposição, que mais se salientou a sua figura
de orador.
Em um opúsculo d'essa épocha, que se intitula Apon-
tamentos sobre os oradores parlamentares de 1853 por
um deputado, apparece o seu perfil.
Posto não traga esse opúsculo o nome do auctor, sa-
be-se que o foi o Dr. Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara,
erudito homem de letras, então bibliothecario da Biblio-
theca de Évora, e depois secretario geral do governo da
índia. Apparece até, mais tarde, esse opúsculo enumerado
entre as suas obras (1).
Cunha Rivara era deputado da maioria e Corrêa Cal-
deira da mais intransigente opposição.
Apezar de escripto por adversário politico, o perfil tem
alguns traços verdadeiros, e por isso o vamos transcrever:
(1) É opúsculo raríssimo e muito difficil de encontrar. Tendo-o
lido na longiqua colónia, onde Cunha Rivara muitos annos viveu, só
podemos obter uma copia manuscripta da parte consagrada a Corrêa
Caldeira por obsequioso favor do nosso erudito amigo dos tempos de
Coimbra, o sr. António Francisco Barata, antigo conservador da Bi-
bliotheca de Évora, fallecido pouco depois de nos ter feito esse favor.
56
Diz:
«O sr. Corrêa Caldeira não tem quarenta annos. Tem
phisionomia agradável, que todavia obscurece e carrega
pelo uso de óculos muito escuros, que lhe encobrem com-
pletamente a expressão dos olhos.
«Parece, quando ora, que tem o rosto coberto com
uma mascara, posta de propósito para amedrontar o adver-
sário.
«Tem sido Varias vezes deputado, mas é agora a pri-
meira Vez que se encontra collocado na opposição.
«Fala com desembaraço e argumenta menos mal.
Tem Voz soffrivel e é ouvido com attenção. De ordi-
nário offende os seus adversários com a aspereza e
desabrimento das suas palavras. Interpelador infantiga-
vel, persegue os ministros nos seus últimos entrincheira-
mentos.
«É longo em seus discursos, d'onde vem que ás vezes
cae em frouxidão e suscita uma tal ou qual impaciência
na assembleia, mas nunca a ponto de lhe negar attenção.»
Cumpre registar que nunca lhe era negada attenção
em uma camará onde se sentavam oradores, como, José
Estevão, Passos Manuel, Rebello da Silva, Avilla, Vicente
Ferrer, Cunha Souto Maior, Mendes Leal, Carlos Bento,
Casal Ribeiro e outros; e estando na bancada do governo
Rodrigo da Fonseca Magalhães, Garrett, António Luiz de
Seabra e Fontes Pereira de Mello.
Mas Vejamos! Corrêa Caldeira era, n'aquelles tempos,
considerado orador aggressivo e Violento !
O que seria justo dizer é que elle era um orador vehe-
mente por ser homem de arreigadas e profundas convic-
ções. Obedecia apaixonadamente a estas!
Mas as paixões — disse Garrett — são a poesia da po-
litica. São matéria d'ella o amor da pátria, da justiça e
37
da liberdade, que com ardor costumam ser amadas! Fácil
é que esse ardor aqueça e incendeie os ânimos.
Ser apaixonado não é ser baixo, nem grosseiro na lucta
dos partidos !
Não foi, nem podia ser Corrêa Caldeira um declama-
dor de facécias, nem um insultador parlamentar.
Não podia sê-lo, porque tinha, no mais alto grau, um
sentimento necessário em todas as situações da vida.
Nunca o abondonava. Era o respeito por si próprio!
Era este sentimento que lhe dava uma grande nobreza
de porte e uma aristocracia de maneiras, que se manifes-
tavam em todos os seus actos, em todas as suas relações
sociaes.
Bondoso, afável, delicadissimo, não facilitava familiari-
dades. A sua mesma primorosa delicadeza, que dulcifi-
cava o aprumado do seu trato, distanciava.
Mas é que era um vaidoso? Um fátuo?
Não ! Largamente demonstrou o seu desdém pelas
fúteis e estéreis Vaidades humanas.
Nunca quiz ser ministro. Por mais de uma vez rejeitou
sê-lo.
Com grandes dotes de parlamento, experiência de ne-
gócios e perfeito conhecimento dos serviços públicos, era
geralmente indicado para a gerência das pastas da justiça
ou do reino.
Convidado pelo duque da Terceira, em 1859, para
fazer parte do ministério, a que o honrado general presi-
dia, recusou-se ; e, por mais de uma vez, oppôz inven-
cível resistência aos convites, que lhe fez, para aquellas
pastas, o Conde, depois Duque de Ávila, com quem cons-
tantemente manteve estreitas relações politicas e — mais
ainda — pessoaes.
Sempre declinou esses oíferecimentos.
As miragens do poder não o seduziam. Homem de
arreigadas convicções, não as sacrificava.
Julgava não poder servi-las, nem servir utilmente o paiz,
nas situações em que lhe offereciam aquelles altos cargos.
D'ahi o seu irreducíivel retrahimento.
58
Mas voltemos á sua acção parlamentar nas legislaturas
de 1852 e 1855.
Dia a dia traVaVa lucta com Rodrigo da Fonseca Ma-
galhães, que foi uma das grandes figuras do nosso parla-
mento, «para quem (diz Latino Coelho) a tribuna foi a sua
«predilecção e a sua gloria, e, dispondo de uma palavra
«solemne e persuasiva, foi um grande e exemplarissimo
«orador.» (1)
Rodrigo da Fonseca respeitava-o e temia-o. Para lhe
desviar os golpes, por vezes, recorreu aos expedientes e
habilidades, em que era fecundo o seu engenho e que lhe
mereceram o epitheto de Raposa politica.
Uma Vez em que, antes da ordem do dia, sobre graVe
assumpto, Corrêa Caldeira havia pedido a palavra, Rodrigo
da Fonseca, antecipando-se-lhe, aproveitou a occasião
para, sobre um pretexto qualquer, fazer o mais caloroso
elogio do Cardeal Saraiva, D. Francisco de S. Luiz.
Tocando-lhe nos seus mais queridos affectos, Corrêa
Caldeira commoveu-se, e. sob essa comoção, levantou-se
para falar, tendo de principiar por agradecer ao Ministro.
O seu ataque foi mais frouxo n'esse dia.
Foi ainda com o mesmo illustre deputado opposicio-
nista que se passou o conhecido episodio da quebra dos
óculos (2).
(1) Elogio histórico de Rodrigo da Fonseca Magalhães por J. M.
Latino Coelho.
(2) Biographia de Rodrigo da Fonseca, na Revisto Contemporâ-
nea de Portugal e Brasil, tom. 3.° por J. M. Andrade Ferreira.
39
Corrêa Caldeira atacou violentamente os actos de uma
auctoridade administrativa, de que o governo não podia,
ou não queria separar-se.
Rodrigo da Fonseca defendeu-a, e, para destruir com-
pletamente as arguições do seu adversário, prometteu tra-
zer á camará documentos, que comprovavam as suas affir-
mações.
Na sessão seguinte, Corrêa Caldeira foi mais vehe-
mente ainda e convidou o ministro a destruir os factos
•com os documentos, a que tinha feito referencia.
O ministro, levantando-se, passou a dar resposta ás
accusações do deputado; e, como era seu costume quando
a lucta era mais viva, tirou os óculos, que collocou deante
<Je si.
Os documentos tinha-os ali e ia lê-los.
Falando com calor e alargando o gesto das occasiões
solemnes, acompanhava as suas palavras com alguns
murros na carteira.
Um d'elles apanhou os óculos e partiu-os. Quando
•chegou a occasião, em que devia tirar os papeis da pasta
e lê-los, pegou nos óculos.. . inutilisados!
Lastimou-se do desastre. Mostrou-se contristado. Di-
versos deputados lhe offereceram os seus óculos, que
Rodrigo, grande actor, experimentava!
Não lhe serviam ! Não via por elles.
Mas, voltando-se para a opposiçào, disse o que conti-
nham os documentos e perguntou quem é que ali duvi-
dava da sua palavra.
Os seus parciaes applaudiram. Estava levantada a ques-
tão pessoal entre um deputado e um membro do governo,
que era a verdadeira alma d'elle; e a maioria prompta a
•cobrir o ministro.
Corrêa Caldeira mantinha-se no seu logar com a gra-
vidade e aprumo, que lhe eram habituaes.
Era incapaz de promover ou tomar parte em scenas
do parlamento, em que falam os pés!
40
Uma das honras, que mais ambicionou na sua vida, foi*
ser eleito deputado pela sua terra natal.
Conseguiu sê-lo duas vezes.
Promulgada a lei de 25 de novembro de 1859, que,
pela primeira vez, estabeleceu círculos uninominaes, ficou'
o concelho de Ponte de Lima constituindo, só por si, um
circulo eleitoral. TornaVa-o assim aquella lei independente
dos outros concelhos do districto, a que até ali tinha
andado eleitoralmente ligado e que supplantavam os votos-
dos seus eleitores.
Veiu logo á geral lembrança escolher para representar
o circulo eleitoral o filho do concelho, que mais se havia
assignalado nas luctas da representação nacional.
Todos os politicos cahiram de accôrdo. Todos tiveram'
essa opinião. Nem mesmo d'ella discordaram os partidá-
rios, ainda importantes, do velho regimen.
Nunca eleição alguma ali suscitou maior enthusiasmo!
O prestigioso candidato não teve concorrente.
Chegado o dia da eleição, de 1551 eleitores, que con-
correram ás assembléas primarias, obteve 1558 votos. Só
treze votos discordantes!
Philarmonicas á noite percorreram as ruas! O fogue-
torio e vivorio atroaram os ares!
Mas o enthusiasmo não se limitou a isso. Quizeram
mais. Um grande banquete, por subscripção, devia coroar
e solemnisar a obra da fraternidade eleitoral.
Teve de realisar-se ao ar livre, porque não havia casa
que pudesse conter os convivas.
Effectuou-se na matta dos extinctos frades, ainda então-
povoada de grandes arvores.
Reinou a alegria. O enthusiasmo electrisava os espí-
ritos! Todos se sentiam por elle dominados!
Chegada a altura própria, começaram os brindes. Fo-
ram innumeros!
41
Brindou-se primeiro, já se sabe, peio ilJustre deputado
eleito: peio filiio mais distincto da formosa terra! Pelo
que mais a honrava e ia eleva-la e brilhantemente repre-
senta-la.
Brindou-se pela independência e authonomia eleitoral
do concelho.
Brindou-se pela harmonia e união das vontades para
os progressos locaes.
Brindou-se por cada um dos chefes, influentes e ma-
gnates, que mais tinham concorrido para tão feliz resul-
tado eleitoral!
E quando já não havia a quem brindar; quando o
enthusiasmo, como fogo que já nào tem combustível, se
ia apagando, um conviva bateu as palmas para chamar a
attenção, e, de copo na mão, pediu mais um ultimo e der-
radeiro brinde:
Brindou pelo deputado perpetuo pelo circulo de Ponte
de Lima! .. .
Una você calorosamente todos o applaudiram, e assim
o proclamaram! O enthusiasmo redobrou. Os copos mais
retiniram.
Assim terminou a festa.
Corrêa Caldeira podia julgar-se satisfeito e saturado
com as honras alcançadas e conferidas pelos seus patrí-
cios!
Reunida a camará dos deputados, tomou assento n'ella
em janeiro de 1860.
Volvidos porém alguns mezes, em julho d'esse anno, o
ministério, que se havia organisado sob a presidência do
Duque da Terceira, e que, depois da morte d'este illustre
general, passou a ser presidido por Joaquim António de
Aguiar, foi substituído por outro, que tinha por chefe o
Marquez de Loulé.
Corrêa Caldeira enfileirou logo na opposição.
42
Foi dissolvida a camará dos deputados por decreto de
27 de março de 1861.
As novas eleições fizeram-se em 28 de abril desse
armo.
Apresentado candidato novamente pelo circulo da sua
naturalidade, os eleitores, seus patrícios, ainda se lhe
mostraram firmes e fieis!
De 1526 listas, que entraram nas urnas das assmbleas
primarias, 1525 continham o seu nome! Só uma lista dis-
cordante (Diário, n.° 125, de 5 de junho)!
Incrivel !
Até parece que só houve eleição fingida e actas pin-
tadas! Mas não! Parece que ainda se não usava disso!
Houve realmente eleição, e as philarmonicas e o foguetorio
ainda, desta vêz, perturbaram a tranquilidade dos ares!
Banquete é que já não houve !
Nenhuma significação porém tinha essa falta de liba-
ção pelas taças da amisade!
Devia julgar-se cimentada em solidas bases uma
duradoura solidariedade eleitoral entre os eleitores e o
eleito!
Erro ! Illusão!
Nunca mais foi eleito! Nunca mais pôde lembrar-se de
o sêr!
Os eleitores retrahiram-se. Na eleição seguinte de 1864
ficou fora da camará. Nunca isso lhe havia succedido
desde que nella entrou pela primeira vêz!
Como se explica?
Ora . . . como se explica ! . . . Explica-se reflectindo que
a popularidade politica é uma dama, sem virtudes, que
tanto beija como atraiçoa e repele aquelles a quem uma
vêz concedeu os seus favores !
E' sempre aquella volúvel dona, de quem se canta no
Ri golét O.-
La donna è mobile,
Qual pluma ai viento,
Muda d'assiento
E di pensieri !
43
E' que durante a larga legislatura de 1861 a 1864,
manteve-se na opposição e elle não era homem que se
-dobrasse a pedir favores a adversários.
E assim não pôde fazer abbades, nem satisfazer com
•despachos a emprego-mania ! Nem, ao menos, arranjar
dinheiro para algumas estradas com que a sciencia e amor
de arte das engenharias d'este paiz entortassem e des-
ieiassem as entradas da villa ! Nem emfim para alguns d'es-
tes melhoramentos, que nada melhoraram, mas que cons-
pícuas pessoas da terra dizem serem bellos e utillissimos,
■e desde logo passa a ser acto de estupidez e — o que é
peor — de falta de patriotismo dizer que o não são !
Podiam, para attenuante, levar-lhe em conta que o
dinheiro não era então preciso para os rasgos do progresso
material da villa, pois que, por essa épocha, —pouco mais
ou menos — foram derruídas as duas torres, que comple-
tavam a harmonia architectonica da monumental e famosa
ponte sobre o Lima, que dá o nome e o brazão á villa.
Bastaram para isso os recursos do município e a ini-
ciativa de dois vereadores, pessoas respeitabillissimas e
homens ricos, mas castrados do sentimento do bello e do
amor das tradições.
Assim estava escripto no livro dos destinos!
Assim o quizeram os fados, que ainda hão-de comple-
tar aquela obra vandalica ! Só admira que ainda não tenham
conseguido levá-la a effeito! (1)
(1) Aqui vou fazer uma denuncia e que me perdoe o denunciado
pela intenção com que a faço.
O meu illustre amigo, Dr. António Feijó, poeta consagrado, honra
da iitteratura nacional e gloria authentica da terra em que nasceu,
disse-me um dia, com indignação e tristeza, que, contra os que tal
effectuassem, elle havia de escrever um artigo tão violento que se-
riam obrigados a chamal-o aos tribunaes e a mettêl-o na cadeia, pois
44
Mas foi só o que fica dito a razão do desagrado ?
Diga-se em abono da verdade, —não!
Corrêa Caldeira não tinha feitio para a cultura da vinha
eleitoral ! Não respondia a todos que lhe escreviam ! Não
se prestava a quantos pedidos lhe faziam ! Era um austero !
Ponte sobre o rio Lima
Antes de fazer qualquer pedido, queria" sempre examinar
se era justo. É este um dos traços do seu caracter.
Mais :
A sua palavra havia emudecido, e não lh'o levaram a
bem os seus eleitores.
Queriam que falasse para, ao menos, se falar na terra,
diziam !
Mas elle não era d'aquelles que falasse só para falar!
que só assim se julgaria quite, em tal caso, da sua divida para com a
querida terra natalícia ! Por tal forma quiz exprimir a sua repro-
vação pelo apregoado projecto do alargamento da ponte com cachor-
ros de pedra e varandas de ferro !
Non in solo pane vioit homo, direi eu !
45
Via que o meio politico não lhe permittia a realização das
suas ideas, e que o luctar por ellas era deslocado. A leal-
dade politica levara-o para as bancadas da opposição, mas
sentia que qualquer outro governo não seria melhor de
que o ministério Loulé-Avila, e governaria e administraria
pela mesma forma que esse.
Assim falar era inútil. Nenhuma consideração humana
o levaria a desempenhar o papel de actor ou de realejo
parlamentar!
D'ahi a perda da popularidade e a incompatibilisação
com o circulo.
V
Occupou muito o seu espirito com a publicação das
•obras, algumas inéditas, do Cardeal Saraiva, que levou
^té o decimo volume.
Em 1860 casou com uma distincta e virtuosa senhora,
felizmente ainda viva, a Senhora D. Maria José Deslandes
Corrêa Caldeira. Desse casamento existem duas filhas e
um filho, o sr. Dr. Venâncio Jacintho Deslandes Corrêa
Caldeira, secretario geral do districto de Beja-
De uns seus românticos amores da mocidada havia
nascido, em Coimbra, a Senhora D. Amélia Janny, recen-
temente fallecida, a qual, herdando de seu tio, o malo-
grado poeta das Flores da Bíblia, o dom privilegiado da
poesia, foi continuadora dos talentos litterarios de sua
família e legitima e autentica gloria d'ella.
Homem de inexcedivel lealdade nas suas relações pes-
soaes, modelo no lar domestico, a vida publica doeste
nllustre limiense foi espelho da sua vida particular.
Falleceu repentinamente no dia 2 de novembro de 1876.
46
Pinheiro Chagas, no Correio da Manhã, do dia se-
guinte, escreveu um sentido artigo, em que honra a me-
moria do homem publico, que diz ter sido «distinctissimo,
«leal, honrado, de uma tempera austera e nobre, respei-
«tado até pelos adversários pela inquebrantável firmeza
«do seu caracter e das suas convicções.»
Nesse artigo encontra-se também o seguinte periodo:
«Seu irmão mais novo, Luiz Corrêa Caldeira, poeta;
^<de um raro talento, morrera de uma meningite, na flor
«da vida, e essa morte causou tão viva impressão no-
«animo affectuoso de seu irmão, que, ainda ha pouco-
«tempo, lembrando-a, lhe vimos os olhos rasos de agua e:
ío aspecto profundamente comovido.»
Haviam decorrido iá dezasete annos!
Foi um cidadão illustre, um politico honesto, um ho-
mem de distincto mérito e um homemi de bem,!
NOTA
Por obsequioso e benevolente favor do distinto professor e
actual Reitor da Universidade de Coimbra, sr. dr. José Alberto
dos Reis, aqui se pode publicar uma copia da certidão do assento
de baptismo, que foi juncta ao requerimento de António Corrêa
Caldeira, para a sua matricula no primeiro anno da faculdade de di-
reito.
CERTIDÃO
João Bento de Medeiros, Parocho da Collegiada Matriz de
Santa Maria dos Anjos da Villa de Ponte de Lima, e Arcipreste
d'este Julgado, etc.
Certifico que revendo hum dos Livros dos Baptisados d'esta
Villa, nelle a pags. 157 achei o assento do theor seguinte: António,
filho legitimo de José Marques Caldeira e D. Anna Efigenia Rita
Corrêa, da rua do Carrerido d'esta Villa de Ponte de Lima; neto
paterno de José Marques Caldeira e de sua mulher D. Joaquina
Thereza de Macedo, da Cidade de Coimbra; materno de José Ro-
drigues Lima, e sua mulher D. Marianna Thereza de Jesus, desta
Villa. Nasceu aos 19 dias do mez de Outubro de 1815; e aos 26 dias
do dito mez foi solemnemente Baptisado na Pia Baptismal da Colle-
giada Matriz d'esta Villa por mim, e lhe administrei os Santos Óleos:
sendo padrinhos António Lobo Teixeira de Barros e Barbosa, te-
nente-Coronel do Batalhão de Caçadores e D. Henriqueta Malheiro,
desta Villa ambos. Em fé do que fiz este Assento. O Coadjutor e
Beneficiado Manuel José d'Araujo. E não contêm mais o dito as-
sento, que aqui copiei fielmente, a cujo Livro me reporto. Passo na
verdade, por me ser pedida. Ponte de Lima, 2 de Novembro de 1836.
(a) O Parocho Arcipreste, João Bento de Medeiros.
RECONHECIMENTO
Reconheço a letra e assignatura supra por verdadeira de que
dou fé. Ponte de Lima, 2 de Novembro de 1836. Em testemunho de
Verdade (logar do Signal Publico). O Tabellião, Francisco José
Moutinho.
48
Diz o assento de baptismo que os pães moravam na Rua do Carre-
rido. Tal nome era o da torta rua, que hoje tem o nome de Rua do
Cardeal Saraiva, porque n'ella moraram, durante muitos annos, na
casa bem conhecida e apontada, as irmãs do ilUistre sábio.
Creio que por isso se pode concluir, com a maior probabilidade,
<]ue na mesma casa nasceu António Corrêa Caldeira, isto é, na casa
de suas tias, D. Joanna e D. Marcellina.
Na mesma casa, por vezes, habitou D. Francisco de S. Luiz,
durante o tempo, (que por certo seria curto), em que se afastava
dos conventos da sua ordem, onde o prendiam não só os votos monás-
ticos, mas a predilecção dos estudos, a que constantemente trazia
preso o seu espirito. Mais tempo por ali se demoraria seu irmão.
Frei Luiz Saraiva, ou Frei Luiz dos Seraphins, que a pessoa querida
da minha familia ouvi dizer que, sendo também muito inteligente, era
«m espirito mais alegre e mais mundano do que o irmão.
Não resisto a dizer aqui que, quando António Caldeira se bapti-
zou a frontaria do famoso templo, cuja gravura publicámos, era bem
mais bella e harmónica!
Mas, passados bastantes annos, a torre ameaçou ruína. Teve de
reedificar-se, e o amor das commodidades ou a preoccupação d'ellas,
que lá na terra supplanta sempre o culto do bom gosto, resolveu que
•a torre se elevasse mais para . . . melhor se ouvirem as horas!
Assim ficou o que se vê! Escapou esta deturpação a Ramalho
Ortigão, que nas Farpas escreveu o seguinte:
«Em Ponte do Lima a ponte que deu o nome á villa é um dos
mais antigos monumentos do seu género em Portugal. Assenta em
vinte e quatro arcos, dos quaes dezeseis em ogiva.
«Foi reconstruída primeiramente por D. Pedro \, talvez sobre a
ponte romana da épocha, da via militar de Braga a Astorga, e depois
por D. Manuel. Era entestada por duas bellas torres, uma do lado
-de Arcozello, outra do lado da villa, a que dava entrada por uma
49
porta ogival. As guardas da ponte assim como as duas torres eram
guarnecidas d'ameias.
«Com essa forma se conservou este curioso monumento até 1S34.
Depois, com o regimen liberal, Veio uma vereação que mandou arra-
sar as duas torres; e outra vereação, não querendo ficar atraz da
primeira, mandou serrar as ameias que coroavam as guardas! (1) O
•cinto de muralhas, com as suas cinco portas, as suas torres e as
suas barbacans, com que D. Pedro I fortificou a villa reedificada no
século XIV, não cahiu também inteiramente de per si, foram ainda as
vereações municipaes que successivamente se encarregaram de o
fazer desapparecer.
«O poder central em sua alta e suprema indiferença pelos mais
estúpidos attentados de que são objecto os monumentos mais vene-
ráveis da arte e da historia nacional, approvou uma por uma todas
as marradas de preto capoeira com que á municipalidade de Ponte de
Lima approuve derribar e destruir os mais bellos vestígios archite-
ctonicos da gloriosa historia da antiga villa e o próprio sentido herál-
dico das suas armas, nas quaes em escudo de prata figura uma ponte
•entre duas torres;>.
Occupa-se depois de outras mutilações.
(1) Foi o inverso: primeiro as ameias e depois as torres.
João de Deus
Historia de duas satyras suas (1)
Atravessando a grande nave sombria do famoso templo
manuelino, por vezes tenho ido, em piedosa romagem, até
junto da grade da ca-
pella dos Jeronymos,
onde está collocado o
ataúde, que contém
os restos mortaes de
João de Deus.
Parece-me sempre
que aquelle féretro e
o de Garrett, cober-
tos de panos negros
com algum pó e flores
sêccas, estão ali pro-
visoriamente, desde a
Véspera, á espera —
como os de quaesquer
outros mortaes — do
canto-chão de uns pa-
dres e dos braços de
uns lagoias, que vão
transportá-los para
sepulturasdefinitivas!
Sepulturas, que eu
quizera que fossem em estrophes de alvejante jaspe, cober-
tas pela cúpula azul dos céus, no meio de muitas flores.
João de Deur, 1860
(1) Excerptos de um livro, que não chegou a ser publicado.
52
que atrahissem o cântico das aves, musicas da natureza,
sons que seriam menos harmoniosos, menos sublimes do
que os seus versos!
Tendo de falar de João de Deus, faço invocação á
sua sombra venerada e querida, para que só escreva o
que seja digno d'elle!
Em uma das vezes, que me encontrei em face do seu
ataúde, me acudiram á memoria os versos sublimes de
Roque Bareia, consagrados a Camões, que bem posso
applicar ao lyrico genial, que é também o auctor da Carti-
lha Maternal e dizendo com o poeta hespanhol:
Tremulo llego a ti, vate sagrado !
Ayúdame a decir lo que tu fias sido,
Tu que á la tierra lusitana has dado
Lo que nunca le ha dado hombre nacido !
Párate, sombra : ci mi razoa oscura
Suspender deja un formidable velo,
Y déja me alentar en esta altura
Donde parece que nos mira el cielo.
Sepulcro colosal, mundo ignorado,
Dime como decir lo que tu has sido
Tii que á la tierra lusitana has dado
Lo que nunca le ha dado hombre nacido.
55
A Deputação
A deputação, satyra infelizmente perdida, e de que
apenas andam publicados alguns poucos versos, teve por
origem a denegação do indulto ao estudante José Car-
doso Vieira de Castro, quando, pela segunda vez, foi ris-
cado da Universidade. r
Elle havia sido expulso, por dois annos, em 1856, por
causa da falada investida da Saía dos Capellos. Voltou
á Universidade no anno lectivo de 1859-1860, matriculan-
do-se no 5.° anno juridico.
Voltava com o prestigio, que lhe daVa a sua nobre
independência, o seu ostracismo académico e também o
seu indisputável talento e grandes dotes de orador.
Basilio Alberto de Souza Pinto que, como professor,
tinha adquirido créditos de abalisado criminalista, havia,
mezes antes, sido nomeado reitor.
N'essa qualidade, encarnava todas as velharias dos
rigorismos universitários com os estudantes.
Por um edital, afixado logo no começo d'aquelle anno
lectivo, determinou o rigor dos trajes, isto é, a batina
completamente abotoada, o sapato e meia, o cabeção e
volta.
Nada de gravata^ de cores; nada de botas ou calças
cabidas sobre ellas, o que tudo, durante o doce regimen
do vice-reitor, José Ernesto de Carvalho e Rego, havia
sido tolerado e permittido.
54
Prohibiçào completa! Mudança rápida de costumes!
Mas Vieira de Castro, com a ousadia que lhe era pró-
pria, apresentou-se um dia na Universidade, com a calça
cabida sobre botas de elásticos com gáspeas de Verniz! . . .
Escândalo de lesa disciplina!
O guarda-mór, Basilio José Ferreira, em termos mais
ou menos inconvenientes, admoestou Vieira de Castro.
Este replicou-lhe logo com a palavra que é attribuida a
Cambrone, e cuja verdade histórica muito tem sido dis-
cutida.
O guarda-mór intimou-o a ir á presença do Reitor.
Vieira de Castro recusou-se.
D'ahi um conflicto, cujas proporções pode calcular
quem conheceu o génio violentíssimo do ardente man-
cebo, que depois veio a ser um grande infeliz!
Formado processo académico, foi, como reincidente,
expulso pela segunda Vez, e riscado perpetuamente! Pena
de morte académica, dizíamos nós!. . .
Tal condemnação, nas circumstancias em que foi pro-
ferida, e pelos precedentes do estudante expulso, desper-
tou as mais acerbas criticas dentro e fora da Academia.
O estudante do 5.° anno jurídico, Bernardo de Albu-
querque e Amaral (o respeitabilissimo lente jubilado, ainda
hoje felizmente vivo) escreveu, no jornal académico —
Estreia Litteraria — de que era redactor, um vehemente
artigo, criticando o accordão do Conselho dos Decanos,
demonstrando ao antigo professor de direito penal, presi-
sidente d'elles, os erros jurídicos da decisão; e concluindo
que, não se verificando as condições da reincidência, a
pena applicada era manifestamente illegal.
Não foram precisas reuniões.
Amigos de Vieira de Castro formularam logo um elo-
quente appello ao poder moderador, pedindo o indulto e
readmissão do talentoso estudante, cuja esperançosa car-
reira assim era, com tanta dureza, cortada.
Toda a Academia foi espontaneamente assignar a peti-
ção.
Também a assignaram os estudantinhos do Lyceu; e
55
foi esse o único acto, durante toda a nossa vida acadé-
mica, em que os caloiros do Paieo, como então se dizia,
foram chamados a compartilhar em um acto dos estudan-
tes da Universidade.
Mas a representação ao Rei, que era D. Pedro V,
não foi só assignada em Coimbra! Resolveram perfilhá-la
e assigná-la muitos homens de letras e jornalistas de Lis-
boa. Tudo quanto havia de mais notável, n'este paiz, a
assignou!
N'ella pozeram os seus nomes illustres: Alexandre
Herculano, António Feliciano de Castilho, Luiz Augusto
Rebello da Silva, José da Silva Mendes Leal, Raymundo
.António Bulhão Pato, António da Silva Tullio, António
Rodrigues Sampaio, LeVy Maria Jordão e muitos outros.
Mas o indulto foi negado! Tantas esperanças foram
malogradas!
A representação da Academia e dos homens de letras
e jornalistas foi indeferida!
O desgosto foi grande na Academia- Os resentimentos
profundos e duradoiros!
Manifestaram-se ainda no anno seguinte, quando D. Pe-
dro Ve seus irmãos, os infantes D. Luiz e D. João, foram
a Coimbra de passagem para o Porto. Foi a derradeira
vez, que ali foi.
Ao approximar-se a visita do Rei, alguns rapazes viram
]i'ella a seductora perspectiva d'alguns feriados.
Hão-de ser sempre assim! . . .
Mas para obter os feriados era preciso ir cumprimen-
tar o Rei. Prompto! É convocada uma assembléa geral,
no saudoso salão do Theatro Académico, para nomear a
commissão dos cumprimentos.
Reunida a assembléa geral, logo Vários oradores pedi-
ram a palavra.
Nenhum contestou que devesse ir cumprimentar-se o
Rei. Nenhum soltou para com elle qualquer phrase gros-
seira ou offensiva. Somente os oradores falavam em todos
os assumptos, menos n'aquelle para que havia sido convo-
cada a reunião.
56
Um falava no Velho e no Novo Testamento; outro»
fazia o elogio das tricanas de Coimbra; outro nos grandes
homens da Grécia e Roma; outro nos preços dos géneros
do mercado, acompanhados sempre os oradores por um
coro de gargalhadas.
Se algum tentava falar no assumpto para que fora
convocada a assembléa, era logo coberto de apoiadissi-
mos, cortado de interrupções, impedido de falar.
Um dos oradores, que mais se distinguiu, interrom-
pendo e promovendo a troça, foi Fausto de Queiroz
Guedes, que depois veio a ser o benemérito e generosís-
simo Visconde de Valmôr.
Reuniu-se segunda assembléa no dia seguinte. Repeti-
ram-se exactamente as mesmas scenas da véspera. Grande
bulha, grande risota !
Passaram-se alguns dias. A chegada do Rei aproxima-
va-se e conVocou-se então terceira assembléa, não já para
o salão, mas para o theatro da Academia.
Apresentou-se no palco e foi indicado para presidi-la o
estudante do 6." anno, Bernardo de Albuquerque e Ama-
ral, o mesmo que tão distincta attitude tinha tomado quando
foi riscado Vieira de Castro.
Esta circumstancia, a geral consideração e sympathia
de que gosava, pelo seu talento e seriedade de caracter,
e também algumas nobres e felizes palavras, que proferiu,
ao assumir a presidência, aplacaram os ânimos e impuze-
ram socego.
A assembléa correu plácida.
Decidiu-se nomear a commissão, mas não só para fazer
cumprimentos. DeViamos usar do direito de petição, que
era uma das garantias que nos estava consignada no que
então se chamava o sagrado paládio das nossas liberdades.
Não era indigno ! Era o uso dum direito ! Por isso a
commissão devia pedir :
1.° — A abolição da capa e batina, que era traje jesuí-
tico.
2."— A abolição do foro académico e concessão das
garantias do foro commum.
57
Os rapazes tiveram sempre a mania de querer ser jul-
gados pelas infracções de policia académica, que consti-
tuem contravenções, pela mesma forma, e no mesmo tri-
bunal, em que se julgam os vadios, os gatunos e os ladrões
de profissão !
Mas o caso é que aquellas deliberações foram tomadas.
João de Deus, que assistia á reunião em um camarote
de 1.''* ordem (ainda deve haver quem se lembre), por uma
das distracções, que lhe eram tão habituaes, pediu a pala-
vra, quando já tudo estava votado !
Ovação a João de Deus !
Viva João de Deus ! Viva o nosso João !
Acciamação geral ao grande poeta !
Mas vamo-nos embora, clamavam também ! Tudo está
decidido ! Vá a commissão e venham os feriados, que é o
que toda aquella bulha queria dizer !
João de Deus, com a notável veia satyrica que pos-
suía e espontaneidade genial, disse, nessa mesma noite,
em verso, o que queria dizer como orador. Escreveu a
sat>Ya A Deputação, jóia litteraria infelizmente perdida.
Delia se conservam apenas alguns versos publicados
pelo dr. Rodrigo Velloso, reproduzidos depois na penúl-
tima edição do Campo de Flores, os quaes quem escreve
estas linhas conservou de memoria.
Começava assim :
Ouvi, infância epidemica,
As tristes vozes do bardo,
Que resolve em papel pardo
Gritar contra a pepineira !
Teve logar a terceira
Das assembléas geraes,
E ouça o Mondego os meus ais,
Porque, em verdade, oh vergonha
Pois em quanto na Gasconha
Se estão nivelando os thronos.
Quer esta sucia de monos
Preparar real bexiga !
58
E, em verdade, que o diga
O Albuquerque, que é fino, (1)
P'ra pedir ao deus-menino
A reforma da cadeia !
Mas, oh mancebos ! que ideia
Não farão de nós lá fora,
Ao saber que isso já agora
Não é ao rei que pertence.
Para o que bastará só
Da Carta do pae-avô.
Artigo 13 que diz :
«Julgar pertence ao juiz
«E legislar á nação !»
CondemnaVa depois que se fizessem pedidos ao Rei.
quando elle nos tinlia indeferido um pedido santo e justo !
Dizia :
«E não Íamos nós sós !
< Pois em nossa companhia
< Ia quanto era poesia
«E quanto era prosa também !
«Ia o pae d'aquelia pequena
«Que metteu frade o Eurico (2)
«E o que na Ilha do Pico (3)
«Ensinava agricultura !
«Ia, em summa, quanta figura
«Quiz entrar nessa comedia !
«Quando nós, na face nédia
«D'este pachá de Janina,
«Quizemos Ver se a botina
«Era lesa-magestade !
(1) Referencia a Bernardo de Albuquerque, presidente da 3.'
assembléa geral.
(2) Refere-se a Alexandre Herculano, que creou a Hermengarda
do romance Eurico.
(3) Refere-se a António Feliciano de Castilho, que escreveu nos
Açores A Felicidade pela Agricultura.
59
«E ninguém nos disse :
«Volte o borrego ao rebanho,
«E esse zagal d'arreganho,
«Que ande, se quer, de sandálias.
<íO cothurno é das Italias !
«E com Veste roçagante,
<'É além de mais galarite,
«Mais decente que o chinello !
'Tão decente que o marmelo
"Do Camões já lá dizia :
<'É assumpto, musa fria.
«De cothurno e não de sócco.
«Mostrando n'isto em quão pouco
«Tinha o clássico chinello
«Destes pegas de capêllo,
Cabeças de tapadoura.
Conheci esta satyra — .4 Deputação —pov m"a haver
mostrado Anthero de Quental. Copiei-a e restitui-a.
Tendo divulgado muitas das poesias de João de Deus,
algumas inéditas, conservei essa comigo, durante largos
annos, por uma espécie de avareza litteraria.
Tal era o apreço em que a tinha ! O arrependimento,
que disso tenho tido, tem-me sido severo castigo.
Desappareceu-me em alguma das mudanças de terra,
a que fui obrigado pelas exigências da vida official, ou no
quasi naufrágio, que soffreram os meus papeis e livros.
Transportados em um navio de vela, tal foi o temporal
que este soffreu que chegou a ser abandonado pela tripu-
lação, e foi a própria tempestade que o metteu dentro do
porto ! Mas toda a carga ficou avariada !
Também me desappareceu a Lata, tal como primitiva-
mente havia sido escripta. Foi também Anthero que m'a
60
emprestou; e continha mais estrophes de que as que an-
dam publicadas.
Julguei que podia readquirir a Deputação, visto que
apenas tinha possuido uma copia. Foi-me impossível.
Recorrendo ao meu amigo muito querido, João de
Sousa Vilhena —o integro e inquebrantável magistrado que
falleceu juiz de uma vara eivei de Lisboa — , companheiro
dedicadíssimo e admirador apaixonado de João de Deus;
recorrendo a José Sampaio e a Frederico Philemon, com-
panheiros de Anthero e que, como eu, haviam tido a De-
putação em suas mãos, já não se lembravam !
Desesperando de a encontrar, dei a outro dedicado e
bondosíssimo companheiro de mocidade, Rodrigo Velloso,
cujo amor pelas boas lettras nunca se apagou até os seus
últimos momentos, os Versos que sabia de cór.
Publicou-os elle na sua interessante Bibliotkeca da
Aurora do Cavado; e d'ahi passaram para a penúltima
edição do Campo de Flores, mas sem a historia que é
indispensável para bem comprehender a engraçadissima
composição.
Cabe-me fazê-la agora a mim, o ultimo e mais obscuro
dos amigos e admiradores de João de Deus.
II
Os Pires de Marmelada
Fui copista e Vulgarisador dos Pires de Marmelada.
Ainda a famosa e formosa satyra não tinha acabado
de nascer, ainda não estava toda escripta, e já eu conhe-
61
cia a parte dada á luz e a copiava e decorava ! Com mais
facilidade — acreditem — do que todas as cousas de álge-
bra e geometria, com que andava atrapalhado para fazer
o meu ultimo exame de caloiro e poder entrar na Uni-
versidade.
Corre agora na edição do Campo de Flores, coorde-
nada pelo Sr. Theophilo Braga, com variantes, que des-
toam dos primitivos Versos, taes como ainda os conservo
na minha memoria.
Parecem-me menos felizes essas variantes, como tan-
tas outras dos versos do divino poeta, atrevo-me a dizer.
João de Deus era um pródigo das suas preciosíssimas
jóias poéticas ! Anthero não era menos pródigo !
Um e outro, muitas vezes, logo em seguida á sua fei-
tura, ou passado pouco tempo, rasgavam ou queimavam
formosas producções do seu engenho, porque não satis-
faziam ao seu ideal de belleza.
Outras vezes as abandonavam ou perdiam! Foram sal-
vas muitas, porque quando elles as rasgavam, já estavam
copiadas.
João de Deus nem mesmo era muitas vezes quem
escrevia oè seus versos; escreviam-nos os amigos a quem
os recitava no calor e borbulhar de inspiração.
Foi assim, por esta forma, que foram escriptos por Gui-
marães Fonseca — um mimoso talento litterario, já então
revelado — , em julho de 1860, os Pifes de Marmelada,
em uma casa da Rua dos Militares, quasi em frente dos
Lázaros, que, creio, é a terceira, a contar da que faz
esquina para a Rua do Guedes, com entrada por esta
rua, onde eu morava. Estreitas como são as intermediarias,
podia falar-se de janella para janella !
Tinha aquella então o n." 42. E digo que tinha este
numero, porque é com elle que vem designada, na pauta
62
ou relação dos estudantes d'esse anno, a morada de Antó-
nio Joaquim da Fonseca Pinto, meu condiscipulo no Lyceu,
rapaz muito ligado a todos os amigos de João de Deus^
especialmente a Guimarães Fonseca, que n'essa epocha
do anno, também ali morava.
João de Deus não tinha residido n'essa casa, mas
para ella foi viver nas ultimas semanas d'esse anno lectivo.
Com amigos e admiradores, que disputavam a sua
companhia, tinha Varias casas. Onde mais residiu n'esse
anno, foi na Rua da Trindade, n.° 30, com João de Sousa
Vilhena.
Também morou na Rua de S. Jeronymo, n.° 6, com
outros rapazes, sendo um d'estes o estudante de theolo-
gia, cujo R, que levou no acto do 1.° anno, motivou a
satyra.
Tendo partido para férias todos os seus companheiros
da Rua de S. Jeronymo, foi João de Deus para a casa da
Rua dos Militares, onde chegou sob a impressão da injus-
tiça feita ao seu amigo.
A satyra, como se sabe, teve por Victima o lente de
theologia, antigo frade crusio, D. Victorino da Conceição
Rebello, a quem os estudantes puzeram a alcunha de
Besta Sagrada e também a do Marmelada!
Como ao Conde de Santa Maria eram-lhe attribuidas
bernardices e necedades imaginarias !
Foi o caso que Jayme Cardoso de Gouveia Corte-
Real, que era um dos rapazes que morava na Rua de
S. Jeronymo, n.® 6 leVou um R (foi só um R, e não repro-
vação) no primeiro anno de theologia.
Attribuiram essa macula académica á ousadia de ir fa-
zer acto, não de cara rapada — cara ecclesiastica, então,
— mas com bigode, o que era contrario ás praxes dos que
se dedicavam ás sagradas letras e se destinavam á Vida
clerical.
65
O bom do rapaz não queria segui-la. Frequentava theo-
logia, porque faltando-lhe um exame, quiz gozar as hon-
ras de estudante da Universidade.
Devia por isso estar bastante falho nas letras sagradas.
João de Deus, magoado com o que julgou uma injus-
tiça e uma affronta ao seu companheiro e amigo (hoje não
dão tanta importância a um simples R) compôz a satyra.
Compô-la, ora passeando, ora deitado na cama!
Guimarães Fonseca escrevia.
Era, como já disse, em julho ! Julho tropical de Coim-
bra! João de Deus nunca sahia de dia por causa do calor e
parece que também pela pouca riqueza do seu guarda-roupa!
A sua batina — que as leis académicas já lhe não per-
mittiam usar — estava no estado em que, muitos mezes
antes, apparece com a manga rasgada, no retrato que
publicamos, tirado por José Alfredo da Camará Leme
(que foi conservador em Vianna do Castello) em um
pequeno quintal da primeira casa, que fica á esquerda,
descendo a ladeira do Arco do Castello.
Só sahia á noite, ordinariamente em passeio até ao
Penedo da Saudade, vestindo uma forte japona, uma ja-
queta de pelles. . . em julho !
Guimarães Fonseca, por essa occasiào, nem de dia,
nem de noite, punha os pés na rua! Vivia sob a ameaça
do chicote de um outro estudante — mais tarde muito res-^
peitavel e muito calvo desembargador, — de quem tinha
flagellado, em um folhetim do Purgatório, jornal por-
tuense, umas infelizes primícias litterarias, as quaes o
outro dizia — e era verdade — que só se animou a publicar,
instigado pelos louvores e auctoridade do Fonsequinha!
Era assim que lhe chamávamos.
Timido e nervoso, só se arriscava a ir até á minha casa,
onde tinha amigos, depois de se annunciar da janella e de
explorados os arredores, obtidas que fosse a segurança
de estar longe o perigo do conflicto (1).
(1) Veja-se a nota no fim.
• 64
Então sim! Elle ahi vinha, sorridente e triumphante,
com os versos de João de Deus, como que ainda quentes
do bafo da inspiração !
Por esta forma conheci e copiei a deh'ciosa satyra,
quando ainda apenas estava composta a primeira parte até
aos versos que dizem:
Lê o propheta Abacuc!
E lá Verás na passagem,
D'este grande personagem,
Se isto assim foi! Continuo:
Agora, na citada edição do Campo de Flores, a pala-
vra passagem está substituida por linguagem; e a satyra
não tinha a divisão de 1.° e 2.^ Pires, rimando a ultima
palavra continuo com o verso seguinte:
Eu dava quanto possuo
Por ter a fronte rasgada;
Veio logo depois toda a satyra. Toda vulgarizei por
algumas copias e principalmente pela recitação, que a cada
passo me era imposta.
G5
João de Deus e a Academia de seu tempo
Desde os meus primeiros tempos de Coimbra até que
terminei o meu curso juridico, versos do divino poeta, que
■cahissem debaixo dos meus ollios, inéditos ou publicados,
copiava-os ou fixava-os na memoria.
João de Deus e os seus Versos foram uma das maiores
paixões da miniia mocidade.
Foi no Echo do Lima, logo depois da minha forma-
tura, que, em 1866, abri o meu guarda-joias, começando
a publicar estas! (1).
Além das especialmente indicadas, o Sr. Theophilo
Braga, no Escorço Biographico de João de Deus, con-
fere ao modesto jornal limiense a honra de n'elle haverem
sido publicadas, pela primeira vez: A Pomba (que são,
talvez, os primeiros versos do poeta), A. L. C, A visi-
nha do 4° andar, A. . ., Desanimo, De lacto e Sonho.
Publiquei o soneto, ainda inédito, que se encontra a
paginas 163 da edição, já referida, do Campo de Flores,
com o titulo Num romance, e cujo primitivo titulo, se-
gundo o meu velho caderno, era:
MARGARIDA
(La dame aiix camélias)
(1) Veja-se a nota.
66
Tinha antes, no n.^ 7 do saudoso jornal, publicado^
acompanhado de um folhetim, consagrado ãjoão de Deus^
a formosíssima poesia, ainda então inédita, chamada La-^
grima Celeste, a qual aqui vou reproduzir, porque se
encontra no Campo de Flores com variantes em muitos
Versos, que vão notados com o signal *, e com a omissão,
de uma quadra, que vae em itálico:
Lagrima celeste,
Pérola do mar,
O que me fizeste
Para me encantar ?
Quando o néctar chora
Que se lhe introduz
Ao romper da aurora,
E ao nascer da luz I
Ah I se tu não fosses.
Lagrima do céu !
Lagrimas tão doces
Não chorara eu.
Por entre a folhagem
Onde mal se vê,
Como eu vejo a imagem-
Da que eu adorei!
Se eu nunca te visse,
Bonina do vai,
Talvez não sentisse
Nunca dôr egual.
Que esta Voz te enleve
Que este adeus lá sôe
Que o senhor te leve,
Que Deus te abençoe-I
* Pomba extraviada, (')
Que é dos filhos teus!
Luz da madrugada,
Luz dos olhos meus !
Que o Senhor te diga
Se te adoro ou não.
Minha doce amiga
Do meu coração 1
Meu suspiro eterno,
Meu eterno amor,
D'um olhar mais terno
Que o abrir da flor.
Se de ti me esqueço
Se já me esqueci,
Se mais céu lhe peço
Que o de ver-te a ti.
Cl) Pomba debandada está no Campo das Flores .' Náo posso>
aplaudir esta variante !
67
A ti que amo tanto E a campa o cypreste,
Como a flor a luz, E a rola o seu par. ■ •
Como a ave o canto. Lagrima celeste I
Jesus Christo a cruz 1 Pérola do mar !
Publicou depois o Echo do Lima muitas outras poe-
sias do divino lyrico só conhecidas dos leitores dos jor-
naes litterarios de Coimbra.
O sr. Theophilo Braga, no citado Escorço Biogra-
phico, que precede o notável livro, que se intitula— O
Festival de João de Deus (pag. xvi, xxi, xxiii) por
três vezes honra o jornal limiense e o ^eu obscuro redac-
tor, mencionando o nome deste entre os dos maiores
admiradores de João de Deus, e um dos seus coleccio-
nadores e vulgarisadores !
Éramos muitos.
E' que João de Deus é — e será sempre — uma das
maiores glorias da Academia conimbricense !
Ligado intimamente a ella. continuou sempre a perten-
cer-lhe! Continuou a ser estudante quando já não era
estudante!
Formado no anno lectivo de 1858 a 1859, só em 1861
é que desappareceu de Coimbra!
Confinou-se então na sua terra natalícia, ou nas pro-
ximidades, lá para o sul.
Mas a sua alma continuou a viver na academia de
Coimbra !
A sua lenda de poeta e de artista lá é que existia !
O facho luminoso do seu génio lá é que mais ardia e
mais deslumbrava!
O seu novo lyrismo falava ao coração da mocidade!
Era neste que ficaram como que depositados os seus
versos tão novos e tão sublimes!
Era ella, -a mocidade, que bem os entendia! Era essa
mocidade que tinha de espaihá-los !
68
Como Homero, João de Deus era um divino! E não
era só no génio que o lyrico português tinha de asseme-
Ihar-se ao grande poeta grego.
itáefFiUoj^
Como os rapsodes ou homerides; como esses canto-
res ambulantes, que foram os que tornaram conhecidos os
versos do divino épico, levando-os a todas as ilhas e cida-
des da Grécia, os contemporâneos de João de Deus, em
69
Coimbra, foram também, na phrase de um escriptor illus-
tre, as edições vivas que espalharam o seu novo lyrismo
por todas as terras do paiz !
Essa luz, tão suave e tão intensa de poesia, irradia do
centro !
Surge em Coimbra nos Prelúdios Litterarios, na £5-
treia Litteraria, no Académico, no Atheneu e no Phos-
foro.
Depois, de norte a sul, no Século 19 (de Penafiel), no
Echo do Lima, no Bejense, na Folha do Sul.
E' por esses jornaes, publicados em províncias distan-
tes, que o poeta recebe a consagração, que lhe era de-
vida! Que adquire novos e apaixonados admiradores! E
que os seus versos se tornam conhecidos.
E' pela reproducçào da publicidade da província que as
suas principaes composições poéticas appareceram depois
na capital do paiz !
Os laços que prenderam João de Deus a Coimbra e á
sua Academia são imperecíveis!
Hão-de sempre existir !
E' o coração da mocidade, que lá lhe ha-de render
eterno culto !
São os doutores e os capêllos das suas satyras !
São pessoas que lá' viveram e já não existem, e cou-
sas que sempre hão-de existir!
E' o Mondego, o Penedo da Saudade, a Fonte dos
Amores e o Penedo da Meditação!
É a janella do Occidente, que tem tão melancholica
referencia na sentidíssima elegia a Rachel Nazareth ! Ja-
nella que fica a uma esquina da Rua da Sophia e se
debruça sobre a travessa, que d'ella parte.
É o Convento de Santa The reza, ao qual anda ligada a
lenda de uns amores, não sei se verdadeiros se phantasticos,
70
a que foram attribuidos os formosíssimos Versos da Noite
de Amores:
Mimosa noite de ritnôres !
Mimoso leito de flores !
Mimosos, languidos ais!
A poetisa da Carta Anonyma julgou (e talvez tivesse
motivo para julgar. . .) que os amores, a que os versos se
referem, eram verdadeiros e que foi profanado o segredo
d'elles! O poeta, em versos sublimes, veio affirmar que
eram phantasticos !
Sempre ouvi dizer que a poetisa da Carta Anonyma
era uma talentosa mulher, de uma família fidalga da Beira,
D. Marianna Povoas, dotada de nobre coração e nobre
caracter, segundo me disse, muitas vezes, um meu sau-
doso amigo, que foi ornamento distinctissimo da magistra-
tura do seu tempo, o qual a conheceu e com ella tratou !
Deve a litteratura a essa iilustre dama os Versos subli-
mes da resposta de João de Deus, que se encontra a
fl. 10 do Campo de Flores, sob o titulo:
Resposta á minha bella incógnita... censora
Primitivamente tinha este :
Resposta á minJia bella incógnita inimiga . . .
Ech. e Narc.
Sim; deve-se á incógnita poetisa da Carta Anonyma
o ter inspirado a mais linda quadra que os meus olhos le-
ram na lingua portugueza :
Quando a mão de um innocente
Pede a estrella que o seduz, (1)
Ninguém ha tão inclemente,
Que no ceu lhe apague a luz!
(1) No Campo de Flores, foi substituída no segundo verso a pala-
vra Pede pela palavra Quer. Prefiro aquella!
71
Só podia ser composta esta quadra no Penedo da Sau-
'dade olhando o poeta para o oiro e azul do firmamento !
É lá, é em Coimbra, que a João de Deus devia ser
erigido o seu monumento !
Que mais?. . . Não sei dizer mais. . . Que me perdoe
a alma gentil do divino vate e a sua immortal memoria este
pobre tributo de uma admiração que nem o largo tracto
prosaico dos negócios, nem o gelo dos annos poderam
nunca arrefecer e extinguir!
NOTA 1."
Francisco Guimarães Fonseca
A memoria deste pobre companheiro da mocidade, tão distincto-
e tão infeliz, reclama algumas linhas !
Era natural de Guimarães. No anno lectivo de 1859 a 1860 havia
frequentado o primeiro anno philosofico, mas na occasião em que ser-
viu de secretario a João de Deus, na feitura dos Pires, preparava-se
para fazer um exame, que lhe faltava para seguir o curso jurídico,
em que, no anno seguinte e nos outros, até o fim do 4.° anno, fomos
condiscípulos.
O estudante, que queria tirar atroz vingança da sua mordaz caus-
ticidade litteraria era um nosso comprovinciano minhoto, de nome
Acácio de Carvalho Fontes, que morreu juiz da Relação do Porto.
O folhetim do Purgatório, que era o corpo de delicio da malfei-
toria do pobre Guimarães Fonseca, intitulava-se Acacius Robur.
Baixo, franzino, peito curvo, farta cabeleira annelada não escura,
emquadrando uma larga testa e um alvo rosto, em que brilhavam olhos
de um azul claro, com lábios finos, em que bailava o perenne sorriso
da ironia, Guimarães Fonseca era, em todo o seu phisico, attraente,
distincto e muito sympathico.
Interessantíssimo conversador, quando encolhia os hombros e
inclinava a cabeça para um lado, como era gesto seu habitual, a oerve
e a graça esfusiavam.
Tinha um mimoso talento litterario comprovado nos Prelúdios
Litterarios, no Académico, no Phosforo, no Tira-Teimas, no Atti-
la, e outros jornaes litterarios e políticos de Coimbra e de fora de
Coimbra.
Uma grande espontaniedade no verso e a sua prosa era um
encanto !
Bastará lêr um largo escripto, em prosa e verso, que denominou
A Virtude de dous Anjos, e se encontra desde o n.° 3 até o n.° 14
d'aquelle ultimo jornal litterario.
Sendo muito inteligente, nunca foi capaz de disciplinar a sua
vontade para o estudo de questões positivas, alheias á litteratura.
Não tendo podido conseguir approvação no 4.° anno, foi para o
Brazil, onde se dedicou ao jornalismo. Não foi feliz. Regressando,
74
obteve um logar de amanuense em una secretaria do Estado, e,
durante um certo período, appareceu, nos principaes jornaes de Lis-
boa, a sua brilhante colaboração litteraria.
Uma vida desordenada de bohemio apa'^ou-llie o espirito e des-
pedaçou-lhe o corpo! Luctou com a doença e com a pobresa; e teria
morrido ao abandono e na mais extrema penúria, se lhe não valesse
a bondosa alma de um outro condiscípulo nosso, Luiz Jardim, Conde
de Valenças.
Honra seja á sua memoria !
Parece que o destino caprichou em tornar negro o futuro de um
rapaz que, pelo talento, se nos antolhava áureo e brilhante!
75
NOTA 2.:'
O "Echo do Lima,, e António de Magalhães Barros
E pois que falei no saudoso jornal, onde foram divulgados muitos
versos de Joào de Deus, vou consagrar-lhe algumas palavras.
Era bisemanal, tendo sahido o primeiro numero em 12 de agosto
de 1866.
O Echo do Lima foi destinado a ser órgão dos interesses locaes
e de um grupo de políticos do concelho, que eram adversários da
politica de Fontes Pereira de Mello, então no poder.
Estes foram os seus intuitos ao crear-se.
Quanto á politica de princípios, os seus redactores — que tinham
por único estipendio o prazer de expor as suas convicções — gozavam
de toda a independência e liberdade.
Aqueile grupo local tinha por cabeça e alma um moço advogado,
morto infelizmente em 1888, em pleno Vigor da vida, deixando uma
perenne saudade no coração de
todos que com elle trataram.
Era a individualidade, supe-
riormente sympathica, de António
de Magalhães Barros de Araújo
Queiroz. Formado aos vinte e um
annos, em 1859, teve por condis-
cípulos João de Deus e José Dias
Ferreira.
Por aquella épocha era já
advogado famoso pelo saber, pelo
desprendimento de interesses,
pela bondade angélica e inesgo-
tável, com que a todos servia,
com que zelava os direitos e in-
teresses de todos, esquecendo-se
somente dos seus I
Era homem para tudo na sua António de Magalhães Barros
76
terra e amou-a tanto; tanto se prendeu aos negócios delia e dos
seus amigos, que nunca de lá o deixaram sahir !
Depois de formado só uma vez pôde ir ao Porto !
Pôde sempre dizer, como Thomaz Ribeiro, aquelle verso do-
D. Jayme, que continha uma verdade, quando o poeta o escreveu :
Eu nunca vi Lisboa e tenho pena !
Era dotado de uma distincta intelligencia, de uma feliz e rara
memoria, mas tinha um coração ainda maior!
Fui dos que mais o amaram ! Entrando pela sua mão em Coim-
bra pela primeira vez, fui como que a pedra de toque dos raros qui-^
lates da sua bondade !
Teve o Echo do Lima por seus redactores, quando se fundou, o
Dr. Francisco Roberto de Magalhães Barros, actualmente juiz de
2.* instancia aposentado, irmão d'aquelle nosso querido amigo e quem
escreve estas linhas, formados no anno anterior, e ligados por fra-
ternal amisade desde os seus primeiros annos.
Temperamentos differentes, completavam-se um pelo outro.
Se um tinha a intelligencia, a frieza e o bom senso, tinha o outro
a paixão e a impetuosidade.
Era correspondente do jornal, em Lisboa, escrevendo em todos
os números uma carta — cartas politicas no fundo e litterarias na
forma - - o Dr. Alberto Telles de Utra Machado (hoje chefe de repar-
tição no Ministério da Justiça) distincto homem de letras, e, desde
a Universidade, amigo dos seus redactores.
Alves Matheus, o glorioso orador sagrado, e Manuel Penha For-
tuna, amigo e condiscípulo de António de Magalhães, quizeram ma-
nifestar a sua sympathia pelo incipiente jornal e pela sua redacção,
mandando para elle alguns artigos.
José Caldas, hoje grande escriptor pelo talento e pela erudição,
e já então primoroso e promettedor cultor das boas letras, nossa
amigo e companheiro de mocidade, honrou o Echo com a sua coUa-
boraçâo.
O jornal fez fortuna em popularidade e concorreu para con-
quistar para o grupo valiosas adhesões.
Fez rude e intransigente opposição ao ministério, que governou
desde setembro de 1865 a janeiro de 186S, de que era alma Fontes
Pereira de Mello, e foi um dos que, no norte do paiz, preparou a
opinião para o movimento pacifico do 1.° de janeiro de 186S.
Honra-se, ainda hoje, quem escreve estas linhas da pequena
parte, que teve n'essa campanha !
Anthero de Quental
. . .agradeço como um dos muitos dilectos amigos do
defuncto a homenagem posthuma que lhe conferem,
e digo muitos, porque o numero d'elles conta-se pelo
dos que no breve decurso da sua vida, sempre angus-
tiada, tiveram a fortuna de conhecer de perto a candura
quasi santa da sua alma, a nobreza extrema do seu sen-
tir e a lucidez cristalina da sua ideia.
(Oliveira Martins, Officio á Camará de Ponta Delgada).
Do poeta e do pensador falam os seus versos e os
seus escriptos:
Do homem, porém, é preciso que fale o coração dos
seus amigos.
Luiz de Magalhães, In Mem.
Anthero Tarquinio de Quental, que este é o seu nome
nos registos universitários, nasceu na cidade de Ponta
Delgada em 18 de abril de 1842.
Era filho de Fernando de Quental, que deixou fama de
homem muito intelligente e espirituosíssimo, o qual, aos
17 annos, se alistou soldado-cadete na expedição liberal,
que da sua terra se dirigia ao Porto e foi um dos 7500
soldados d'ella; e era neto do celebre morgado André
Ponte de Quental da Camará e Souza, poeta e homem de
letras, amigo e companheiro de Bocage, que, nas cortes
constituintes, que se seguiram á revolução de 1820, foi de-
putado pela ilha de S. Miguel.
78
Por sua màe, D. Anna Guilhermina Maia, procedia
de uma distincta familia de Thomar, em que houve magis-
trados iilustres, sendo neto do respeitadíssimo desem-
bardor Anthero José de Maia e Silva, do qual herdou o
nome.
Provinha, pelo lado paterno, de uma das mais nobres e
antigas famílias açorianas e de uma fidalga familia da ilha
da Madeira, á qual pertencia sua avó.
Tinha também na sua familia a nobreza intellectual de
Frei Simão de Novaes, fundador do Convento da Praia,
na Ilha Terceira; e de Frei Bartholomeu de Quental, fun-
dador da Congregação do Oratório, primoroso escriptor
místico e grande orador sagrado, pregador da Casa e Ca-
pella Real, que o sr. Joaquim de Vasconcellos, fundado
em Barbosa Machado e outros, diz que, por seus talentos
e virtudes, não teve menor importância que o padre An
tonio Vieira. (1)
Vindo muito novo para um collegío de Lisboa, matri-
culou-se, em outubro de 1858, tendo desaseis annos, no
primeiro anno jurídico.
Sem me aproximar d'elle, porque o não permittia a
minha humildade de estudante recentemente chegado, pela
(1) Veja-se, no In Memoriam, o Esboço Genealógico por Ernesto
do Canto e o artigo do Visconde de Faria e Maia.
O illustre genealogista, o sr. José de Azevedo e Menezes, escre-
veu o seguinte:
«A familia de Anthero é de origem francesa, e o primeiro portu-
«guez que usou o appelido de Quental foi Francisco Botelho de No-
«vaes, pae de D. Maria de Novaes Quental, dama da rainha D. Isabel,
«mulher de D. Affonso V.
'D. Maria casou com Ambrósio Alvares Homem de Vasconcellos,
«muito illustre por nascimento e pae de quatro filhos, que o fizeram
«feliz. Um d'elles Simão de Novaes, foi frade franciscano e fundador
«do Convento da Praia, na Ilha Terceira. (In Memoriam, Apêndices).
79
primeira vez, a Coimbra, iembro-me bem da sua figura
d'essa épocha.
Com os seus cabelios de ouro e um colete verde a
Anthero de Quental, 1864
querer fugir-lhe da batina negra pelo pescoço e pelo peito,
alegre, inquieto, Vivo como uma travessa creança!
Mas porque é que ainda hoje — dirão — não conservas
o acanhamento de outr'ora, e ousas pôr mão profana em.
80
assumpto tão delicado e sagrado, qual o da memoria do
altissimo poeta e profundo pensador, que foi Anthero de
Quental?
Não ouso, não!
Quero apenas trazer aos seus admiradores uma pe-
quena contribuição de factos ignorados ou esquecidos
Quero offerecer-lhes algumas lembranças, que o cora-
ção, mais que a memoria, guardou.
Não é um artigo que escrevo, é um depoimento de
factos pessoaes ou presenciaes.
Sou como que um rude e bem fraco operário, que
traz nos braços uma pequena pedra tosca para o gran-
dioso edificio, que ha a levantar á sua memoria !
11
Os companheiros e amigos de Anthero
Elle tinha em Coimbra um tio paterno, personalidade
muito distincta e bondosa, que, quando Anthero se matri-
culou no primeiro anno jurídico, frequentava o 5.^ anno
de medicina e foi depois professor d'essa faculdade.
Era Filippe de Quental. Só nos primeiros annos viveu
em casa do tio. Ahi continuou sempre a ser a sua morada
para os registos e effeitos académicos. Mas onde elle ti-
nha quarto, cama e meza era na casa onde moravam José e
Alberto da Cunha Sampaio.
Não sei bem desde quando este facto começou a exis-
tir. Parece-me que foi desde o anno lectivo de 1861 a
.1862, em que José da Cunha Sampaio, que havia sido ris
81
cado por causa de uma desordem com caloiros, voltou á
Universidade entrando no meu curso.
Estávamos no segundo anno d^elie. Eram também com-
panheiros na mesma casa, Frederico Philemon da Silva
Avelino, de Lisboa, e Eduardo de Andrade, de Foscôa.
Mas porque é que
Anthero deixou a com-
panhia do tio e foi para
a d'aquelles rapazes?
Foi por azedume ou
dissentimentos, que os
separassem?
Não. Eram incom-
patíveis com a tole-
rante bondade e reci-
proca affectuosidade de
ambos.
Nenhuma nuvem tol-
dou nunca a pureza do
affecto entre elles.
E' que Filippe era
tio e os dois Sampaios
eram os seus irmãos !
Elle e Alberto Sam-
paio e Germano Mey-
relles eram como aquelles gémeos siamezes, que não po-
diam separar-se e o que um sentia era o que sentia e sof-
fria o outro.
Posto não vivesse na mesma casa com Germano,
constantemente se viam juntos, de dia e de noite.
Alberto Sampaio era o seu companheiro e confidente
nas letras; era bem o seu irmão pela capacidade intele-
ctual, pelo caracter e pela bondade de coração.
Já então se entregava a sérios estudos económicos e
se revelava o futuro erudito escriptor da Portugália e o
auctor do notabilissimo livro, que se intitula As Villas do
Norte de Portugal. Nunca teve por familia senão o irmão
e os filhos de seu irmão! Um sábio e um santo!
6
meKTOSMStji, í\.
Alberto Sampaio
82
Germano Meyrelles, intelligencia superior, talento vi-
víssimo, era, em todo o seu ser, originalíssimo!
Baixo, magro, olhos viVos, beiços finos, cara peque-
nina, sem barba e povoada de um ligeiro velo claro, grande
mobilidade de physionomia, havia n'elle alguma cousa que
fazia lembrar um pequenino rato!
Aleijado dos pés, que tinha como que amputados e
voltados para traz, o que o fazia caminhar com difficui-
dade, ondeante, vivia como que em guerra com a natu-
reza, que havia tido com elle aquella enorme crueldade!
Era azedo, desdenhoso, sarcástico!
Um sarcasmo vivo e em pé! Palavra fácil, vibrante,
ousadíssima, como a sua penna! Secco no trato, não tinha
a communicativa bondade de Anthero e Alberto Sampaio.
José da Cunha Sampaio, que era o mais velho, era o
chefe. Chefe de Alberto, de Anthero e dos outros compa-
nheiros de casa. E não era só d'elles.
A outros estendia o seu ascendente de irmão mais Ve-
lho, muito querido e respeitado.
Esse José Sampaio, de olhar melancholico, testa alva
e altíssima, donde sabiam abundantes cabellos de ébano,
com o rosto ornado de fina e formosa barba negra, typo
de homem com linhas de raça árabe, era dotado de uma
clara intelligencia e de um espirito muito ponderado.
Era uma das mais sympathicas figuras da academia.
A sua alma tinha ainda maior nobresa do que o seu corpo.
Era já então e foi, durante a sua vida, um espelho mo-
ral a que podiam compôr-se os que quizessem ser dignos.
Estes eram como que a familia de Anthero.
85
Mas muitos outros frequentavam a casa, e viviam liga-
dos a eile pela communhão das letras, ou peia amisade.
Eram: José Falcão, António de Azevedo Castello-
Branco, Santos Valente, Anselmo de Andrade, Francisco
Machado de Faria e Maia, Alberto Telles de Utra-Ma-
chado, Florido Telles de Vasconcelios, Marianno Machado
de Faria e Maia, Philomeno da Camará, João de Sousa
Vilhena, João Lobo
de Moura, Guimarães
Fonseca, Theofilo
Braga, João Machado
de Faria e Maia, Fer-
nando Rocha, Manoel
de Arriaga, José Leite
Monteiro, José Ber-
nardino de Abreu
Gouveia e Raymundo
Capella, que são os
que agora me lembro.
As relações com
Guilherme de Vascon-
celios Abreu, então
militar e estudante de
mathematica, e com
Eça de Queiroz, só
começaram mais tar-
de e em épocha a que
ainda me referirei.
Além daquelles,
cujos nomes citei, ha-
via a plebe dos admiradores, os que nos diziamos solda-
dos do seu ideal de Justiça, e que lhe não votávamos um
menos quente affecto.
José da Cunha Sampaio, IS65
Anthero tinha também já então admiradores nas outras
escolas do paiz.
84
Quando, em 1864, arrastados pela sua palavra, por
occasião da Rolinada, fomos em êxodo para o Porto,
viveu lá sempre rodeado dos mais distinctos estudantes
portuenses.
Alexandre da Conceição, Custodio Duarte e Manoel
Duarte de Almeida viam-se sempre juncto d'elle.
Entào conheci, de vista, os dois primeiros, dos quaes
depois fui amigo.
Os irmãos, Custodio Duarte e Manoel Duarte, seques-
traram-no, levando-o e a António de Azevedo Castello-
Branco, que estavam hospedados na Hospedaria Esta-
nislauy na Batalha, para a casa em que viviam.
II
Anthero e Filippe de Quental. Uma grave doença.
Foi no inverno do anno lectivo de 1863 a 1864 — pa-
rece-me que em dezembro ou janeiro — que tive occasião
de conhecer a affectuosa ternura, que ligava os dois.
Marco aquelles dois meses desse anno, porque na pri-
meira epocha d'elle, Alberto Sampaio, pela atracção pelo
irmão e por Anthero, ainda esteve em Coimbra sob pre-
texto de frequentar uma cadeira do curso administrativo;
e, quando se passou o que vou contar, já não estava.
Chamado pela mãe, tinha ido para junto d'ella. Não
tive a honra de conhecer essa senhora, mas ella devia ter
as Virtudes da mãe dos Gracchos.
Ausente de Coimbra, Alberto achava-se na honrada
casa de Boamcnce, em S. Christovào de Cabeçudos (Fa-
85
malicào), onde nasceu José, e onde depois quando residia
em Villa do Conde, Anthero tinha um quarto, que só a elie
pertencia e sempre preparado para recebê-lo.
(Alberto nasceu em Guimarães).
Viviam, n'esse anno, Anthero e seus companheiros na
rua da Trindade n." 16.
E' a chamada casa da ilha, porque fica isolada, sendo
cortada pela rua dos Militares e pelo prolongamento da
rua do Borralho.
Anthero sentiu-se doente e teVe de recolher-se á cama.
Julgaram os companheiros que seria uma grande consti-
pação, filha de resfriamento e proveniente este da falta
de cuidados, que tinha com a saúde.
Inda assim, foi participado o seu estado a Filippe de
Quental. Este veiu, como medico, vêr o enfermo.
Assisti á visita. Foi no começo da noite, depois do
toque da cabra.
O tratamento, que entre si se daVam era o de uma
intimidade de irmãos, ou, melhor ainda, de entre pae e
filho com muita ternura e desusada confiança.
Anthero — com a sua doce voz que nunca mais esque-
ceu a quem se acostumou a ouVi-la — chamava-lhe /^^^
Filippe ; e este tratava-o por compadre Anthero. Nenhum
d'elles teve filhos.
Chegando o medico, entrou no quarto do doente,
tomou-lhe o pulso, e, com o seu ar bonacheirão, disse :
não é nada, compadre Anthero, não é nada!
Receitou e foi para o quarto de José Sampaio conver-
sar. Para lá fomos todos.
Digno tio de Anthero na intelligencia e na bondade,
physicamente era um typo inteiramente diverso : alto,
cheio, bojudo, suissas e cabellos negros, e usando óculos
escuros.
86
Muito iliustrado e possuindo a livraria do pae, onde
Anthero muito' se instruiu! Muito relacionado com polí-
ticos e litteratos.
Havia sido no Theatro Académico, um actor cómico
de distincío mérito, e ninguém contava com mais espirito
uma anedocta, sublinhando-a apenas com um ligeiro e
especial tremer dos lábios.
N'essa primeira noite da doença de Anthero, elle teve
todas as honras do cavaco.
Anedoctas ; casos da academia anteriores á nossa
épocha. de que era chronica viva ; casos picarescos da
sua primeira mocidade, na ilha de S. Miguel ; aventuras
galantes d"esse tempo, tudo salgado com a sua graça, para
ali trouxe o bom Filippe.
Voltou na noite seguinte e repetiram-se as mesmas
scenas.
Anthero tinha febre, mas conversava. Ao terceiro dia
porém o doente peorou muito, k febre era muito alta.
Chegou Filippe com a sua alegria costumada.
Tomou o pulso ao doente. Examinou-o muito demorada
e cuidadosamente.
De repente a phisionomia transtornou-se-lhe! O tremer
dos seus lábios não era o que tinha quando contava casos
alegres!
Sahiu do quarto e desceu as escadas, porque isto se
passava no andar superior.
Em Vez de se dirigir para o quarto de José Sampaio,
dirigiu-se para a porta da sabida.
Levantou a gola do sobretudo como para esconder o
rosto. Falando baixo a José Sampaio, as lagrimas salta-
ram-lhe dos olhos. O medico exprimentado sentiu-se sem
serenidade para o combate, que havia a travar com a
doença.
Muito enfiado, ouvimos dizer-lhe : eu mando cá o
Lourenço.
87
N'essa mesma noite, tomou conta do enfermo o dis-
tincto professor, grande e sympathico clinico, Dr. Lou-
renço de Almeida Aze-
vedo.
Anthero tinha um
perigosíssimo ataque
de bexigas !
Os frequentadores
da casa offerecêmo-
nos para auxiliar os
companheiros em to-
dos os serviços, de que
precisasse o doente.
Em uma noite,
que passei junto delle
com Frederico Phile-
mon, o enfermo deli-
rava.
Conversava com os
grandes poetas : com
Camões, com o Dante,
com o Petrarcha, que
por essa occasiào lia.
Interrogava-os. Exigia-lhes que lhe respondessem!
De repente teve um ataque de choro. Quiz levantar-se
para procura-la — dizia!... porque a tinha perdido... e
não podia viver sem ella. . . a Consciência!
E chorava muito... porque a não encontrava, — a
Consciência!
Frederico Philemon
Vieram as melhoras depois de poucos dias. O perigo
passou.
88
Lembrando-nos do que elle depois produziu; do papel
moral e litterario, que desempenhou; da influencia que
teve sobre tantos espíritos, é que bem pôde apreciar-se a
perda enorme, se elle então tivesse succumbido.
IV
Anthero aprendiz de dansa
Anthero tinha por vezes simplicidades de creança.
Elle, que era um triste, tinha também alegrias sinceras
como as dos annos infantis! Parece próprio da maldicta
doença, que lhe amargurou a vida e afinal o Victimou!
Ouviu-nos falar, uma Vez -a mim e a Philemon —
em umas dansas, em que, com outros rapazes, nos andá-
vamos a exercitar em casa de um nosso condiscípulo,
que deve ter ido desta vida para outra em passo de
dansa! Era insigne dansador, e morava á Sé Velha, na
casa da esquina vindo da rua da Ilha. Anthero disse-nos
logo que também queria ir; que era uma prenda que lhe
faltava e queria completar-se!
Lá foi duas noites para entrar no regimen constitucio-
nal da dansa, que era como elle chamava ás quadrilhas e
lanceiros.
Mas, como elle esteve alegre, n'essa noites! Como
brincou e riu ! . . .
89
No anno de 1862-1863
É este, quanto a mim, o mais feliz anno da vida de
Anthero, em Coimbra.
É o anno do seu maior calor pelas cousas da acade-
mia. É o da sua mais radiante gloria e predomínio moral.
É o anno da Fé e Esperança no futuro !
Morava com os seus companheiros aos Palácios Con-
fusos, ou antes na travessa, que d'ali segue para a Cou-
raça de Lisboa, perto da casa, onde tantos annos viveu
e morreu a pobre Amélia Janny.
É o anno, em que se revela a existência da Sociedade
do Raio, fundada no anno anterior, e de que era um dos
chefes com José Sampaio e José Falcão.
Os sócios não se conheciam. Reuniam por decurias
em casa dos chefes destas, e, como dez estudantes, em
casa de um outro estudante, não causavam reparo, mante-
ve-se o segredo. Só depois de 8 de dezembro é que
houve a reunião, a que se refere Marianno Machado, no
seu interessante artigo do In Memoriam, escripto com a
probidade moral e litteraria, que sempre o distinguio.
Muito interessantes as surpresas, a que este se refere!
Nessa reunião, effectuada na casa que fica ao fundo da
rua dos Loyos, e presidida por Anthero, este revelou o
extraordinário poder de sugestão da sua palavra.
90
Logo no começo do anno lectivo, em 21 de outubro,
pelas 6 horas da tarde, entrou em Coimbra o príncipe real
de Itália, que depois foi Rei Humberto. Consta das noticias
da sua viagem, publicadas no Diário do Governo, n."^ 262.
Dirigia-se ao Porto a visitar os logares, onde passou os
seus últimos dias e onde morreu seu avô, o Rei Carlos
Alberto.
A unificação da Itália e as épicas façanhas de Gari-
baldi, desde os annos anteriores que despertavam o maior
enthusiasmo na mocidade de Coimbra.
Reuniu-se uma assembléa geral, no Theatro Académico,
para ser nomeada a commissão, que havia de ir cumpri-
mentar o príncipe italiano em nome da Academia.
Contra a praxe de escolher só ursos (estudantes pre-
miados) para essas commissôes, conseguimos, pelas dis-
posições que tomámos, calor e energia com que gritámos,
eleger Anthero e, na quasi totalidade, rapazes do seu
grupo.
Vou pôr aqui a felicitação, escripta por Anthero, e
copiada por mim antes de assignada, transcripta, prosa
única, no meu caderno de Versos de João de Deus, onde
Vou buscal-a. Não tinha as reticencias e parenthesis, que
lhe pozeram no livro consagrado á memoria de Anthero,
como — hão-de reconhecer — não era próprio, nem deli-
cado.
Dizia assim :
Príncipe :
Os estudantes da Universidade de Coimbra, filhos e netos dos
heróicos defensores do Porto, saúdam, em nome da fraternidade de
dois povos irmãos, o neto de Carlos Alberto : a mocidade liberal por-
tugueza saúda, em nome da liberdade do mundo catholico, o filho de
Victor Manuel.
Á mocidade portugueza não lhe soffre o coração, que não recorde
com saudade a memoria do heroe infeliz, que, escolhendo por ultimo
91
leito uma terra de hoir.ens livres, prestou, ainda na morte, homena-
gem á liberdade ; não lhe soffre o espirito impaciente, ainda que
oppresso por um phantasma do passado, que não vire os olhos para
as bandas da luz, aonde, no meio dos combates, se enlaça o braço
do rei com o braço do povo.
Não é ao representante da casa de Sabóia, que vimos prestar
homenagem : é ao filho do primeiro soldado da independência italiana,
esse, de quem os reis da Europa aprendem como, neste século ainda,
se pode ser popular sendo-se rei ; de quem a Itália espera resurreição
completa : de quem espera a Igreja Christã uma nova época de verda-
deira grandeza e de liberdade verdadeira.
Aos votos da Europa intelligente : aos votos da Europa popular ;
aos votos dos que trabalham pela santa causa dos povos, unimos os
nossos, sinceros como a nossa edade, e como ella cheios de muita fé,
para que a pátria de Garibaldi possa rehaver o sagrado património
da sua nacionalidade ; e para que o coração da Itália, que o é também
do mundo christào, pulse com egual energia pela liberdade politica e
pela liberdade religiosa.
Pela forma, que ah! fica, sem discrepância alguma, foi
publicada, logo depois, no n. ' 915 do Conimbricense e no
n.° 247 do Commcrcio do Porto, do dia 25 de outubro de
1S62. Verifiquei agora.
.■\ commissào académica, que apresentou esta saudação
ao príncipe italiano, era composta dos seguintes estudan-
tes: Anthero de Quental (presidente), José' Falcão, José
da Cunha Sampaio, José de Sá Coutinho, António Ber-
nardino Cerqueira Lobo, Henrique de Macedo Pereira
Coutinho, Marianno Machado de Faria e Maia e
Eduardo David e Cunha. (1)
(1) Entre esses nobres rapazes, signatários da mensagem ao
príncipe italiano, havia um que não só não estava filiado na Socie-
dade do Raio, mas quasi se podia considerar o chefe do grupo, que
lhe era hostil, tendo sido até, segundo as minhas impressões e lem-
branças, quem deu origem ao nome d'ella. Era António Bernardino
Cerqueira Lobo, estudante muito distincto, segundo premiado do
seu curso.
Foi elle que, em virtude de umas exclamações, attribuidas a An-
thero e Germano, em tarde de trovoada, começou a chamar-lhes —
92
Os cumprimentos ao príncipe foram-liie apresentados
no dia 22.
Á noite, houve recita de gala no The atro Académico,
sendo estudantes todos os actores.
O enthusimo foi delirante quando um dos actores, o
estudante do 5.*^ anno jurídico António Filho Machado,
recitou a formosa poesia de Anthero, escripta para essa
recita, e que se intitula — Itália e Portugal. Começa
assim
Itália e Portugal ! que duas pátrias !
Ambas tão bellas, tão amadas ambas !
Uma a pátria do berço ; outra a das almas
Uma a das artes ; outra a dos combates !
os do Raio e aos rapazes que conviviam com elles — a sociedade do
Raio ! Perfilhou-se a denominação.
D'aquelle grupo proveiu, mais tarde, outra denominação. Passa-
ram a chamar-nos o grupo dos Traças, isto é, pequeninos bichos de
destruição.
Como tiniiamos a lingua prompta, démos-lhes, alludindo ao seu
conservantismo, o nome de Os Sopas.
Estas divergências e denominações, que — diga-se em honra de
todos, — nunca chegaram á quebra das relações pessoaes, apparece-
ram na imprensa académica, como pode ver-se no Attila.
*
*
Dos membros da commissão, que com tanta galhardia, falou ao
príncipe estrangeiro, só vive um que era então rapaz muito sympa-
thico e estudante muito laureado e é e tem sido engenheiro distinctis-
simo.
Marianno Machado de Faria e Maia ! Permitia Deus que a sua
vida se prolongue para continuar a honrar a geração académica, a
que pertenceu.
93^
Tinha versos como estes:
Quem derruba, sobranceiro,
Altos colossos por terra?
Quem é que faz d'uma guerra
A festa do mundo inteiro?
Um homem?
Não!
A Justiça?
Deus! o único juiz
Dos povos na grande liça!
Anthero e Fialho Machado foram depois ao camarote
do principe, que lhes agradeceu e apertou muito a mão.
Foi em novembro, e não em uma noite de maio ou
junho, o que collocaria o acontecimento no anno lectivo
anterior (como inexactamente se diz a pag. 151 do In Me-
moriam) que se realizou a primeira manifestação da socie-
dade do Raio; e não a propósito da volta de Lisboa do
deputado Bernardo de Albuquerque, como também com
esquecimento se diz. Não foi este que chegou de Lisboa,
mas a noticia da sua nomeação de professor da Universi-
dade, que tem a data de 27 de novembro de 1862, como
consta do Diário do Governo e do Anmiarío da Univer-
sidade de 1901 a 1902 (1).
E' que, com verdade ou sem ella, tinha corrido que o
reitor era hostil a este candidato e que desejara que elle
(1) Veja-se a nota 4.'''.
94
fosse preterido no concurso, filiando-se essas animosi-
dades na critica por elie feita á decisão dos decanos,
que impoz a pena de expulsão perpetua a Vieira de
Castro.
Por isso os dirigentes da sociedade resolveram que
fossemos, em grande manifestação, felicitar o noVo pro-
fessor pela sua nomeação.
Passou-se isto nos últimos dias de novembro. Era um
ensaio. Pouco mais de uma semana depois se realizou o
grande acto, em 8 de dezembro.
Esse acto consistiu na assistência, com todo o socego
e compostura, á solemnidade da distribuição dos prémios
na Sa/a dos Capellos, sendo ouvido, com fingida atten-
ção, o longo discurso do decano; mas voltando as costas
e sahindo da sala, logo que o reitor, Basilio Alberto,
começou a falar lendo o discurso preparado para a
occasião.
O caso fez ruido e teve diversas apreciações.
O manifesto ao paiz, explicando-o, e tomando a res-
ponsabilidade do acto, de que Anthero foi auctor e pri-
meiro signatário, é um documento notabilissimo, que ainda
hoje, apezar da fria velhice, me honraria de tornar a assi-
gnar, feitas algumas poucas restricções, que uma maior
experiência e uma menor ignorância me levariam a fazer.
Este movimento de espíritos foi iniciado, no anno an-
terior, por aquelles bellos versos, que Fialho Machado,
em maio de 1862 também recitava, nos quaes o actor Si-
mões era apenas o pretexto para esse verdadeiro hymno
do nosso sentir.
95
Qual de nós, d'esse tempo, se não lembra d'elles
O sol do bello a todos alumia !
Sua aureola cinge cada fronte.
Bem como o rei do dia, mal desponte,
Dá luz egual a todo o ser creado!
Esse baptismo sancto envolve e lava
Todos na mesma onda inspiradora!
Queima com a mesma chamma abrazadora.
Orvalha em egual pranto derramado !
Juntas as almas, que o sentir enlaça,
Commungam, como irmãs, na mesma taça.
São da mesma épocha a Beaticc e o Fiat Lux. E
ainda aquelles versos de tão delicado lyrismo, que tanto
enthusiasmo produziam, quando a elegante actriz, a quem
foram dedicados, os cantava no Thcatro de D. Luiz.
Quem é que, n'esse tempo, não trazia nos ouvidos a mu-
sica d'estes versos :
O beijo
Pudesse eu nesses teus lábios,
Filha! dar-te beijos mil!
Dar-te a morbidez do afago
A esse teu collo gentil,
Pudesse, estrella dourada,
Arrancar-te ao ceu de anil !
Roubar-te, cordeira branca,
E trazer-te ao meu redil.
Eu tenho a luz dos meus olhos
No brilho do teu olhar!
Gemma! Pérola! Espelho!
Onde me estou a mirar !
Tenho tudo isso, tenho!
Não me posso contentar !
Meu sonhado paraíso
Era essa bocca beijar !
96
Que trovoada de palmas quando a actriz, que tinha
uma agradável voz e um collo gentil, como dizem os ver-
sos,—t'o//o de garça como a linda Ignez, — acabava de
cantar!
Falieceu. ligada a familia illustre, ainda não ha muito,
rica e avó !
Sic transiu gloria mundi!
VI
Sua piedade pela mulher
Anthero tinha uma grande piedade pela mulher. Não
menor do que a de Michelet, que elle tanto admirava.
Era muito apreciado por elle o La Femme do grande es-
criptor francez.
Essa piedade era acompanhada de um sentimento cava-
lheiresco de defesa e protecção pelo ser fraco e delicado,
que, como diz Oliveira Martins, elle considerava o sym-
bolo da própria Vida.
Esse culto pela mulher manifesta-se logo nos seus pri-
meiros annos de escriptor.
Sinto não poder transcrever aqui alguns trechos de
dois bellos artigos seus: um publicado nos Prelúdios Lit-
t erários e outro na Estreia LU ter ária.
Intitula-se o primeiro A educação da mulher e o se-
gundo A influencia da mulher na civilisação, reprodu-
zidos ambos na Bibliotheca da Aurora do Cavado.
Contarei um facto presencial. Acompanhava-o, uma
noite, por uma rua de Coimbra. Em certa casa habitada
97
por casal, que nos era inteiramente desconhecido, senti-
mos ralhar e depois o choro de uma mulher.
Suppozemos que o homem a maltratava. Anthero com-
moveu-se logo extraordinariamente! Quiz intervir! Quiz
bater á porta! Queria entrar, queria proteger a mulher,
que ali chorava! Tremia! Custou-me a contel-o! Era uma
desconhecida ! Se fora uma sua irmã, que ali estivesse
sendo victima, não ficaria mais agitado! Não lhe desper-
taria maior sensibilidade!
Era Um^-^Jgar contenda entre esposos de certa es-
phera, que logo se apasiguou. Restabeleceu-se o silencio.
Mas, só passado algum tempo, só depois de bem assegu-
rado de que uma mulher não estava ali sendo victima de
maus tratos, é que consegui arrancal-o daquelle logar.
Contarei um outro caso, que fez ruído no meio aca-
démico. A elle se faz uma escura referencia no In Memo-
riam, e merece ser conhecido em todas as suas circums-
tancias.
Esse caso deu origem a uns formosíssimos Versos
bastante desconhecidos. Foram depois publicados nas
Primaveras Românticas, livro muito difficil de encontrar,
e estão disfarçados com o titulo Une femme qui tombe,
que não era o primitivo. Este era Ermelinda. Para bem
apreciar essa formosíssima poesia é preciso conhecer-lhe
toda a historia.
Vou contal-a:
Anthero foi sempre — como com verdade escreveu
Vasconcellos Abreu — uma alma pura e, em toda a sua
Vida, um idealista.
Posso unir o meu testemunho aos invocados por Souza
Martins para confirmar a apreciação de que elle não
amava com interesse da posse; amava divinisando a
mulher.
7
98
Uma tarde, dois amigos obrigaram-no a uma apresen-
tação a uma infeliz rapariga, recentemente chegada a uma
casa da Couraça dos Apóstolos. Não era essa infeliz
destituida de dotes de beileza. Chamava-se Ermelinda.
Antfiero, mantendo-se tímido, conservou para com a des-
venturada toda a innocente delicadesa da sua alma de poeta.
Entrementes ahi appareceu Vieira de Castro, que tinha
temperamento e hábitos muito differentes. Fez e disse-lhe
cousas Varias. A desgraçadinha ainda não tinha perdido
inteiramente o pudor de mulher. Saltaram-lhe as lagrimas 1
Anthero commoveu-se e fugiu logo d'aquella casa!
Na mesma noute escreveu os versos, que poucos dias
depois appareceram no Attila, jornal litterario de Rodrigo
Velloso, com o titulo Ermelinda e uma carta dirigida ao
redactor d'esse jornal.
Para aqui transcrevo a carta e os Versos, taes como
foram publicados :
Sr. Redactor (1)
Peço-lhe a publicação dos versos que seguem. É a poesia mais
sancta que jamais escrevi, porque se chama consolação, e segura-
mente a mais bella, porque é uma boa acção.
Não sei, nem já agora espero sabê-lo, para que bandas do hori-
sonte fica o ceu, que Deus nos guarda. Mas deante da fatalidade que
a terra prende á barra do vestido de certas mulheres, como um lodo
pesadíssimo, que as puxa para baixo a cada hora e as calca n'estes
chafurdes da vida; deante d'esse mysterio, a alma vê claro, dentro em
si, o que os olhos da cara não alcançam ; e no escuro brilha uma luz.
(1) Tem nota no fim.
99
como nenhum ceu de primavera a teve jamais, — a luz da primavera
das almas, chamada esperança!
No meio da impotência dos systemas dos philosophos e das reli-
giões dos theologos, a immortalidade aparece, como uma aurora infi-
nita, em uma pequena gotta de agua, n'uma lagrima de mulher!
Chega-se á crença pelo soffrimento. porque só elle nos pode dar
a impressão profunda da necessidade de uma compensação, o senti-
mento da justiça. É isto exactamente o que os systemas não dão. Se
Christo tivesse philosophado á maneira de Hegel, em face das dores
do seu povo, não passaria o seu nome, hoje, de um d'esses muitos que
lemos, ou antes não lemos, nos in-folios que tratam de archivar as ar-
gucias do espirito humano para riso das pessoas das gerações futuras.
Chorou, sentiu, soffreu com os mais tristes e os mais mesqui-
nhos; é por isso que foi Christo.
Ha-de parecer-lhe extranho, sr. Redactor, que seja eu (que ha
tanto tempo perdi o nome de christão) que venha falar destas cousas
em terra onde ha tantos e tão bons I
Que quer? este século é um paradoxo, e até na minha fraca
pessoa quer ter mais uma prova d'este espirito de contradicção.
Depois, sr. Redactor, nós outros, os excommungados, quando
nos expulsam da Igreja, temos a consolação de encontrar á porta o
christianismo, o que nos abre o seio para n'elle escondermos a cabeça
carregada de duvidas, magoada de incertezas e dores sem conta. Fi-
cam-se os sacerdotes e os eleitos da Fé com os seus templos, os seus
altares, a sua consideração e as suas prebendas, nós com Jesus
Christo. Não tendo já direito de vêr e amar a Deus na pedra das
aras, na lettra gothica dos missaes, ou na penumbra dos confissiona-
rios, soletramos o Evangelho nos olhos dos tristes; e palpamos o
vasto coração do Nazareno dentro dos peitos que as tristezas da
terra encheram das infinitas esperanças do ceu.
Isto traz-me ao assumpto d'estas linhas.
Eu ouvi uma manhã d'estas falar (1) do Christianismo, como um
douctor da Igreja (ou, ao menos, como um doutor da Universidade) a
um homem, cuja certidão de felicidade lhe anda estampada, desde as
faces ao ventre, na sanguínea redondesa de uma personalidade de
Imperador Romano de outros tempos, ou deputado de hoje, o que
julgo ser tudo um.
Fêz-me pasmar aquillo! Admirei, na minha humildade, o século
em que os apóstolos do Christo, sellada emfim a paz entre o corpo e
o espirito, podem já crear ventre e faces floridas de Pangloss, sem
que com isso nada percam da sua seraphica sublimidade.
A' noite, esse mesmo apostolo fazia corar uma mulher publica
(1) Refere-se a umma licção dada em uma aula.
100
com a irritante descripção de certos refinados prazeres, que nada
deixariam a invejar aos da Roma de Juvenal, se não fossem infinita-
mente menos grandes e infinitamente mais porcos.
Comprehendi então o Christianismo d'estes martyres barrigudos!
E, como já disse, é forçoso que em tudo apareça o paradoxo do sé-
culo, entendi eu. emfim, que era á minha impiedade que competia
ensinar a estes christamões que as azas com que se vôa ao ceu, tanto
as podem ter hombros vestidos de setim, como com vestidos de chita
de pataco ; que fazer chorar os que um destino mau curva até o chão
é, alem de dureza, cobardia excessiva; e que, emfim, o respeito de-
vido á mulher tem de se medir na proporção da infelicidade d'ella,
e nunca na da desconsideração que lhe possa dar este estúpido mun-
do, onde em trevas vamos expiando não sei quaes escuras culpas de
outro passado mysteriosissimo.
Não querem dizer outra cousa os versos que se seguem.
Coimbra, 6 de fevereiro de 1864.
Anthiíro de Quental.
Ermelinda
. . .tinefemme qui tombe!
V. H.
Ao meu amigo J. F. {})
Quem te deitou, innocente.
Tremendo de frio e dôr.
Sobre o monturo da vida.
Como cousa sem valor ;
E essa face dolorida
Te fez empallidecer
Com o olhado da miséria
Com o beijo do soffrer ;
Pôde gelar-te esses membros,
Encher-te de palidez ;
Furtar-te o chão da existência.
Cada hora de sob os pés ;
(1) José Falcão.
101
Mas o que essa mão não pôde,
Com a gelada pressão,
Foi tirar-te o dom das lagrimas
Foi seccar-te o coração !
Chora, pois ! Deus vê as almas !
O mais é cousa mortal !
Vê-as só, quer os ais saiam
Do palácio ou do hospital !
Sua mão, se faz estrellas,
É de almas que anda a colher !
Se, pois, o espirito sobe,
Bem pode o corpo descer !
Que importa onde os pés se firmem,
Se é porque o olhar se erga á luz ?
Bem podre é o chão dos mortos
E mais lá se hasteia a cruz !
Como aos poços mais sombrios
Chega um raio de luar.
Podem também nascer lyrios
Á porta de um lupanar;
E os seios que o mundo compra,
Em crapuloso leilão,
A que preside a miséria.
Podem ter um coração !
Temos todos Visto, ás vezes,
Sahir uma luz ideal
De cabeças que se encostam
Na enxerga de um hospital !
Ah ! deixa correr teu pranto
Sobre o chão do lupanar !
É sementeira de dores
Que andas triste a semear !
Que passe o inverno por cima !
A primavera ha de vir !
As dores que tu semeias
É no ceu que hão-de florir !
102
Lá são contadas as lagrimas
Que aqui se vão a chorar I
Por baixo de nossos olhos
Anda-as Deus sempre a aparar !
Eu creio na Providencia I
O tronco sêcco da Cruz
Rebenta no Paraiso.
Para dar flores e luz I
As faces que empallidecem
Ha-de Deus ainda corar
Com o reflexo dos cyrios
Que ardem lá no seu altar !
E, se os olhos se anuviam
Escurecendo-se, Deus
Faz dos escuros da terra
A aurora eterna dos Céus I
Que sopro de espiritualismo religioso e de superiori-
dade moral perpassa n'esses versos! Que sancta tolerân-
cia! Que doce caridade!
Não seriam muito outras as palavras com que o su-
blime Nazareno socegou o espirito perturbado da pe-
cadora Maria de Magdala!
Vil
Espiritualista eram para elle abomináveis todas as
abjecções do materialismo-.
A sua alma pairou sempre nas regiões sublimes da Fé,
da Esperança e do Amor!
103
A mulher merecia-lhe culto como fonte do amor e da
vida!
A cada passo se encontra este sentimento nos seus
versos. Só teríamos difiiculdade na escolha.
Mas nào resistimos a trazer para aqui algumas das
estrophes, tão sentimentaes e tão bellas, da Beatrice:
Bem como a gota d'agua ao pobre insecto inunda,
Inundem-me d'amor teus olhos — ceu e luz —
A quem pedimos nós que amor ao peito infunda?
Ao seu symbolo ~ á cruz — !
Abre-te, asylo santo, único, eterno abrigo,
Ó seio virginal, ó seio de mulher!
É mãe, e irman, e amante! é este o seio amigo!
Eu quero inda viver!
O infinito! Ideal! Visão, que mal presinto!
Transfigura-te aqui! deixa cahir teu Veu!
Quero palpar e ver a Deus, n'isto que sinto!
Quero antever o ceu!
Venham-me esta alma ungir palavras do teu lábio
Que mestre ha hi que valha um lábio de mulher?
Que livro folheou o Christo, o maior sábio?
Quero a vida aprender!
Coração! coração! eia! resurge! vive!
Ja pôde á voz do amor um morto resurgir . . .
E tu não te has de erguer, ó coração que tive?
Quero ainda sentir!
Afunde-me no mar da vida pelo affecto;
Quero sentir-lhe a vaga em mim tumultuar:
— De vida o occeano é pae, de vida anda repleto
O amor! que immenso mar!
Irman! dá-me do manto alvíssimo uma ponta.
Onde me involva todo- um raio d'essa luz . . .
Não é a cruz quem vê o dia mal desponta?
Tu és a minha cruz.
104
Oh! vem! se ás maguas ando á muito affeito,
Junctos podemos contra a dor luctar:
Não podem maguas contra um peito amigo . . .
Oh! Vem, que eu soffro! vem soffrer comigo . . .
E então meu peito,
Ha de acalmar!
Se soffres, soffro: quem não pisa abrolhos?
Quem rosas colhe sem lhe a mão sangrar?
Mas, quando a angústia me negar conforto
D'um pranto, ao menos, a meu peito absorto
Volve teus olhos . . .
Hei de chorar !
Oh! vem! que eu soffro! vem trazer-me a calma,
Que anhelo e busco no teu puro olhar!
Se a minha estrella se apagar sumida,
Oh, surge, surge, no meu ceu da vida . . .
E então minha alma . . .
Ha de exultar!
Sabendo-se que esse formosíssimo poemeto da Bea-
trice foi uma das producções que elle quiz depois destruir
e fazer desapparecer, pode calcular-se quantas preciosi-
dades perdidas!
VIII
Ainda em Coimbra
Anthero, assim como o seu companlieiro Eduardo de
Andrade, completaram a formatura no fim do anno lectivo
de 1863—1864.
105
Mas ainda no anno seguinte continuou a residir em
Coimbra, na companhia de José Sampaio e Frederico Phi-
lemon, morando na casa da rua do Borralho, que faz es-
quina para a rua da Trindade, do lado superior, á direita,
descendo.
E' n'essa casa que elle escreveu a Defeza da Car-
ta Encyclica de sua Santidade Pio IX.
Sempre pensador e sempre poeta, é n'essa casa que
escreve, ou burila muitos dos seus sonetos. Havia já a
edição de vinte, feita por Santos Valente em 1861, prece-
dida de uma brilhante prosa de auctor d'elles. Foi apenas
tirado um muito limitado numero de exemplares para dis-
tribuir pelos amigos.
Anthero era um conversador de raro encanto ! Con-
versando, a phantasia de poeta não lhe fazia perder a
clara Visão das cousas ! Punha as questões com a mais
perfeita e admirável clareza e nitidez. Dahi a irresistível
seducção da sua palavra.
Aspirando a um mundo melhor, era um propheta, um
vidente, um apostolo !
Parecem feitos para elle os bellos versos de Victor
Hugo :
Le poete en des jours impies
Vient préparer des jours meilleurs,
II est rhomme des utiipies
Les pieds ici, les yeux ailieurs.
Cest lui qui sur toutes les têtes,
En tous temps, pareil aux prophètes,
Dans sa main, oii tout peut tenir,
Doit, qu' on Tinsulte, ou qu'on le loue,
Comme une torche qu'il secoue,
Paire flamboyer Tavenir ! (1)
(1) Les Rayons et les Ombres, Function du Poete.
106
As suas máximas de probidade moral e probidade lit-
teraria, que eram inseparáveis para elle, exprimia-as, no
fim d'esse anno de 1865, pela forma seguinte:
«A condição da grandeza, da belieza, da bondade, a
«primeira e indispensável condição não é o talento, nem
«a sciencia, nem a experiência; é a elevação moral,
«a virtude da altivez interior, a independência da alma, a
«dignidade do caracter. Porque a intelligencia dos hábeis,
«dos grandes, dos espertíssimos é muitas vezes cega em
«lhe faltando uma coisa bem pequena, que se encontra
«nos simples e humildes,— a boa fé.»
Isto escrevia n'aquella admirável caria — Bom senso e
Bom gosto, que é o Evangelho da dignidade litteraria, com
que levantou a celebre Questão coimbrã.
No principio do anno lectivo de 1865 a 1866, em que
ainda esteve em Coimbra, é por certo que morou na casa
do Largo de S. João, a que se refere Eça de Queiroz, e
na qual estreitou relações com este.
Os seus antigos companheiros, e quem escreve estas
linhas, tinham terminado os seus estudos em julho anterior.
Durante todo esse largo período da sua vida de Coim-
bra, elle não teve só o brilho do seu talento genial. Res-
plandeceu a luz da sua alta dignidade moral. Foi um
paladino da honra! Pelas suas lições e exemplos teve
uma grande influencia na educação do caracter de muitos
homens da sua geração. Deveria continuar a tê-la!
E' também sobre este ponto de vista que merece uma
grande homenagem a sua memoria!
107
X
Decorreram viníe e dois annos! Quantos trabalhos e
luctas! Quantas illusões perdidas! Quantas aspirações,
bem modestas e santtas, esmagadas! Quantas dores!
Quantos mares percoridos: o Atlântico, o Mediterrâneo,
o Mar Vermelho, o Oceano indico e o Mar da China !
Pude dizer!
Longe por esse azul dos vastos mares,
Na soidão melancholica das aguas.
Ouvi gemer a lamentosa alcyone,
E com ella gemeu minha saudade ! (1)
Depois de vaguear pelos palmares onde ruge o tigre,
recolhi á pátria; mas, quando julgava ter entrado no ambi-
cionado porto amigo, foi ali que se me levantou uma des-
caroavel tempestade! Fugindo-lhe, em busca de alguma paz
para o meu espirito, torturado pela infernal doença que a
crise moral provocou, fui acolher-me ás praias açorianas!
Cheguei a Ponta Delgada no dia 25 de julho de 1887.
Passados dois ou três dias, fui a bordo do paquete Açor
para me despedir de uns companheiros de hotel e dos ser-
viços que professávamos, os quaes partiam para o conti-
nente.
Entrando na camará do paquete, deparou-se-me ines-
(1) Garrett, Camões, canto V
108
peradamente Anthero de Quental, que conversava muito
attentamente com o distincto professor e causidico michae-
lense, o sr. dr. Aristides Motta, que, n'esses momentos,
unicamente o acompanhava.
Olhando-me, reconheceu-me logo ! Apertámos as mãos.
Dada a explicação da minha estada alli e ouvindo-lhe a de
que ia regressar ao continente, afastei-me para que prose-
guissem na conversação interrompida por minha causa.
Pouco depois, o paquete lavantaVa ferro e de novo
apertámos as mãos.
No Verão de 1890, fui viver para o Porto.
Um amigo muito querido, que accidentalmente ali se
encontrava, disse-me um dia que ia a Villa do Conde visi-
tar um parente. Disse-lhe que o acompanhava para visitar
Anthero de Quental.
Chegado lá, foi mostrar-me a casa do poeta e commigo
entrou n'ella o digno juiz da comarca, antigo condiscípulo
de Anthero, o sr. dr. Manoel Alves da Silva, hoje juiz de
segunda instancia aposentado.
Recebeu-me com a sua grande e doce bondade. Fal-
lando-lhe da sua encantadora ilha, disse-me que breve
para lá iria e definitivamente.
«As minhas pupilas — acrescentou — já completaram a
•^sua educação; e por isso já não tenho que fazer cá no
«^^ continente. Julgo o meio da minha terra mais adequado
«para ellas.»
Sancta alma ! As suas pupilas eram as duas filhas ille-
gitimas de Germano Vieira Meyrellesl Nasceu uma já
depois de morto o pae.
Alberto Sampaio tratou de prover á subsistência da
mãe e levou a menina, que já era nascida, para a sua com-
panhia. Mas Anthero disputou-lha. Não cedeu, e tomou
conta de ambas! Creou-as, educou-as como suas filhas!
Legou-lhes a maior parte dos seus modestos haveres!
109
Que belleza moral a d'estes dois homens!
Morto o amigo, não disputam a successão dos seus
bens, dos seus direitos ou interesses, como é commum e
todos os dias se vê !
Disputam substituil-o nos onerosos encargos e obriga-
ções de pae!
Disputam a entrega de duas pobres creanças, que só
teem por si uma mãe desvalida e sem nome, que elles
protegem até á sua morte!
Que lealdade de affectos prolongada além da vida e
até taes extremos!
Que raro exemplo moral d'essa lealdade dado a tanta
gente, que engeita as obrigações do sangue; ou se serve
dos laços doeste para melhor occultar a hypocrisia dos affe-
ctos e perfidamente effectivar a traição d'elles e os abusos
da boa-fé!
Sahindo de casa do poeta, poucos passos andados,
encontrei-me com o amigo, que me tinha acompanhado do
Porto a Villa do Conde, o qual era funccionario distinctis-
simo em Ponta Delgada, com talento, coração e alma,
que o tornavam um grande admirador de Anthero.
Ambos lastimámos a resolução d'este !
Mal pensávamos, inda assim, que, volvido pouco mais
de um anno, os nossos tristes receios se haviam de cum-
prir e que elle, com a sua palavra, elegante e sentida,
seria um dos que, junto da sepultura aberta para receber
o corpo inanimado de Anthero de Quental, em nome de
tantos admiradores ausentes, lhe havia de dizer o ultimo
adeus (1).
(1) Tem nota.
110
E mal pensava eu então que esse amigo querido, mais
breve do que eu podia suspeitar, havia também, não longe
da sepultura do poeta, dormir o somno eterno n'esse triste
cemitério de S. Joaquim !
Anthero de Quental, 1887
Para a campa de Anthero escreveu Joào Deus o único
epitaphio, que era digno delle:
Aqui ... jaz po ; eu não ; eu sou quem fui
Raio animado de uma luz celeste,
Á qual a morte as almas restitue,
Restituindo á terra o pó que as veste.
NOTA 1."
Cartas de Alberto Sampaio e Anthero de Quental
/mo ^ X^ Uy^-^L^^ e,^,.^.cj^y^^^^j^ ^i^-^ '^'--^ t>-,-^^
y ít-»^ cx^£~ í>^-<- .
112
^^ ^ — •
113
NOTA 2.
Rodrigo Velloso
Este era o redactor do Attila, a quem Anthero dirigiu a carta
de 6 de fevereiro de 1864 e pediu a publicação dos versos a Erme-
linda.
Fundador e redactor do Phosphoro, do Tira-Teimas e do Attila,
auctor de um livro, n'essa epocha publicado, que tem o titulo de
Folhas ao Vento, Rodrigo Velloso era um rapaz de muito talento,
illustração, graça e espirito, como revelou em todas essas publicações.
Nosso adversário nas questões
académicas em que andamos empe-
nhados, isso o afastava da nossa con-
vivência, mas foi sempre e inalte-
ravelmente um grande admirador de
Anthero e um dos que depois mais
fez pela gloria do seu nome, repro-
duzindo-lhe os escriptos dos tempos
académicos na sua interessante Bi-
bliotheca da Aurora do Cavado.
Estudante, advogado, notário,
nunca deixou de ser periodista!
Teve sempre um jornal seu! Em
Coimbra fundou e redigiu aquelles
três jornaes litterarios. Depois de sa-
hir de Coimbra, e ainda vivendo em
Lisboa, manteve sempre a Aurora do
Cavado, de Barcellos, e o Boletim
Notarial e Forense, sustentados á custa de muitos sacrifícios, e que
são repositório interessantíssimo da sua grande illustração e das
suas qualidades affectivas.
Distinguindo-se por notáveis aptidões e por dotes de palavra,
como orador forense, tinha, como máxima qualidade, a bondade!
Esta e a terrível doença de uma impenetrável surdez lhe causa-
ram as maiores difficuldades da sua Vida, que não foi prospera e bri-
lhante, como elle merecia por talento e virtudes.
Trabalhou e amou as lettras até á ultima hora da sua existência.
Teve a paixão dos livros! Sacrificava-lhes tudo: até a sua pró-
pria subsistência e a da sua virtuosa família!
Rodrigo Velloso
114
A sua enorme livraria, ein que empregou muito mais de uma
dezena de contos de réis ahi se tem vendido ao desbarato!
Ao que escreve estas linhas consagrou, desde os dias da moci-
dade até aos últimos da sua Vida, a mais affectuosa e leal amisade!
Foi um bom, um trabalhador e um crente!
Todos os que o poderam conhecer prestam o merecido culto á
sua nobre e honrada memoria!
115
NOTA 3/
Júlio Pereira de Carvalho e Costa
Este era o amigo, que me acompanhou a Villa do Conde, e que,
com a commoção, que em carta me traduziu, foi um dos que disse o
ultimo adeus a Anthero de Quental,
em nome de tantos amigos e admira-
dores ausentes.
E ninguém tinlia mais qualidades
para ser o interprete de todos nós!
Era homem de excepcionaes fa-
culdades! Procurador régio juncto da
Relação de Ponta Delgada, magis-
trado integro e de grande illustra-
ção; jurisconsulto; orador; jornalista;
amante da poesia e da musica; cultor
delicado da pintura; alma de artista,
alma nobilissima; coração apaixonado
do bem e do bello, e que não o po-
dia haver melhor!
Tendo, por mais de uma vêz, per-
corrido as pr inci pães cidades da Europa ,
tinha a lição dos livros e das viagens.
Natural de Aveiro, patricio de José Estevão, uma das suas pai-
xões era o culto pela memoria do grande orador.
Lá jaz, perto de Anthero, no mesmo cemitério de S. Joaquim !
Júlio Pereira de Carvalho e Costa
Là, tu reposes, toi ! Lã meurt toute voix fausse.
Chaque jour du levant an couchant, sur ta fosse,
Promenant son flambeau,
L' impartial soleil, pareil à Tespérance,
Dore des deux côtés, sans choix ni préférence,
La croix de ton tombeau! (1)
(1) Victor Huoo, Les Voix Iníérieures.
116
NOTA 4:
Esta nota volta atraz ! Retrocede ! Mas eu não poderia antepor
a sua matéria á das precedentes.
É-nie desagradável o que tenho a dizer n'ella. Mas, tendo tra-
tado da vida de Antliero em Coimbra ; tendo falado do circulo de
amigos, que a elle estiveram ligados por um reciproco e grande
affecto, não me soffre o animo deixar em pé, e sem refutação, umas
bem desastradas affirmaçòes, que se encontram em um artigo do
In Memoriam (pag. 152 a pag. 155).
Tal artigo, a alguns repeitos, interessante e escripto por pessoa
intelligente, talvez porque, no largo decurso dos annos, a phantasia
toma, muitas vezes, na memoria o logar da verdade ; e também por-
que o escriptor se deixou dominar por um pensamento de deprimir,
em vêz de ferir aquelles a quem quiz visar, ferio a própria sagrada
memoria do amigo illustre, que queria glorificar!
Que cousas tão extraordinariamente incríveis ahi se lêem !
Diz-se que a attitude de Anthero e as palavras por elle pro-
feridas na assemblea geral da Academia, e que levaram esta, por
occasião da Rolinada, a sahir de Coimbra e partir para o Porto,
obedeceram a uma troça, combinada com o auctor do artigo, e a um
premeditado desforço de Anthero contra os estudantes, contra os
idiotas (diz que assim lhes chamou), que estavam apaixonadamente
empenhados na questão levantada pelo indeferimento do pedido de
perdão do acto em portaria do Duque de Loulé, que foi julgada
grosseira e offensiva da dignidade e brios da mocidade academico-
conimbricense d'essa epocha.
Diz-se ainda que Anthero, chegado do Bussaco, acompanhado de
António de Azevedo Castello-Branco, Filomeno da Camará e do
auctor do artigo, vendo Vieira de Castro a perorar a um grupo, no
Arco de Almedina, se lembrou de fazer a partida (aos idiotas) e de pre-
parar o guet-apens (que outra cousa não era) ! Que dirígindo-se ao
orador do Arco de Almedina lhe dissera : «esqueçamos antigas inimi-
sades; pode contar commigo, que ponho á sua disposição tresentos
homens e outras tantas claoinas, o que fêz com que Vieira de Cas-
tro, acreditando, lhe cahisse nos braços. >
E que, indo depois á reunião da Academia, os três viajantes do
Bussaco fizeram produzir a deliberação do êxodo portuense!
Tanto teria de admirar-se a pacovice de Vieira de Castro como a
117
falta de respeito por si próprio, em Anthero, depois da recente carta
ao redactor do Attla, a que se cliama antigas inimisades ! Estava-se
em fins de abril. A carta tem a data de 6 de fevereiro (pag. 100) ! Uma
antiguidade de dois mezes e tanto ! !
Quem conheceu Anthero para logo repelle a phantasia ! Ninguém
no mundo mais incapaz do papel, que lhe é attribuido !
Como é que aquelle (quero agora empregar as altas e nobres
palavras de Eça de Queiroz) que foi refulgente espelho de sinceridade
e rectidão ; como é que quem possuia aquella alma, de nascença toda
límpida e branca, que quando Deus a recebeu, a encontrou tão lím-
pida e tão branca como lh'a entregara; como é que quem tinha
aquella lealdade magnifica, que resplandecia nos seus olhos claros
como uma luz ás porias de um sacrário.. . podia, premeditadamente,
traiçoeiramente, só pelo prazer satânico de amesquinhar, 'querer Tevar
a um despenhadeiro moral - perigosíssimo para o futuro d'elles —
tantos companheiros, que lhe consagravam a dedicação mais sincera
e uma admiração incondicional e apaixonada?!
Não! Não é verdade!
Faz-se referencia, no logar citado, a António de Azevedo Cas-
tello Branco !
Interroguei, ha annos, sobre essa referencia, este meu compa-
nheiro de cinco annos nas mesmas aulas, este velho amigo, este poeta
de bondoso coração e nobre caracter. Não a confirmou !
Poderia dispensar-me de nada mais dizer !
Mas, tratando-se de um passo tão importante na vida de Anthero,
em Coimbra; e tendo, ha annos, escripto uns insignificantes artigos,
em que procurei fazer a historia do êxodo académico da Rolinada,
vou reproduzir aqui uma parte do que então escrevi :
«As tropas, que estavam em Coimbra, foram ainda julgadas insuf-
ficientes. Vieram mais tropas de Vizeu. Para o edifício dos Loyos,
sede do governo civil, além da guarda de infantaria, que lá estava,
foram mandados vir não sei quantos soldados de cavallaria, o que ia
motivando um conflicto com estudantes, que, se não se tornou gravís-
simo, foi única e exclusivamente devido á prudência dos soldados.
118
D'ahi a ira e o cumulo da indignação!
Coimbra tinha realmente tomado o aspecto d'um acampamento
militar. Nova convocação da assembleia geral.
Era ao anoitecer. O que escreve estas linhas, um dos mais frios
e indifferentes a esse movimento, assim como quasi todos os rapa-
zes, com quem convivia, resolveu ir a essa assembleia como simples
curioso. Não costumava perder taes espectáculos!
A uma das portas do Theatro Académico, onde a assembleia ia
reunir-se. não á porta principal, mas á da entrada para os camarotes,
encontrou-se com o seu querido condiscípulo José da Cunha Sampaio
e com Anthero de Quental, (então no 5." anno de direito), que iam
nas mesmas disposições de espirito.
Anthero era já então um triste; era já victima da doença, que lhe
havia de dar tão desgraçada e trágica morte: e, por estas e outras
razões, completamente alheio ao que se passava na Academia.
Approximava-se o momento de começar a reunião. A porta do
theatro, que dava entrada para os camarotes, abriu-se.
Anthero seguiu com outros rapazes pelo corredor do lado direito,
e foi tomar logar no camarote que ficava por cima da porta prin-
cipal.
X"esse mesmo camarote, onde dois annos antes, isto é, em outu-
bro de 1862, em uma noite memorável, havia entrado para receber
um aperto de mão do Principe Humberto, depois Rei de Itália, felici-
tando-o e agradecendo-lhe a sua bella poesia, distribuída e recitada
n'essa noite.
José Sampaio e o que escreve estas linhas entramos n'um cama-
rote próximo da porta, no que ficava ao lado direito do camarote do
Conselho da Academia Dramática.
Falaram diversos oradores (1). A assembleia debatia-se em pro-
testos contra a desfeita e a violência de accumular tropas em Coim-
bra contra rapazes briosos e inermes.
Estávamos diziam, sob o regimen do terror e daoppressão! Sob
a ameaça das baionetas !
Mas não se chegava a nenhuma conclusão! De pedir ao duque e
ao governo que fizesse retirar as tropas, para nos ser agradável,
ninguém se lembrava!
Também nenhuma cabeça douda — apesar de haver lá muitas —
(1) Vieira de Castro não faiou n'e3sa reunião. Tinha falado na que houve de manhã.
Morando na cidade baixa, no Hotel do Mondego não teve decerto conhecimento d'ella,
a tempo de poder assistir.
119
alvitrou que fossemos atacar os quartéis e repeliir para fora da
cidade as forças militares, que o Duque de Loulé tinha mandado vir
para nos offender, para nos opprimir, talvez, diziam, para nos
fuzilar!
Nenhuma solução!
De repente ouviu-se a voz de Anthero de Quental peàh a palavra.
José Sampaio estremeceu; e, tocando-me, disse: o que irá fazer
o Anthero.'?
Anthero não era orador!
Mas o que elle era, incontestavelmente, era a águia de toda
aquella reunião!
A Águia bateu as azas e ia soltar o grito estridente!
Soltou-o!
Aquella multidão de rapazes aqueceu-o! A sua impressionabili-
dade de poeta commoveu-se!
Tomou-o !
Approximando-se da borda do camarote, estendendo o corpo, e,
sacudindo a sua bella cabeça ornada de cabellos loiros, disse, com
voz sonora, que resoou por todo o theatro, pouco mais ou menos,- o
seguinte:
«Quem não fôr digno, quem se sentir com disposições para escra-
«Vo, fica e vae ás aulas, sob a ameaça das bayonetas!
«Quem tiver no peito um coração de homem livre, volta as costas
«ao militarismo e sae de Coimbra! E vae para onde? Para a terra,
«que foi berço da liberdade portugueza; vae para o Porto!»
Toda a assembleia, como um só homem, se levantou, gritando:
— Ao Porto ! Ao Porto I
— Amanhã para o Porto !
Na manhã do dia seguinte, das 6 para as 7 horas, uma parte da
academia sahia de Coimbra, em comboio especial até Ovar.
De tarde seguiu o resto.
Fui um d'estes.
Os que estavam em Ovar e haviam acclamado por chefe a Fer-
nando Rocha — um rapaz açoriano muito talentoso e sympathico —
aguardavam anciosos a nossa chegada, incertos do numero que iria
reunir-se-lhes.
Esse encontro foi commovente e delirante.
Pouco depois partíamos todos para o Porto, onde chegávamos já
de noite.
120
Ainda mais duas linhas sobre o citado artigo do In Memoriam.
Diz-se que, depois da demissão do Reitor, Anthero, abandonando
a direcção da Sociedade do Raio, <'esta, sob a influencia dos seus
successores') se transformou em uma succursal da ^maçonaria portu-
gueza», passando a servir de elemento eleitoral aos lentes da Uni-
versidade (pag. 152)!
Não é verdade que a Sociedade do Raio subsistisse sem Anthero.
Depois do acto de 8 de dezembro, da publicação do manifesto ao paiz
e da demissão do reitor, a sociedade ficou sem objecto e dissolveu-se
por si !
Quanto a servir de elemento eleitoral aos lentes, só uma imagina-
ção muito fértil podia descobrir o valor da nossa importância e influen-
cia eleitoral, em Coimbra, n'essa epocha !
Não é preciso mais!
Quiz por certo o escriptor referir-se, mas com grande desconheci-
mento, a outra sociedade, que coexistiu com o Raio, e do pensamento
do qual Anthero foi o primeiro executor dando-lhe até o nome. Medi-
tou e formulou para ella um largo programma de reformas, de que
nós, pobres rapazes, seriamos os porta-estandartes !
Veiu-lhe depois o desalento, dizendo — como por vezes lhe ouvi :
— Que sem Fé não sabia trabalhar ! Ahi ficaram porém os seus três
companheiros de casa. com os quaes esteve sempre na mais intima
communhão de pensamentos e vontades.
Sobre a origem e existência d'essa sociedade escreveu larga e
minuciosamente, com os escrúpulos de verdade que o distinguiram,
em 1868, no Coimbricence, o honrado investigador yoa<7«/m Martins
de Carvalho e reproduziu depois uma parte de que tinha escrito
n'aquelle anno no seu livro Apontamentos para a Historia Contem-
porânea .
Fernando Rocha
Fernando Rocha foi dos três meus condiscípulos,
que faziam parte da commissão académica, eleita no
Theatro Baqiiet (1), aquelle
com quem, por menos tempo,
vivi. Mas nem por isso a nossa
amizade creou menos fundas
raízes.
Já bacharel formado em.
philosophia, onde havia sido
estudante muito distincto e pre-
miado, não levou seguidamente
o curso de direito. Por mais
de uma vez o interrompeu, fa-
zendo distincta figura em am-
bas as faculdades.
Veio adventício para o meu
curso. Passou por elle como
um metheoro, espalhando, entre nós, muita luz de talento
e de sympathia !
Todos o estimávamos e admirávamos, como elle tanto
merecia.
Fernando Rocha
Pela mobilidade do seu rosto, illuminado pelo brilho
dos seus olhos claros, e pelo império dos seus nervos, tão
(1) Foi este escripto destinado a uma nota para a compilação dos
artigos sobre a Rolinada.
122
sensíveis e vibrateis, era o homem mais incapaz de occul-
tar o que pensava e sentia ! E elle iucraVa em que os seus
amigos podessem ler o que estaVa no seu coração e na
sua alma ! Foi sempre um impulsivo, mas impulsivo para
o bem !
Tinha grandes qualidades de orador e de tribuno !
Paliando na celebre reunião, effectuada no Theatro
Baquet, o seu discurso e o de Oliveira Valle — que dis-
punha de uma palavra elegante e original — obtiveram, na
imprensa do Porto (que nos era hostil), os maiores elo-
gios, prophetisando aos dois talentosos rapases um bri-
lhante futurou
Infelizmente, não teve, cá fora, o futuro, que todos
lhe prediziam !
Com notáveis dotes de intelligencia e de palavra, muito
coração e muita imaginação, prejudicaram-no aquelle e
esta!
Não traçando, desde logo, segura e praticamente, a
sua carreira, entrou, já cortado de desenganos, na ma-
gistratura.
Deram-lhe, pouco depois do primeiro despacho, uma
delegacia em Lisboa.
Era o reconhecimento das suas distinctas aptidões e
o campo onde ellas iam maniíestar-se e recommenda-lo
para um mais fácil accesso. ou mais remunerados cargos.
Parecia ter entrado no caminho da boa fortuna.
Mas a infelicidade perseguia-o. Veio a doença, uma ter-
rível doença nervosa, a cruel neurasthenia — que tem sido
o torturante mal de tantos da sua geração ! — cortar essas
esperanças. Foi obrigado a abandonar os tribunaes da ca-
pital e a ir procurar socêgo para o seu espírito na obscura
comarca de Villa Franca de Xira !
Crearam-se os tribunaes administrativos. Coube-lhe a .
promoção.
Foi nomeado presidente do de Angra do Heroísmo,
sua terra natal.
Ahi servia, quando eu, desde 1887 a 1890, — residi em
Ponta Delgada.
125
Depois de Coimbra, apenas, muito de passagem, ha-
viamos tido um rápido encontro na Arcada.
Uns quinze annos depois, viviamos em ilhas próximas.
Por amigos communs tínhamos trocado lembranças.
Mas, em 1890, antes de sahir definitivamente da Ilha
de S. Miguel, quiz eu ver algumas das outras ilhas do for-
moso archipelago. No paquete, que me havia de trazer ao
continente, embarquei para a Ilha Terceira e para a Ilha
do Faval.
Não resisto a descrever aqui o meu encontro com o
pobre Fernando, em uma audiência publica.
Porque não hei-de conta-lo?
Nenhum homem deve envergonhar-se de ter coração!
Não fica mal a juizes mostrar que o tem!
Julgar o contrario leva a muitas vaidades e inconcebí-
veis erros!
Tanto os juizes como quem para elles legislar, ou
quem tiver de aprecia-los e julga-los, deve ter sempre pre-
sente aquella sentença do sábio Pascal, que diz assim:
Uhomme rCest ni ange ni bete; et le malheur est que
qui veut faire Vange fait la bete!
Vou, pois, contar a forma d'esse encontro com o meu
talentoso companheiro dos bancos escolares.
Fica-se conhecendo!
Vê-se como o fogo dos affectos ardia n'aquelle cora-
ção! E em edade, em que o de muitos costuma estar ge-
lado!
Chegado ao hotel, em Angra do Heroísmo, preparan-
do-me para sahir, pedi que algum guia me acompanhasse
para me indicar a casa de Fernando Rocha.
Informaram-me que, n'aquella hora, não estaria em
124
casa, mas no tribunal, que era ali muito perto. Fizeram-
me a indicação.
Melhor. Mais certo o tinha.
Dirigi-me ao tribunal e entrei. O juiz presidia, de beca,
a uma audiência ordinária. Tinha em frente os escrivães e
ao lado o delegado, que era o dr. Domingos Ribeiro Vieira,
magistrado muito digno, que é hoje juiz de direito, creio
que da comarca de Sabugal.
Achei-me em frente do meu antigo condiscípulo. Era
bem elie. Todo elle! A mesma voz, a mesma mobilidade
de gesto e de phisionomia. Só os cabellos é que não
eram já de um louro escuro, como em Coimbra! Estavam
brancos!
Entrando, fiz-lhe a minha vénia respeitosa. Ficou indif-
ferente. Não me reconheceu!
Sentei-me entre alguma gente do poVo, que assistia á
audiência. Mas, passados momentos, lembrou-me que eu
tinha qualidade para entrar para dentro da teia do tribunal.
Senti também no coração a exigência de o pôr em
communicação com aquelle outro coração amigo, que ali
se encontrava!
Peguei em um meu cartão, e mandei, pelo official de
diligencias, entrega-lo ao presidente do tribunal. Esperava
que este me convidasse a sentar-me, dentro, em outro logar.
Mas-, lendo o meu cartão, começou a mover-se em in-
quietação nervosa! A sua luneta de myope, presa por um
cordão, como sempre usou, dava-lhe saltos no pescoço!
De repente disse: está interrompida a audiência por
dez minutos! E, descendo, rápido, da cadeira, dirigiu-se
para mim e começou a abraçar-me effusivamente!
No meio do pasmo de toda aquella gente, que não sa-
bia quem eu era!
Levou-me para o seu gabinete, onde, a esforços meus,
não prolongou os dez minutos, e foi continuar a audiência!
Terminada esta, nunca mais me dei?«:ou. Levou-me a
sua casa. Apresentou-me á sua digna e bondosa esposa, a
Senhora D. Maria da Silva Baptista Rocha, a sua formosa
companheira de Coimbra, pois com ella casara nas ferias
125
do terceiro anno. Conservava ainda muitos traços da sua
belleza dessa época !
No dia seguinte, deu-me um jantar, festa muito cor-
deal, de que conservo a mais grata lembrança.
Depois frequentemente me escrevia para o Porto.
O seu pensamento era vir para uma comarca do con-
tinente, em que pudesse estar em contacto com os seus
antigos amigos; e delia acompanhar a educação de seu
filho, hoje distincto professor no Lyceu Camões, o meu
presado amigo, Dr. Arthur Fernando Rocha, herdeiro do
nome e de muitas das distinctas qualidades de seu pae.
Com o seu talento, o seu coração e a sua imaginação,
Fernando Rocha era, como não podia deixar de ser, um
poeta. Escreveu versos, que queimou. Di-lo em umas
paginas intimas de conselhos a seu filho, nas quaes appa-
recem retratadas a belleza da sua alma e a nobreza do
seu coração.
Escaparam, porém, uns Versos, escriptos na Ilha do
Pico, no ultimo periodo da sua vida, e que revelam o fogo
da sua inspiração.
Era amigo dedicadíssimo e admirador apaixonado de
Anthero de Quental.
Quando este, em 1887 esteve em S. Miguel, foi fazer-
!he uma Visita a Angra do Heroísmo e foi seu hospede
durante um mêz.
A morte de Anthero produziu em Fernando Rocha um
grande abalo moral. Talvez uma terrível suggestão! . . .
A adversidade, que foi sempre cruel para com elle, ia
vibrar-lhe o mais tremendo golpe!
Morreu-lhe a esposa, a sua companheira querida!
126
Custou-lhe a resistir. Consolou-o um netinho, filho da sua
distincta filha, a Ex."'« Senhora D. Maria do Carmo da
Rocha Coelho Borges.
A perseguição, porém, da adversidade continuava. Essa
creança morreu também!
Isolado na ilha do Pico, em cuja comarca foi collocado
pela extinção dos tribunaes administrativos, não resistiu.
O mar, o mar, tempestuoso como o seu peito, at-
trahiu-o ! Só elle, só o mar, egualava as perturbações, que
lhe agitavam a alma!
Foi no triste dia 13 de outubro de 1892.
Abraçou-se com o mar. . . e desappareceu !
Tão nobre, tão distincto, tão infeliz !
José Luciano de Castro
Estudante de direito. — Advogado no Porto.
Jurisconsulto (1)
Foi em 1890, depois de elle haVer deixado de ser mi-
nistro, que, pela primeira Vez, falei com o sr. José Luciano
de Castro.
Terminado que foi o meu serviço judicial ultramarino,
sendo collocado na Relação dos Açores, servia nella
(1) Artigo de colaboração para o numero da revista jurídica —
O Z)/mro -publicado em homenagem á memoria do seu fundador.
128
quando o illustre homem de estado, então presidente do
conselho e ministro do reino — de quem me julgava intei-
ramente desconhecido — , por intermédio de um amigo
commum, se dignou convidar-me a acceitar um cargo de
governador civil com plena liberdade de abstenção de poli-
tica, como aconselhavam as circumstancias do districto
que me destinava, e só com o encargo de manter a ordem
pública e fazer administração.
Declinei o convite. Era esse o dever.
Por um lado, elle se baseava em um erro, que era o
da minha aptidão para cargos de tal natureza, quando era
absoluta a minha inaptidão e incapacidade para elles; e,
por outro, a firme resolução formada de não militar na
politica dos partidos, tomando uma posição, que eu não
saberia conciliar com os melindres da minha situação de
juiz e profissão de magistrado, pois que, pela falta de
qualidades de adaptação, sem vantagem pública ou pes-
soal, isso só podia tirar-me auctoridade e deslustrar a fun-
ção a que tinha votado a minha vida.
Teve ainda para commigo a benevolência, por essa
época, de querer conferir-me a mercê honorifica da carta
de conselho. Também me escusei a acceita-la.
Mas, transferido para a Relação do Porto, passando
por Lisboa, impunha-se-me a obrigação de ir agradecer-
Ihe as demonstrações de confiança e de consideração com
que tinha querido galardoar-me!
Datam dahi as relações de amizade, com que honrou,
não um politico, não um partidário, porque me havia recu-
sado a sê-lo, mas o magistrado, mas o sacerdote da jus-
tiça, que procurava servi-la com amor e cuidado.
E' que elle tinha o culto do direito. Amava a sciencia
do justo, e era grande o seu pendor e sympathia pelos que
a professavam.
Receando ser importuno no meio da assistência de
políticos, que muito constantemente o cercavam, foram
129
mais as vezes, em que, cumprindo deveres de delicadeza,
fui á sua porta, do que aquellas em que tive a hionra de
entrar na sua casa.
Mas, sempre que lhe falei, encontrei a mais aberta
lhaneza e a mais despretenciosa cordealidade : e a veia
abundantissima da sua palavra se desentranhava e larga-
mente comprazia na narração e apreciação de pessoas e
cousas do foro, dos tempos presentes e dos tempos pas-
sados; figuras de juizes e figuras de advogados; casos da
sua vida de advogado; reformas de justiça; historia de
códigos e leis; incidentes da sua discussão; Índole de tri-
bunaes e jurisprudência destes !
Desaparecia o politico e ficava o jurisconsulto, que
o era eminente e muito illustre!
Nascido em 14 de Dezembro de 1834, quando concluiu
a sua formatura, em 1854, ainda não tinha completado
vinte annos, o que era, e é, muito raro !
Quando em 1849, iniciando os seus estudos jurídicos,
passou e repassou a porta férrea, efectivando aquelle
Verso do Garrett qne aqui não posso escrever, ainda não
tinha quinze annos!
Era o mais novo dos estudantes do seu curso, que foi
notabilissimo pela distinção dos mancebos e pelas grandes
e esparançosas inteligências, que n'elle brilhavam !
Todos os que frequentámos a Universidade em outros
tempos (que não nos actuaes, em que não ha annos certos
9
130
de frequência, nem cursos e ha estudantes in ahsentia)
sabemos bem que o nosso curso era a nossa família aca-
démica! Sabemos os laços fraternos, que ligavam aquel-
les que, durante cinco annos, entraram nas mesmas aulas,
se sentaram nos mesmos bancos, leram os mesmos livros,
estudaram as mesmas lições e ouviram a vóz dos mesmos
professores!
União de pensamentos de que nascia a união dos cora-
ções ! Reciproca educação dos espiritos, reciproca educa-
ção dos sentimentos !
Durante a épocha dos actos, que vivo interesse pelos
exames alheios! Quantos receios de perder algum com-
panheiro querido! Quanta magua, se isso succedia! Ou
quanta alegria, se triumphaVa e proseguia para diante
comnosco na mesma jornada litteraria!
Recordações para toda a vida! Mutuo auxilio n'ella^
mutua protecção! Quantas vezes transmittida aos descen-
dentes, e até por estes desconhecida !
Pois esse curso de 1849 a 1854 foi, como dissemos,
distincto e notabilissimo !
N'elle havia três pares de irmãos, procedentes de famí-
lias nobres e casas vinculares!
Três morgados e três secundo-genitos. Seis garbosos
rapazes! Muito intelligentes, muito distinctos, muito gentis!
Eram os irmãos Castros (Francisco e José Luciano),
de Aveiro'; os irmãos Mimosos (João e José), de Ponte
de Lima; e os irmãos Queirozes (Gaspar e José), de Arcos
de Val-de-Vez.
Tendo convivido com estes últimos desde os meus
primeiros annos, tive occasião de lhes ouvir repetidamente
apreciar muitos dos seus .companheiros de estudo, que
depois, mais ou menos, vim a conhecer no futuro.
O mais galardoado nos louros académicos era Augusto
Cesqr Barjona de Freitas, cujo brilho de talento desde
logo se assignalou; e em quem admirei — como meu pro-
fessor em mais de um anno — a rara agudeza de inteligên-
cia, reunida a uma rara fluência e encanto de palavra, que
irresistivelmente prendia aos seus lábios a attenção dos
131
seus alumnos ! E estes foram os seus méritos de professor
excepcional.
Tinha este por emulo Carlos Ramiro Coutinho, fogoso
orador das assembiéas académicas, estudante de grande
prestigio na academia, redactor n'essa época do jornal —
Echo dos Operários — , talento notável, que, pelo brilho e
pela rapidez, passou, como uma estrella cadente, pelo
foro, pelo parlamento e pelo funccionalismo, em que,
desde logo, subiu ao desempenho do alto cargo de Pro-
curador Geral da Fazenda. Tem honrosa biographia escri-
pta pela penna litteraria tão illustre de Camillo, onde o
genial escriptor diz que «estes dois mancebos (Barjona e
«Ramiro Coutinho) por tal modo hombreaVam no direito
«ás distincções, que houve então parcialidades academi-
«cas, ambas concordes no respeito aos dois talentos, mas
«ciosas da primasia do seu escolhido : e, como quer que
«fosse, o característico assignalamente distincto dos dois
«era perspicuidade na percepção, subtileza critica, e, sobre
«tudo, verbosidade elegante.»
E quem eram os outros condiscípulos? Eram:
Joaquim Januário de Sousa Torres e Almeida, bra-
carense distinctissimo, intelligencia brilhante, jurisconsulto
illustre, parlamentar de palavra elegante e eloquente, que
a morte cedo arrebatou ao largo futuro que o esperava!
António Alves da Fonseca, lúcido espirito, advogado
inteligentíssimo, grande orador forense.
José Ribeiro Perry, grande juiz e útil escriptor de
direito, bem cedo roubado pela morte á magistratura, que
muito enaltecia e honrava!
Joaquim Maria da Silva, (terceirense) inteligência
superior, que, sendo ainda estudante, escreveu e publicou
o notável opúsculo — Federação Ibérica ou Ideias Ge-
raes sobre o que convém ao Futuro da Península. Por
um português. E logo depois (1857) a clássica tradução
da Educação das Mães de Familia, o precioso livro de
Aimé Martin, por causa do qual travou polemica, no jor-
nal O Portuguez, com o redactor do Bem Publico,]. M.
de Sousa Monteiro, adversário terrível, mas que não pôde
. 152
Vencer o polemista com quem luctou! É o traductor do
Chaterton, de Alfredo de Vigny. É o auctor dos Estudos
de Philosophia Racional, que Alexandre Herculano fez
publicar nas Memorias da Academia Real das Sciencias
e valeram ao auctor as palmas académicas, a que a sua
modéstia se não pôde eximir.
É o futuro auctor do opúsculo — O Imposto, disserta-
ção para o concurso da cadeira de economia politica da
Escola Polytechnica.
Honra do professorado e honra da advocacia! Fallecido
ultimamente em Santarém (50 de Setembro de 1915) par-
tiu para as regiões do Além poucos mezes antes do seu
camarada universitário!
Henrique da Gama Barros (felizmente vivo), um dos
mais novos, formado aos vinte e um annos.
Entrando na Vida administrativa pelo modesto logar de
administrador de Cintra, em breve confirmou os créditos,
que já tinha em Coimbra, mostrando a pujança do seu
Valor intellectual e capacidade de estudo na então muito
importante obra — Repertório Administrativo, deducção
alphabetica do código de 1842 e de toda a legislação
correlativa até 1860, com que se recommendou para os
cargos superiores de secretario geral do governo civil de
Lisboa, governador civil, vogal e presidente do tribunal
de contas, entregando-se então a profundos e altos estu-
dos, que o tornam o sábio auctor d'essa obra monumen-
tal, em dois volumes, já publicados e um terceiro em pu-
blicação, e que se \x\W\\x\di — Historia da Administração
Publica em Portugal dos Séculos XII a XV.
António Pereira Telles de Vasconcellos, que foi par-
lamentar, juiz do supremo tribunal administrativo, presi-
dente da Camará dos Pares e Ministro da Justiça.
José Affonso Botelho de Andrade da Camará (mi-
chaelense) litterato, poeta, prosador elegante e purista,
fanático camonianista, cujo nome chegou lembrado á mi-
nha geração, porque, tendo soffrido uns dias de detenção
académica, foi o protagonista da engraçadissima parodia do
Tasso no Hospital dos Doudos, de Rodrigues Cordeiro.
135
João Cândido Furtado d' Antas, o honestissimo ma-
gistrado superior, musico e poeta, cuja musa, ora senti-
mental, ora galhofeira e satyrica, o acompanhou na sua
Vida de juiz. Os seus versos, passando de banco para
banco, aligeiravam as horas das aulas, sendo alguns d'el-
les ainda apreciados pelas gerações académicas, que suc-
cederam á sua.
_Um outro poeta havia no curso. Um grande poeta!
Esse tinha em si a faisca do génio e o fogo da divina ins-
piração! Foi o mais sublime representante do lyrismo
sentimental da sua épocha!
Os seus versos, sempre harmoniosos como os trilos
dos rouxinoes do Mondego, são, por vezes, tristes como
os gemidos do mar, ou como os echos longínquos das
ondas batendo nas penedias!
Era o bardo melancholico do Noivado do Sepulchro!
O cantor inspirado do Firmamento, da ode A Camões, dos
Anhelos, do Amor e Eternidade, da Vida, do Desalento,
da Infância e Morte e de tantas outras pérolas da poesia!
Era António Augusto Soares de Passos, fallecido aos
trinta e um annos, no Porto, sua pátria, mas legando á pos-
teridade um pequeno livro de ouro, que lhe confere inapaga-
Vel e immorredoura floria!
Estes, além de outros (1), também distinctos, foram os
companheiros do juvenil estudante de Aveiro, que era o
(1) Este foi também o primeiro curso do divinal artista, cuja for-
matura — como elle próprio disse — durou tantos annos como di guerra
de Tróia! Foi o primeiro curso de João de Deus. Tinha na matricula,
154
Bemjamim d'essa familia académica, d'essa tribu já então
gloriosa!
Foi no convivio d'essa plêiade brilhante de mancebos,
de tão grande valor intelectual, cheios de uma ardente
mocidade, almas aquecidas no culto da sciencia e no
culto do bello, que se desenvolveu e educou o seu espi-
rito juvenil!
Dentro das aulas, disse-me a tradição, que procurou
sempre desempenhar-se dos seus deveres escolares, hom-
breando com o grupo dos melhores, e isso confirmam as
distinctas informações literárias, que, no fim da formatura,
a faculdade lhe conferiu.
Fora das aulas, disse-me ainda ella, que era estudante
de muitos livros! Raros possuíam tantos! Todo o dinheiro,
de que podia dispor, o empregava em livros!
E não era o Pegas, nem o Guerreiro, nem o Velasco,
nem o Silva á Ordenação, nem o Caldas, nem o nosso
Cordeiro — como dizia o velho mestre Neiva — que elle
procurava adquirir, posto já soubesse conversar com esses!
Eram liVros de idéas modernas e novas! Livros de littera-
tura e direito politico!
como se vê da respectiva pauta d'esse anno, o n.° 62 e José Luciano
o n." 24.
Coube ao Sr. José Luciano de Castro, sendo presidente do Con-
selho de Ministros e tendo a seu cargo os serviços da Instrucçâo Pu-
blica, a honra de ter perfilhado o projecto de Augusto Ribeiro, que
foi convertido na Lei de 2 de agosto de 1888, pela qual foi creado o
logar de Commissario Geral do methodo de leitura Cartilha Maternal
de João de Deus, recahindo a primeira nomeação vitalícia na pessoa
do seu auctor, com o vencimento de 900.S000 réis, como diz o artigo 1 ."
d'esse diploma legislativo.
Ao acceitar o projecto e referendar a lei, por certo se lembrou o
Sr. José Luciano de Castro que não só cumpria, como estadista, o
dever da pátria para com o seu filho tão illustre, mas que beneficiava
também o seu antigo companheiro dos bancos escolares, o que seria
grato ao seu coração, que tantas vezes mostrou tê-lo para com outros
companheiros d'essa épocha e para os que o auxiliaram nos inicios
da sua trabalhosa vida publica. (Nota escripta para este livro).
135
E' que a imprensa já o tinha namorado e seduzido. E'
que já o havia empolgado o jornahsmo!
Foi no fim de 1851, quando frequentava o terceiro
anno juridico, que publicou o seu primeiro escripto no
Observador, jornal fundado em Coimbra, alguns annos
antes, para combater a tirania da épocha, e de que era
redactor o grande liberal, Agostinho de Moraes Pinto
de Almeida, distincto professor da Faculdade de Mathe-
matica.
Tinha-se-lhe manifestado a vocação para a vida poli-
tica! A febre do jornalismo tinha já entrado com elle!
Nunca mais havia de abandona-lo!
Frequentava o terceiro anno — conta o sr. Marques
Gomes — , quando, nas férias de Paschoa, recorreu á ter-
nura materna e conseguiu que a bondosíssima mãe se des-
fizesse de um valioso objecto de ouro, de seu adorno, para
lhe dar quinze moedas, com que fundou o Campeão do
Vouga, jornal destinado a advogar os interesses da re-
gião, e onde. mais á vontade, podia apagar a sede de
publicidade patriótica, que o devorava!
Mas nem por isso deixou, alguma vêz, de escrever
"também no jornal, onde se havia estreado.
Têm sido reproduzidos artigos seus d'essa épocha.
Um d'esses o foi pelo infatigável fallecido investigador,
Joaquim Martins de Carvalho, no Conimbricense, pou-
cos annos antes d'essa folha, interessantíssimo repositório
de noticias históricas, haver desapparecido.
Causou-me admiração esse artigo pela firmeza da pen-
na, manejada por mão, que ainda não tinha vinte annos,
e pela elegância e clareza do estylo!
E também pela doutrina! E' uma calorosa e enthusias-
tica apologia dos princípios da Revolução Francesa e da
sua influencia no mundo!
E sobe de ponto a admiração pensando-se que o juve-
nil estudante, que assim prestava enthusiastico culto á
liberdade, é o filho de um honrado partidário do regimen
absoluto !
E' o filho do procurador da Villa de Eixo, Francisco
136
Joaquim de Castro Pereira Corte-Real, que, em 11 de
julho de 1828, assigna o assento dos Três Estados do
Reino, declarando D. Miguel o único rei e senhor da
coroa d'estes reinos! (1)
Como é que, em tão verdes annos, resiste á força da
tradição familiar e revela uma tão grande independência
de espirito?
Facto digno de registo! Não é — como tão frequente-
mente succedia n'essa épocha — uma conversão, suggerida
pelo interesse, aconselhada pelas conveniências praticas
da vida.
Não! E' o primeiro amor, que, desde logo, lhe nasce
e arde luminosamente no coração pela fé liberal — sincero
como a sua edade — e ao qual se mantém fiel toda a sua
vida!
Como se explica? Como?
Explica-se pela poderosa influencia do meio em que
desenvolvia o seu espirito, meio esse que tem sido sem-
pre o mesmo, em todas as épochas, e que só a estreitesa
das paixões e a ignorância da historia têm podido acoimar
de meio reaccionário!
Foi ahi, foi n'esse meio académico, onde encontrou a
encantadora fonte, em que bebeu as novas ideias e os-
nobres estímulos, que lhe mostraram novos horisontes e
lhe traçaram e abriram o luminoso caminho do futuro!
Por esse tempo, o estudante de medicina, ex-soldado
do batalhão académico e um dos que entraram em fogo
no combate sangrento do Alto do Viso, João António dos
Santos e Silva, brilhante escriptor e brilhante orador, pu-
blicava o seu noíabilissimo opúsculo, ultra-liberal e demo-
(1) Doe. para a Historia das Cortes Qeraes da Nação Portugueza
pelo Barão de S. Clemente, Tom. 4." pag. 799.
157
cratico, que se intitula — Revista Histórica Politica de
Portugal, desde o ministério do Marquez de Pombal ate
1842, precedida de uma Introducção socialista, egualmente
eloquente, escripta pelo estudante Carlos Ramiro Coutinho.
O periodo académico, em que decorrem os estudos do
descendente da casa de Fijó, neto do Capitão-Mór de Feira
e dos morgados da Oliveirinha, é um periodo de grande
effervescencia liberal e de nobres aspirações politicas e
sociaes.
Estava recente a lembrança da revolução de 1848, em
França, cuja influencia alastrou pela Europa, e recentes
também as recordações da revolução popular em Portugal..
A nobre figura politica e litteraria de Affonso de La-
martine ainda encantava, annos depois, os estudantes do
meu tempo!
A sua prosa attrahia tanto como os seus versos! Não-
liamos só as Meditações e as Confidencias, caridosas
leituras para corações de dezaseis e dezasete annos! De-
vorávamos a Historia da Revolução de 1848, narração
de acontecimentos, que eram dos nossos dias, e em que
figuravam personagens, que estavam Vivas. Essa nos con-
vidava e conduzia á leitura da Historia dos Girondinos;
e para logo as nossas almas ficavam alumiadas e tempe-
radas no fogo da Revolução.
Quando, em 1849, José Luciano começou a frequentar
a Universidade, frequentavam-na também quasi todos os
soldados do batalhão académico, que militaram na divisão
do Conde das Antas, os quaes haviam feito, sob a mais
severa disciplina, depois da batalha de Torres Vedras, a
tormentosa retirada para o Porto, e muitos dos quaes,
indo na expedição de Sá da Bandeira, heroicamente se-
bateram no combate do Alto do Vizo e n'elle viram cahir
prostrados para sempre quatro dos seus companheiros de
armas e de estudos! (1)
(1) Além dos quatro mortos, houve oito estudantes feridos no
combate de 1 de maio de 1847.
Ainda é felizmente vivo um d'esses combatentes, que tinha no.
158
No anno anterior, quando elle por certo já estudava em
'Coimbra para fazer os seus exames preparatórios, que só
lá podiam ser feitos, tinha havido a debatida questão das
exéquias, que a academia quiz celebrar suffragando as
almas dos quatro estudantes, martyres heróicos da causa
popular! Prohibiu a auctoridade essa publica e solemne
manifestação de patriotismo e saudade! Contra tal acto
foram levantados os mais vehementes e ruidosos protestos
de indignação, que tiveram duradouro echo nas lendas
académicas !
Tinha depois havido, no mesmo anno, os graves con-
flictos, entre a academia e os officiaes e soldados de caça-
dores 7, por haverem desfeiteado um estudante, que asso-
l^iava o hymno da Maria da Fonte!
Em 1851 frequentava o segundo anno. Os graves suc-
■cessos políticos do paiz vão reflectir-se na ardente moci-
dade académica.
Em abril rebentou no Porto a revolta contra o governo
■do conde de Thomar e a faVor do marechal Saldanha. A
academia secunda logo esse movimento revolucionário.
O rei D. Fernando, commandante em chefe do exer-
cito, sae de Lisboa, acompanhado de um luzido estado-
maior e numerosas forças militares para debelar a revolu-
batalhão académico o posto de alferes, e é o Sr. José Maria Tavares
Ferreira, bondosíssimo homem e honradíssimo advogado em Ponta
Delgada. Também é felizmente ViVo um outro soldado académico,
que sahiu do Porto na expedição, que é o sr. conselheiro Thomaz
Nunes de Serra e Moura, muito digno ex-presldente do Supremo Tri-
bunal de Justiça. Esse e Custodio José Vieira, ambos soldados do
batalhão e estudantes do 3." anno jurídico, ficaram no Algarve por
haverem sido nomeados commlssarlos civis para flscalisar as auctori-
dades d'aquella provinda e fazer activar a cobrança das contribuições.
159 ■
ção. Ao chegar a Coimbra, muitos estudantes acorrem á
Ponte para lhe embargar a passagem. Chegam a intima-lo
para retroceder. O rei fica conhecendo a atitude da aca-
demia.
Vae hospedar-se no Paço das Escolas.
Os estudantes, em qualquer parte por onde passa
D. Fernando, soltam vivas á liberdade e á pátria e gritos
"hostis contra o ministério cabralino.
O rei, que é bondoso, sorri-se e corteja. Mas a sua
impressão é profunda. Escreve para Lisboa aconselhando
a demissão do governo. (1)
Passados dias retira-se para a capital. Uma parte das
forças do seu commando havia-se pronunciado pela revo-
lução, e para isso concorreram alguns estudantes.
Poucos dias depois, em 6 de maio, Saldanha triumphante
chegou a Coimbra para passar revista ás tropas.
Vae alojar-se na Hospedaria do Lopes, no cães, perto
•da embocadura da ponte. O largo enche-se logo de capas
negras, que fazem ao marechal uma extraordinária oVação.
Nomeia-se uma deputação de cinco estudantes para ir
-cumprimenta-lo. (2)
Santos e Silva, presidente, escreve (disse-me Filippe
<le Quental), de improviso, em uma loja de chapeleiro, na
Calçada, a saudação, que vae lêr-lhe.
Com os cinco da deputação, entram na hospedaria ou-
tros rapazes. O Duque (escreve Camillo Castello Branco)
ao deparar-se-lhe o estudante Carlos Ramiro Coutinho,
abraça-o com lagrimas, porque descobre n'elle a imagem
do seu mallogrado filho. Conde de Almoster, que havia
sido o seu orgulho e suas esperanças !
O marechal Duque de Saldanha responde á mensagem
da academia dizendo que «havia realisado as suas patrio-
(1) Veja-se a Narração dos acontecimentos da Regeneração, em
Coimbra, publicada em successivos números, no folhetim do Conim-
bricense, de 1884, pelo dr. A. L. de Sousa Henriques Secco.
(2) Narração cit.
140
«ticas esperanças, e que para isso muito tinha concorrido-
«a briosa mocidade académica, a quem tributava os maio-
«res signaes de reconhecimento e gratidão. . .» (1).
Seguiu-se depois aquelle período politico, a que um
d'esses estudantes, Torres e Almeida, mais tarde, em um
dos seus discursos parlamentares, chamou parenthesis de
paz e de melhoramentos, aberto por uma espada gloriosa
e fechado pela morte do estadista insigne, que foi Rodrigo
da Fonseca Magalhães.
No seguinte anno lectivo, em que José Luciano fre-
quentava o terceiro anno, a Rainha D. Maria II, indo visi-
tar as províncias, esteve em Coimbra, e concedeu um per-
dão de acto, o que, para rapazes de todas as épochas, era
o melhor meio de pacificação e reconciliação.
Seguiu regularmente os seus estudos, e, no anno de
1853 a 1854, matriculou-se no bP anno. Esse tinha de ser
o mais agitado da sua vida académica, passando-se graves
acontecimentos, em qne tomou parte.
Os folguedos do Carnaval de 1854 motivaram gravíssi-
mas desordens. Estabeleceu-se uma violenta lucta entre
estudantes e os que estes chamam os futricas. As provo-
cações e os conflictos repetem-se. Disparam-se tiros de
lado 3' lado. Ficam estudantes feridos. A academia procura
desforços condignos dos seus brios. Formam-se planos
extraordinariamente revolucionários. Afinal resolve o êxodo
académico da Thomarada. N'elle seguem os dois irmãos
Castros.
Mas o que é que foi a Thomarada?
No dia 1 de março, trezentos rapazes, depois de se
reunirem no Terreiro da Universidade, sahem de Coim-
(1) Narração cit.
141
bra, em ordem e na mais fraternal união, com bolsa com-
mum, sob o commando de dois chefes por elles escolhidos.
Caminham a pé pelas estradas e dirigem-se á capital do
paiz.
São recebidos de braços abertos pelas populações,
sem um único desacato d'elles ou contra elles. Vão en-
toando cânticos patrióticos e recitando versos!
Em todos os estádios da sua jornada, com a calorosa
eloquência de alguns, pregam independência e liberdade.
Chegam até Thomar, onde o governo do paiz lhes manda
um parlamentario, Francisco Damásio Roussado Gorjão,
■deputado, militar, um dos ajudantes do Marechal, presi-
dente do conselho de m.inistros, e formula-se um convénio
para retrocederem.
Todas as faltas foram abonadas. Todos os actos da
revolta cobertos pelo esquecimento, e as auctoridades de
Coimbra foram, pouco depois, substituidas.
Deve reconhecer-se que ha em todos esses aconteci-
mentos da vida académica, que ficam narrados, uma ex-
pansão de nobres sentimentos patrióticos, bellos lances
fraternaes e educativos, bem differentes de outros, em que
•do sambenito se fez gala!
A segunda épocha lectiva do anno de 1854 estava pas-
sada e rápida passou a terceira época.
Encerraram-se as aulas.
Soares de Passos, no formoso soneto, que não vem
no seu livro de ouro, pôde dizer:
Nossas lides findaram. Chega o dia
De deixar estas margens bonançosas
Onde colhemos as purpúreas rosas
Da sciencia, do amor e da poesia !
142
Quem sabe, amigo, onde a fortuna impia
Nos leva em suas ondas procelosas.
Apertemos as dextras extremosas,
Como quem um adeus eterno envia !
(1).
O estudante José Luciano de Castro Pereira Corte
Real, fez acto de formatura no dia 11 de julho de 1854,
sendo, como em todos os annos, approvado nemine dis-
crepante. Ao lado do assento do acto se declara ter o
mesmo estudante sido habilitado para o acto de Direito
Administrativo em uma das cadeiras do terceiro anno,
que frequentou espontaneamente, e de que fez exame con-
junctamente com as disciplinas do mesmo anno.
Obteve depois, nas informações litterarias, a classifi-
cação de 1 M. B. e 12 B, que eram informações que a
faculdade só costumava conferir a estudantes de distin-
cto mérito e que davam direito ao doutoramento, se qui-
zesse seguir o professorado universitário.
Os acontecimentos da sua Vida de estudante o prepa-
raram e adestraram para as luctas politicas do futuro.
Cedo lhe madrugou o amor por ellas.
Quantas Vezes anteveria os triumphos da tribuna parla-
mentar e das cadeiras da governança nas agitadas reuniões
do Theatro Académico (infelizmente desapparecido) ou nas
discussões, ao ar livre, n'esse Fórum da vida escolástica,
chamado Largo da Feira, onde todos passeámos as nos-
sas illusões e desvanecimentos e, nos sonhos dourados da
imaginação juvenil, nos julgámos predestinados para pres-
tar á Pátria algum grande e extraordinário serviço !
Pôde julgar-se o calor, com que, na juventude, tomou
(1) No álbum do seu condiscípulo Gaspar de Queiroz Botelho de
Almeida e Vasconcellos.
143
parte em tantos acontecimentos, inspirados por generosas
idéas e pelos mais nobres sentimentos, um espirito que,
no decorrer da vida publica, nunca teve hesitações, e um
coração, que, ainda no declinar da existência e nos mais
adeantados annos d'ella, pulsou sempre ardente e fervoro-
samente pela causa publica e por tudo que julgou do inte-
resse da pátria e da liberdade!
II
Um dos característicos da sua personalidade é um cons-
tante labor! E' a persistência e perseverança no trabalho!
E' a sua larga e inexgotavel capacidade para elle !
Terminadas as lides universitárias, pouco tempo, na
casa paterna, concedeu ao descanso e distracções que
eram próprias da sua edade.
Partiu para o Porto afim de se consagrar á profissãO'
de advogado.
A advocacia portuense era então constituída por uma
brilhante constelação de talentos de primeira grandeza!
Occupava o primacial logar a grande figura de Sebas-
tião de Almeida e Brito.
Homem respeitabilissimo!
Um sábio de luminosa intelligencia!
Apparecem lampejos d'ella,nos seus mais insignificantes,
trabalhos!
Ministro da Justiça da Junta Provisória do Supremo
Governo do Reino, durante a revolução de 1846 a 1847,
era também um grande liberal e um grande patriota !
Para o seu concorridissimo escriptorio é que foi prati-
car o novel advogado. Varão tão illustre é que foi o seu
mestre na advocacia ! Não o foi por muito tempo. Pelo
144
apreço, que logo começou a fazer dos trabalhos, que con-
fiava ao discípulo, e pelos elevados honorários, que lhes
taxava, em breve lhe deu a emancipação, dispensando-se
de dirigi-lo !
Um outro advogado haVia, muito distincto, gosando já
então de grande nomeada. Era Delfim Maria de Oliveira
Maia.
Dotado de notável intelligencia e rara perspicácia juri-
dica, eram modelares os seus trabalhos forenses, sendo
ainda hoje invocados e seguidos nos tribunaes os que,
depois da sua morte, foram reunidos em livro, ficando
muitos outros sepultados e perdidos nos autos !
Era Custodio José Vieira, intelligencia robusta, advo-
gado sabedor e jornalista vigoroso, mas propenso, quer
como advogado, quer como jornalista, ás demasias da pa-
lavra e virulência da linguagem.
Era Joaquim Marcelino de Mattos, homem já de si
distincto e gentil em sua pessoa !
Causidico illustre, a mais eloquente palavra dos tribu-
naes portuenses, jurisconsulto de alto mérito, fundador e
principal redactor da Revista de Jurisprudência (1856 a
1859), onde se encontram trabalhos seus e dos collegas,
cujos nomes ficam citados, de um grande valor scientifico
e pratico. (E' o pae do distincto homem de sciencia Dr. Jú-
lio de Mattos).
Era José Moreira da Fonseca, também advogado de
<iistincto mérito.
Estes foram os causidicos com quem o joven advogado
teve de defrontar-se nas lides do foro. N'ellas entrou com
galhardia, conquistando desde logo clientela e honrosa no-
meada.
Batendo-se, nas luctas da palavra, com Marcelino de
Mattos e Custodio José Vieira, algumas d'essas pugnas
ficaram celebres.
Era por vezes — tendo principalmente este ultimo por
antagonista — levado a acompanha-lo, para não parecer
fraco ou não desmerecer perante o publico, na Violência
-da linguagem.
145
«Esses maus hábitos — disse-me um dia — eu trouxe
para o parlamento e tive de corrigir-me d'elles.»
Tomando assento na camará dos deputados, pela pri-
meira vez, em janeiro de 1855, nem por isso abandonou
a sua advocacia no Porto. Fechado que era o parlamento,
voltava a ella.
Foi em um d'esses interstícios legislativos que, em fins
de 1860, interveio em uma causa criminal, cujo julgamento
acompanhei com curiosidade e interesse, embora fosse
apenas simples estudante primeiranista da Universidade.
E' que o reu era também estudante ; e o que se pas-
sou no seu julgamento mostra a elevação e nobreza, com
que José Luciano comprehendia e desempenhava as func-
ções de advogado.
Foi o caso que José de Sá Coutinho (depois Conde
da Aurora, muito intelligenle e distincto juiz, meu inolvi-
dável companheiro em dois tribunaes de segunda instan-
cia), sendo estudante do 4.° anno, foi forçado a interrom-
per os seus estudos, recolhendo-se á casa paterna, em
Ponte de Lima. Ahi se lançou na politica local com a im-
petuosidade do seu génio e a imprudência dos seus verdes
annos.
Escreveu no Braz Tisana, jornal portuense, uma cor-
respondência anonyma com gravissimas accusações ao
presidente da camará municipal, que era um advogado, de
bastante nomeada no districto de Viana. Este chamou o
jornal á responsabilidade. José de Sá Coutinho nobre-
mente se apresentou a acceita-la.
Custodio José Vieira foi o seu defensor e José Lu-
ciano o seu accusador. Aquelle, vendo que não podia
livrar o seu cliente de uma fatal condemnação (que veio a
ser de uma pequena pena pecuniária), quiz que o adver-
sário sahisse do tribunal também moralmente ferido e
exauctorado. Era fácil á facilidade de Virulência da sua
palavra !
Usando de todas as liberdades da defeza, converteu
esta em accusação, ou antes na exauctoração do auctor!
José Luciano, que havia sido de uma grande correcção na
10
146
acciísaçào, embora pedisse a condemnação do reu, teve
na réplica de tomar maior calor para cobrir o seu consti-
tuinte, castigando mesmo os excessos do seu coiiega, mas
sem ferir o accusado, que nenhuma culpa tinha dos abu-
sos da palavra do seu patrono e defensor.
Por tal forma correu o julgamento, com tanta lealdade
e nobreza foi feita a accusaçào que Sá Coutinho, apezar
de condemnado e de ser extremamente susceptível em
seus brios e melindres, ficou sempre grato e dedicado,
toda a sua vida, ao seu accusador !
E' que a comprehensão, que este tinha do orador
forense era tal como o exigiam os velhos mestres : Vir
honiis dicendi peritiis !
A advocacia, para os que teem de viver d'ella, é sem-
pre um trabalho absorvente e exgotante.
Mas não para um tal trabalhador! Além de advogado,
nunca deixou de ser jornalista !
Escrevia artigos sobre assumptos económicos ou admi-
nistrativos, no Commercio do Porto, a grave e ponderada
folha, que ainda hoje existe e que foi sempre de muita
exigência e rigor para os escriptos dos seus colaboradores.
Sempre prompto para todos os emprehendimentos, que
se destinassem á causa publica, muito especialmente para
os do jornalismo, fundou, em 1859, o Jornal do Porto
com José Barbosa Leão. Era d'este a propriedade do pe-
riódico, que logo depois passou a ser também da A. R.
da Cruz Coutinho, que afinal a tornou exclusivamente sua.
Sahiu o primeiro numero em 1 de março de 1859, com
o programma de jornal independente, sem nenhum cara-
cter partidário ; e o artigo, em que como tal se apresenta,
visivelmente da penna de José Luciano, é notável pela
elevação com que está escripto e com que proclama serem
a tolerância, a liberdade e a justiça os seus nomes inspi-
radores e o lêmma, por que se guiará o novo periódico.
147
O Jornal do Porto tornou-se logo um dos mais inte-
ressantes, dos mais auctorisados e bem redigidos do paiz :
e d'elle se pode dizer que, durante a sua existência, que
não foi curta, conservando a primitiva feição de jornal
alheio a qualquer facção partidária, foi sempre uma folha
perfeitamente honesta, sem especulações interesseiras
nem cobardes desfallecimentos, ou transigências indeco-
rosas.
A imprensa, para os que se honravam do nome de jor-
nalistas, era então um sacerdócio !
O artigo do fundo era escripto, ora por José Luciano,
ora por Barbosa Leão, mas embora sem assignatura, não
se confundiam os artigos de um com os do outro.
Tinha cada um d'elles o seu estylo, que é a luz do
pensamento sabida do fogo e calor do coração.
José Barbosa Leão era também homem de valor, lar-
gamente versado em todos os ramos da administração
publica, como mostrou no desempenho do cargo de secre-
tario geral em duas províncias ultramarinas.
Francisco de Paula Mendes, jornalista muito dis-
tincto, que havia sido redactor do Viannense, escrevia a
revista estrangeira em estylo elegante e com notável ele-
vação !
António Augusto Teixeira de Vasconcellos, sob o
pseudónimo de Daniel, escrevia senlanalmente uma carta
noticiosa e politica de Paris, e também, para o folhetim,
a revista dos acontecimentos scientificos, litterarios e ar-
tísticos da França.
Ramalho Ortigão, então no começo da sua fulgurante
vida litteraria, escrevia semanalmente, para o folhetim, a
Revista do Porto. Foi alli que se revelou e fez o grande
escriptor, que é ! A sua colaboração, que durou muitos
annos, estendeu-se mais tarde ao noticiário, que se tor-
nou primorosamente bem feito.
Entre outras, ainda temos na lembrança, pelo seu
relevo litterario, a noticia da morte da infeliz e formosa
Manoela Rey.
A breve trecho o Jornal do Porto adquiriu a colabo-
148
ração litteraria mais illustre que n'elle podia entrar! Foi
para o seu folhetim que foram escriptos os encantadores
pequenos romances, colligidos, em 1869, em volume sob o
titulo — sS'6TÕ£'.s da Provinda, pelo seu auctor, Joaquim
Guilherme Gomes Coelho —/////o Diniz, o doce e suave
realista, o inexcedivel paisagista litterario ! E foi também
no folhetim do Jornal do Porto, que, pela primeira vez,
viram a luz publica essas jóias da litteratura portugueza,
chamadas As Pupilas do Senhor Reitor e A Morgadinha
dos Canaviaes.
A correspondência diária de Lisboa foi escripta (que
nos lembre) por Augusto Ernesto de Castilho e Mello,
jornalista distincto, e por Bernardino Pinheiro, distincto
homem de letras, auctor de dois apreciados romances his-
tóricos.
Basta de digressão. Seja-nos desculpada. Conhecemos
essa folha na edade, em que a memoria é viva, e, por
lembranças posteriores, a ella está preza a nossa sau-
dade! (1).
Não me propuz occupar-me do sr. José Luciano de
Castro como jornalista, mas tive de fazer referencia a
esta sua acentuada e preeminente feição, porque anda reu-
nida a outras de que é inseparável.
Nas columnas do Jornal do Porto frequentamente
appareciam escriptos revelando a envergadura do juriscon-
sulto e o espirito jurídico do seu redactor.
E' assim que, logo no n.*" 89, de 22 de abril, se lê um
artigo, assinado pelo seu estylo, em que, sacudindo o pó
a todos os velhos bacamartes da emphiteuse, advoga a sua
reforma pela transformação de todos os prasos de vidas
(1) Tem nota no fim.
149
em prasos fáteusins contra a opinião de Correia Telles,
mas sustentando a doutrina, que depois foi legislada no
artigo 1697 do código civil e que se esboçava no artigo
1829 do projecto primitivo, que, n'esse anno, pela primeira
vez, se imprimiu!
Nem o jornalista, nem o parlamentar absorveram mtei-
ramente o advogado. Nos primeiros annos da sua Vida
politica, nos intervalos das funcções legislativas, voltava
ao escriptorio de advogado.
Finda porém a longa legislatura de 1860 a 1864— uma
das mais fecundas para o paiz e talvez a de mais trabalho
e mais honrosa para o illustre parlamentar - entrou no
funcionalismo. Foi nomeado director geral dos próprios
nacionaes. Despe então a toga do advogado e desapparece
dos tribunaes.
O seu amor pelas sciencias jurídicas, o culto, que lhe
mereciam, Vão exercer-se em outro campo. É na impor-
tantíssima revista O Direito por elle fundada, e cuja apre-
ciação não pode ser feita n^este logar.
Mas o advogado desappareceu para sempre? Dedignou-
se do exercício da profissão?
Não ! Passados muitos annos, já depois de haver sido
presidente do conselho de ministros, voltou a folhear autos
judiciaes! Voltou a ser advogado!
É que em julho de 1891 falleceu seu sogro, o Dr. Ale-
xandre de Seabra. Este era o grande advogado, de bem
sabida nomeada, a cujo escriptorio affluiam autos penden-
tes em muitas comarcas e nos tribunaes superiores. Nos
últimos tempos da sua vida, impedido pela doença, não
lhes pôde dar expedição. Fallecendo, havia em seu poder
uma grande acumulação de processos, em que o mandato
conferido não havia sido desempenhado.
O sr. José Luciano tomou a peito o ser o herdeiro
não só dos direitos, mas também das obrigações do seu
grande parente e grande amigo. Voltou a compulsar autos
judiciaes e a escrever n'elles. Por conhecimento próprio
podemos dizer que, se era grande e illustre o primeiro
patrono, não foi menor, nem menos illustre o segundo!
150
Podemos affirmar conscienciosamente, pelo nosso estudo,
que os constituintes nada perderam com a substituição do
mandatário!
Já vae muito longo este artigo e ainda teríamos de
falar do jurisconsulto!
Mas como fazel-o? A obra do jurisconsulto não pode-
ria apreciar-se em um só artigo.
Ella anda espalhada, largamente espalhada, pelos pare-
Uma das faces da casa da Anadia, ondefalleceu o estadista
ceres das commissões parlamentares, pelos relatórios dos
seus decretos e das suas propostas ou projectos, por mui-
tos dos seus discursos nas duas camarás, quer defenden-
do, quer atacando projectos de lei; e, muito principalmente,
151
pelos quarenta e cinco volumes da revista O Direito, que
fundou, em 1868, com António Alves da Fonseca, e que
teve uma honrosa influencia e alta importância nos pro-
gressos dos nossos estudos juridicos. Tudo exigiria um
largo espaço e uma apreciação condigna, feita por penna
competente, vigorosa e illustre, que não pela minha!
É n'elle admirável a alliança do jurisconsulto com o
politico!
Foi um fervoroso sacerdote da sciencia do justo, mas
conservando também sempre no peito o fogo sagrado pe os
ideaes políticos da sua mocidade ! Justam ac tenacem pro-
positi viram!
Jornalista, advogado, politico, jurisconsulto, parlamen-
tar, homem de Estado, por elles terçou armas e trabalhou,
com ardente fé, em toda a sua longa vida!
Que descance em paz o infatigável trabalhador, que
amou a sciencia e amou a pátria; e que a ambas serviu e
a ambas honrou!
NOTA
Conhecemos essa folha na edade, em que a memo-
ria é viva, e, por lembranças posteriores, a ella está
presa a nossa saudade.
(Pags. 148)
O que escreveu isto conheceu bastantemente os redactores e
collaboradores áo Jornal do Porto, porque foi leitor assiduo desde
o seu apparecimento e porque — ainda que sete annos depois d'elle —
foi jornalista incipiente na honrada folha do Porto. Para ella, durante
um certo periodo, antes de ser fundado o Echo do Lima, escreveu
semanalmente umas modestas cartas limienses.
D'esses tempos lhe ficou o amor pela instituição, que é a mãe da
liberdade, e sem a existência da qual, em toda a sua plenitude, não
pode haver governos livres.
E porque assim pensava o illustre homem de estado, que tanto
se di-tingniu e hourou nas lides do jornalismo, queremos deixar aqui
transcriptas as passagens de uma biographia de Lamartine, em que
se narra o seu proceder para com a imprensa por occasião da Revo-
lução de 1&48.
É a .seguinte :
Plus tard, Lamartine, membre du Qouvernement provisoire, mi-
nistre des Affaires étrangères, défend et sauve celui-là même qui
attaque le GouVernement avec le plus de violence. Voici en quelles
circonstances :
Certains journaux, tels le Constitutionnel, V Assemblée Nationale,
la Presse, dénonçaient le GouVernement provisoire à toutes les défian-
ces; ils Taccusaient de demolir et de ne pas rebâtir; ils Taccusaient
de lenteur criminelle, ils Taccusaient d'être Tauteur de troubles et de
ruines.
Le journal d'Émile de Girardin, La Presse, sous ses apparences
socialistes, semble réactionnaire au peuple. Le GouVernement est
vilipendé, et le peuple va manifester contre les journaux qui lui sont
hostiles.
154
Rue Montmartre, le 29 mars, à huit heureá du soir, des attrou-
pements se forment devant rimprimerie du journal La Presse.
La foule grossit, s'excite, et, furieuse, commence à assiéger les
ibureaux.
< A bas la Presse ! Mort à Qirardin!- crie-t-on.
Encore un instant et on va enfoncer les portes; mais la garde
nationale, arrivée à temps, dégage les bureaux, sans toutefois par-
venir à dissiper Taitroupement.
< Girardin est coupable de trahison envers la Republique ! Justice!»
crie-t-on encore.
La garde nationale a demande des renforts ; le general Courtais
arrive et parvient à calmer Teffervescence.
Pendant quil donne des ordres, pendant qu'il parlemente avec la
foule, quelques citoyens sont admis dans le cabinet d'ÉmiIe de Girar-
din, tandis que d'autres courent chez Lamartine réclamer du Gou-
Vernement un terme aux outrages de la Presse.»
La réponse de Lamartine calma les plus acharnés. et on la trouva,
le lendemain, dans la proclamation qui mit fin aux dangers courus
par les divers journaux plus ou moins hostiles au Gouvernement.
Voici cette réponse: <:La Republique exige Tinviolabilité de la
pensée humaine ; elle admet Ia liberte d'être injuste envers un gou-
vernement; le Gouvernement ne doit répondre qu'en sauvant la
patrie de ses ennemis au dehors et de tout désordre au dedans.»
La Presse et Émile de Girardin étaient sauvés.
(lamartine par Gabriel Clouzet et Charles Fegdal.)
A uma virtuosa memoria
(1)
(Na morte da Excellentissima Senhora
D. Anna dos Prazeres Calheiros de Magalhães)
Nunca é tarde para rememorar virtudes! As boninas
da primavera, cortadas pela enxada do coveiro, ainda não
poderam reverdecer! As lagrimas ainda afluem aos olhos;
é pungente a dôr; e imperecedoura será a saudade no co-
ração dos que a conheceram e amaram !
A 5 de abril do corrente anno, falleceu, em Vianna do
Castello, uma senhora que foi um raro complexo das mais
benévolas virtudes: deixou de bater um coração que foi
cofre dos mais puros affectos, fonte inexaurível do bem,
altar onde tiveram culto todos os sentimentos bons e deli-
cados.
A sua vida escreve-se em duas phrases: ninguém a
excedeu na practica do bem, ninguém com mais resi-
gnação soffrcu o mal!
D'ella se pôde dizer o que um dos maiores, se não o
maior, dos escriptores contemporâneos disse da vida de
uma illustre titular: «foi um grande exemplar de moral
*
(1) Este artigo foi escripto a bordo de um paquete de Africa em
viagem de Cabo"verde para Lisboa, em maio de 1875, sendo depois
publicado no n.° 896 do tcho do Lima, de 1 de julho d'esse anno.
De novo se publica, porque são inolvidáveis as virtudes da sancta
senhora e constituem, ainda agora, a melhor consolação e o melhor
património na vida de suas filhas !
156
social e christã que tanto precisam estes nossos tempos,
abundantes de sublimes tlieorias, tristemente minguados
na practica d"eilas.»
Ao chegar-nos a noticia do seu passamento pezou-nos
dolorosamente não podermos com o nosso respeito tomar
Solar do Conde da Barca, na fregnezia de Sá (Ponte de Lima)
um logar no sahimento, que levou o féretro da Virtuosa
senhora ao cemitério de Vianna. Prohibia-o a immensidade
do mar!
Paguemos pois por esta forma o tributo de respeito a
tão nobre e sancta memoria !
A mão, que, por vezes, traçou a chronica das festas e
alegrias da sua casa, colhe hoje, no campo triste da morte,
um goivo para desfolhar na sua sepultura !
A exC"^ snr.^ D. Anna dos Prazeres Calheiros de
Magalhães Araújo Baceliar nasceu em 1 de abril de 1818.
Casou a 12 de setembro de 1854 com o exC"" snr. An-
157
tonio de Araújo de Azevedo Pereira Pinto, morgado de
Sá, e representante de um dõs mais distinctos liomens de
Portugal do fim do século passado e do principio d'este,
António de Araújo de Azevedo, conde da Barca (1).
Habitando successivamente em differentes terras d'esta
provincia, e geralmente conhecida n"ella; tendo sempre,
pelas larguezas e bizarria que tanto estavam no caracter
de seu marido, franca a sua casa para as pessoas com
quem estavam relacionados, e recebendo ali todos os seus
amigos a hospedagem mais cordeal, mais sincera, mais
larga, e mais intima, teve a illustre senhora constante
occasião de patentear os dotes de bondade e de distincção
que a Providencia lhe prodigalisara.
Filha de uma das mais distinctas famílias da provincia;
alliada a outra que conta nomes illustres nas fastos da
independência e da liberdade da pátria ; compossuidora de
uma importante fortuna; irmã de um exemplar e bondo-
-sissimo caracter, Nicolau Calheiros, que pertence ao nu-
mero d'aquelles homens que Deus dá para consolação ás
causas vencidas para representarem o que ha de nobre,
de digno e de respeitável no passado, a exc."^^ snr/'^
D. Anna dos Prazeres Calheiros de Magalhães de Araújo
Bacellar nunca deixou que o fumo das Vaidades humanas
empanasse a limpidez das suas virtudes; que o prejuízo
(1) António de Araújo de Azevedo, conde da Barca, enviado
extraordinário ás cortes de Haya e S. Petersburgo, ministro plenipo-
tenciário junto á Republica Franceza em 1795, 1797 e 1801, conse-
lheiro de estado, ministro e secretario de estado dos negócios da
marinha e ultramar em 1814, primeiro ministro em 181", sócio da Aca-
demia Real das Sciencias, grã-cruz das ordens de Christo e da Torre
e Espada, da de Izabel a Catholica de Hespanha, e da Legião de
Honra de França, nasceu em Ponte de Lima a 14 de maio de 1754 e
morreu a 21 de junho de 1817 no Rio de Janeiro, para onde havia
acompanhado a corte por occasião da entrada do exercito francez em
Lisboa. E' muito conhecido no mundo litterario por uma defeza de
Camões contra Monsieur de Ia Harpe.
Nas Memorias da Academia Real das Sciencias se encontra o
seu Elogio Histórico por Francisco Mendes Trigoso.
158
dos pergaminhos nobiliarchicos alterasse a lhaneza e ame-
nidade, tão fina, tào deh'cadj, e tão christà, do seu tracto,
égua! para os grandes como para os humildes, e entre as
boníssimas pessoas da sua familia era apontada a sobre-
excellencia dos quilates da sua bondade.
Era muito para vêr como falava aos pequenos, como
prestava attenção aos pobresinhos, que se lhe approxima-
vam ! Nunca um infortúnio lhe bateu á porta que não fosse
soccorrido.
Tinha sempre para os pobres uma esmola e uma pa-
lavra de conforto !
Presenteara o ceu o seu lar, cercando-o de meninas,
que são hoje continuadoras das virtudes da mãe. Dera-lhe
Deus a missão mais sublime da mulher, a missão de mãe !
Ser mãe! Ligar as mãos das tenras avesinhas humanas
para a supplica ao Omnipotente; ensinar-lhes a balbuciar
uma prece; prender-nos para sempre pelo amor, que um
dia nos ha-de afastar dos perigos e abysmos da existên-
cia, segredando-nos as palavras — lembra-te que fazes
chorar tua mãe; fazer o que não podem fazer as esco-
las, nem os livros, nem as academias, — a formação do
coração: tal é a missão das mães!
E a exc."''' snr.^ D. Anna dos Prazeres Calheiros de
Araújo Bacellar soube elevar-se á altura da sua missão ;
soube ser mãe, não pela severidade dos rigores, mas pela
sublimidade dos exemplos!
Era tanta a abundância da sua bondade, tão larga a
conformidade do seu animo que as amarguras communs a
todo viver humano passavam por ella sem a alterar. Tinha
porém o seu coração de esposa extremosissima de soffrer
a mais dura provação para elle.
A 9 de agosto de 1868 a morte roubou-lhe o esposo.
Achou-se no mundo sem aquella enérgica vontade.
Soffreu duramente. Cedeu porém a dôr á virtude. Tinha
a cumprir deveres. Resignou-se.
Era para admirar o contraste que então se lhe notava.
Coberta com os crepes da viuvez; fulgurando-lhe, na phi-
sionomia plácida e bondosíssima, as rosas que attestam o
159
vigor da existência, e coroada já pelos cabellos prateados^
e embranquecidos em poucos mezes.
Ninguém lhe pôde notar uma contracção de desespero,
um gesto de impaciência ou enfado!
Se ás vezes as lagrimas lhe assomavam aos olhos, logo
um sorriso de piedosa esperança, de conformidade, de re-
signação lhe adejava aos lábios.
Era', personalisada e real, a doce imagem da Resigna-
ção, tantas vezes reproduzida na tela maravilhosa dos pin-
tores christàos!
Estava porém resolvido, nos impenetráveis arcanos da
Providencia, que a sua alma sancta passasse pelo crisol
de maiores amarguras.
Veio pois a doença dolorosa e incurável, veio o pade-
cer acerbo, veio a certeza da morte, e de deixar sem a
maternal direcção as filhas que tanto amava !
Foi crudelissimo o seu soffrer ! Bem poderá a desven-
turada senhora interrogar a própria Divindade, como na
sua immensa dôr fizera Job, o grande mytho da paciência
humana, e dizer-Ihe:
. . . Não me condemnes, ouve-me,
Por que assim me julgaste? Acaso é digno
De ti calumniares-me, avexar-me
A mim que sou de tuas mãos feitura?
Porque ao dia
Do cárcere materno me has trazido?
Oxalá que não vista perecera
De olho nenhum vivente, e houvera sido
Como se nunca fosse, — trasladada
Do ventre á sepultura! (1)
Estas interrogações tremendas, estes gritos pungentes^
que, representado os gritos da humanidade, um enorme e
incógnito poeta põe na bocca do maior modelo de paciên-
cia, de que rezam as letras sagradas, não os soltou ellaí
(1) Job, cap. X, Garrett, Camões, cant. II.
160
Acceitou resignada, e como vindas de Deus, todas as
dores. Esperou tranquilla o momento fatal. A sua alma
pura não se arreceava da morte: e, quando ella se avisi-
nhava, despediu-se das filhas, que, como anjos do Senhor,
lhe Velavam o leito de agonia !
Despedida solemne !
E que expressão ha ahi na terra,
Em lingua de homens, que traslade ao vivo
Todo esse accumular de sentimentos
Que em si de tal instante o adeus encerra. (I)
Depois. . . chegado o momento supremo, hora solemne
e tremenda, em que os horisontes do mundo desappare-
cem, e começam já a surgir os do infinito e da eterni-
dade, ella entreviu Deus que ia premiar as suas distinctas
virtudes e pediu-lhe, com certeza lhe pediu, que transfor-
masse as suas dores em felicidades para os que mais
amava!
Que assim seja.
(1) Garrett, cit.
Luiz Corrêa Caldeira
Luiz Corrêa Caldeira (Luiz Arsénio Marques Corrên
Caldeira, nos registos universitários e no Diccionario
Bibliográfico, de Innocencio) nasceu na villa de Ponte
de Lima em 9 de janeiro de 1827, na parte da povoação,
11
162
que fica iia margem direita do Lima, denominada Alcni
da Ponte, pertencente á freguezia rural de Sancta Marinha
de Arcuzêlo, em cuja igreja se baptisou.
Era mais novo doze annos do que seu irmão António,
o iliustre funccionario e parlamentar, de quem já me oc-
cupei n'este livro.
Ainda creança sahiu com seus pães da terra em que
nasceu e parece que nunca mais a ella Voltou.
Filho de um official superior do exercito, na edade
própria, entrou no Collegio Militar, e ali cursou os pri-
meiros estudos, que o encaminhavam para a profissão das
armas, a que se destinou.
Nos annos de 1845 a 1844, 1844 a 1845 e de 1845 a
1846, encontra-se, nas Pautas ou Relações dos Estudan-
tes da Universidade de Coimbra, matriculado no 1.°, 2.^
e 5.'^ anno das Faculdades de Mathematica e Philosophia.
Sendo capitão de infantaria e secretario do Azylo dos
inválidos Militares, em Runa, foi eleito deputado pelo
circulo eleitoral de Torres- Vedras para a legislatura, que
durou de 7 de julho de 1858 a 26 de novembro de 1859.
Falleceu, aos 52 annos, no dia 8 de agosto de 1859.
Foi, como não podia deixar de ser, um sentimental,
um amoroso! Ainda muito novo, casou com uma senhora
iliustre, da familia dos Condes de Sampaio, que deixou
viuva. Amou-a apaixonadamente!
Da sua vida somente mais podemos dizer que foi: em
politica, um eonservador; em moral, um virtuoso; em
religião, um erentef
N'essas poucas linhas ficam compendiados todos os
factos da vida particular e publica d'esse homem, que,
peio talento, foi verdadeira e grandemente iliustre!
Quasi pode dizer-se que a sua Vida não tem historia,
nem se presta, pelo seu retrahimento e modéstia, á bio-
graphia !
165
E' como poeta de uma alta e fecunda inspiração, que
elle tem direito a um logar de honra nos fastos de oiro da
litteratura!
II
Coimbra é sempre a terra fecunda e bem fadada da
poesia! Nenhuma outra ha que mais a faça nascer; que
mais a bafeje; que mais a acalente e acaricie!
Berço amoroso de poetas!
Tem-no sido sempre desde Camões e Sá de Miranda
igreja de Santa Marinha de Arcnzêlo, onde o poeta foi baptizado.
a Garrett, Castilho, João de Lemos, Gonçalves Dias,
Rodrigues Cordeiro, Soares de Passos, Silva Mattos, João
de Deus, Anthero, Theophilo Braga, Guerra Junqueiro,
164
Crespo, João Penha, Cândido de Figueiredo, António
Feijó, Queiroz Ribeiro, Eugénio de Castro e António No-
bre!
E tantos, tantos outros!
São da épocha, em que viveu em Coimbra, os primei-
ros Versos de Luiz Corrêa Caldeira.
Aiii nos apparece fazendo parte da plêiade de poetas do
Trovador, no qual collabora com as poesias: A Nuvem,
A Serra do Monte Juncto, As Lagrimas da. Rosa,
O teu nome, e ainda com a que dedica ás iniciaes A. M. M.
Versos dos 16 aos 20 annos!
Mas que significação litteraria e Valor tem esse campo
da sua iniciação poética, chamado O Trovador?
O Trovador foi um jornal poético, creado por impulso
e iniciativa de João de Lemos, e que depois constituiu o
iiVro, que assim é designado: — O Trovador, collecção
de poesias contemporâneas por uma sociedade de aca-
démicos (Coimbra, Imprensa de Trovão, 1848).
Na pagina, que precede este titulo da obra, vem o
nome de Luiz Corrêa Caldeira entre os nomes dos re-
dactores e collaboradores, que são: António Gonçalves
Dias — o grande poeta brazileiro —João de Lemos, A. X.
Rodrigues Cordeiro, Augusto Lima, José Freire de Serpa,
Couto Monteiro, Castro Freire, António de Serpa e outros.
Lopes de Mendonça, que Bulhão Pato (I) diz que tinha
na fronte o sêllo do génio e da desventura, talento que
brilhou, como um astro, e que, ainda em vida, o apagou
a loucura, nas Memorias da Litter atura Contemporânea,
consagra largas paginas á apreciação critica das poesias
e dos poetas do Trovador, a que chama «livro que ha-de
(IJ Sob os Cl/prestes, pag. 97.
105
«Viver no futuro; campo onde fizeram as primeiras provas
«talentos distinctos; estádio poético, que marca o alvore-
«cer de um movimento littcrario e reflecte as aspirações
«de uma nova- escola.» (1)
Depois de esta e outras apreciações muito honrosas,
assumindo a alta imparcialidade de juiz, o critico aquilata
o Valor das poesias do livro, em seu conjuncto, nos se-
guintes períodos, que entendemos dever transcrever pela
auctoridade que dão aos seus julgamentos:
O talento — diz — nunca se apreciou com um ponto de admiração.
A critica não consiste nas cortezias poéticas, que precedem quasi
sempre os ín-folios do tempo de El-Rei D. João V: para ser provei-
tosa é necessário que seja inteligente: sendo inteligente obedece
antes de tudo aos preceitos do gosto e ás leis que o génio creou para
a arte e para a poesia.
O principal defeito do Trovador, a meu vêr, é estar encerrado
n'uma escola muito limitada de sentimentos individuaes.
A excepção do Sr. João de Lemos e do Sr. Rodrigues Cordeiro,
os poetas cantam apenas a virgindade das suas comoções, em face
da natureza e dos seus Íntimos desejos. É o eterno tliêma do amor,
assimilado ás opulentas evocações do mundo exterior ; pantheismo
do sentimento, aonde a idealidade ás vezes se perde na divagação da
descripção material : — no cálix da flor pendido para a terra; no desa-
brochar da rosa orvalhada pelos prantos da aurora — no escoar tre-
mente da fonte q.ue murmura — no scintiiar das estrellas qme doude-
jam — no reflexo encantado da lua, que torna um cinto de saphiras o
rio onde mostra a palidez da sua face: são nuvens que andam perdi-
das pelos plainos do ceu, e que o poeta baptisa com os mais doces
nomes e interpela com os mais ternos queixumes.
Não formulamos uma accusação, mas manifestamos apenas um
facto.
Para engenhos moços, que ainda não sympathisaram com as gran-
des questões em que se revolve a humanidade; que vêem apenas
(1) Ricardo Guimarães, Visconde de Benalcanfôr, escreveu o
seguinte:
«Na historia da arte moderna, o Trovador, de Coimbra, é mais
do que um marco miliario, é um monumento ornado de todas as graças
do lyrismo moderno (Rev?. Contemp. de Port. e Brazil, biografia de
Thomaz Ribeiro)..
166
no liorisoiite da vida uw.a nuilher, bella como os seus sonhos encan-
tados, é este o eterno canto; canto que nunca esmorece; que resus-
cita todos os dias com fervor de novas illusões; que adormece a
Laura de Petiarclia; que faz palpitar de emoção a Beatriz de Ber-
nardim Ribeiro; que debulha em lagrimas a saudosa Natércia; canto
phrenetico que é mais um anhelar ardente do que uma paixão reali-
sada; que, se não é assim, quasi sempre se abysma no desespero da
traição, ou desencantamento de posse; que morre como flores cres-
tadas pelos primeiros nortes do inverno, envolvidas na torrente que
as cospe nas margens sem bellêsa e sem perfume.
A breVe trecho Veremos como Luiz Corrêa Caldeira
foi um dos que mais depressa se emancipou d'esta escola.
A])reciando depois cada um dos poetas do Trovador,
Lopes de Mendonça diz:
O Sr. Luiz Corrêa Caldeira estreou-se brilliantemente, sobre-
tudo na Nuvem e nas Lagrimas da Rosa: tem direito ao titulo de
poeta.
Entretanto a terceira oitava da Nuvem está tocada de gongorismo,
que nos não agrada muito. O Teu Nome recorda demasiadamente La-
martine, e lia um Eolo, que nos faz mau effeito por ser recordação
clássica mal trazida n'essa poesia toda afinada no mysticismo christào.
Devem ser d'essa épocha, isto é, dos desoito aos vinte
ou vinte e dous annos, os versos escriptos no álbum de
Rodrigues Cordeiro.
Para aqui os trasladamos, como amostra e documento
da feição lyrica do poeta:
Tu que, nas horas meigas do crepúsculo.
Vês, n'um ceu que roxeia o fim do dia,
Levantar-se da purpura do liorisonte
A pensativa imagem da Poesia;
Tu que lês, com teus olhos distrahidos.
Nas paginas sem fim da imensidade;
Que escutas, nos lamentos do Oceano,
O longo respirar da eternidade;
167
Tu que sentes gemer, em cada follia,
Um acento da lyra do Senlior;
Tu que descobres, na mudez dos astros,
Os mysterios da mão do Creador;
Fita, ás vezes, no azul do firmamento,
Da rainha da noite o rosto baço,
E talvez, apezar da negra sorte.
Nosso pensar se encontrará no espaço!
Encontram-se estes versos em uma colecção de poe-
sias escolhidas dos melhores poetas contemporâneos e
que se denomina Lvsia Poética (Rio de Janeiro, Typ. de
F. O. Regadas, 1857). Lendo-os um dia ao joVen magis-
trado e meu querido amigo, António de Magalhães Barros,
nobre coração apaixonado por tudo que interessa á gloria
da sua terra, tanto bastou para os publicar, com um pe-
queno artigo em um annuario de Ponte de Lima, onde o
poeta era absolutamente ignorado e desconhecido, mesmo
dos que lá lêem e desejam aprender!
Vamos agora falar do periodo da sua Vida litteraria,
em que o poeta segue outro ideal: em que alonga a Vista
para mais largos horisontes e longínquas regiões.
Nascido na ridente terra do Minho, como diz um poeta:
Onde o Lima a ponte morde
Com dentes de cristal fino.
168
ou, como disse o Bernardes:
Junto do Lima, claro e fresco rio,
Que Lethes se chamou antigamente.
O rio que verás tão socegado
Que té parece se arrepende
De levar agua doce ao mar salgado ;
não podia haver-se esquecido das formosas e Verdejan-
tes paisagens, no meio das quaes abriu os olhos á luz
e passou a sua primeira infância, lembranças essas,
que — como diz Castilho — rescendem aos beijos e
leite da feliz meninice, e que esta para sempre regista.
Alem da Ponte. — Margem direita
Igreja de Sancto António da Torre- Velha e Campo do Amedo
Mas a sua musa não quiz h'mitar-se a voar, como abe-
lha doirada, pelos campos da infância e da mocidade; pelos
sinceiraes floridos do Lima e do Mondego. Tinha forças e
azas para ir mais longe.
Aprouve-lhe, librando-se nas azas da inspiração, subir
até ás regiões celestes; e — águia de longínquo vôo — ir
banhar-se nas aguas do Jordão e do Euphrates para nos
descrever as áridas paisagens da Arábia e da Palestma!
Para trazer aos nossos olhos e para nos fazer sentir
a tristeza e a desolação das ruinas das cidades ex-
tinctas '
Sem renegar do seu passado lyrico, o poeta toma nas
mãos a Biblla e procura trasladar para a poesia portu-
gueza, em versos de admirável contextura, a poesia su-
blime dos hebreus !»
E' a poesia sacra, a poesia religiosa, que merece agora
todo o seu culto. ^ , ^ j ^
São os carmes d 'esse género e que desde logo deno-
minou - Flores da Bíblia, que occupam todo o seu pen-
'^Tn'tentava reuni-los em livro," que um critico illustre diz
que viria a ser, realisado o emprehendimento, um livro
monumental? (1)
Quaes os seus modelos? Onde os encontrou?
Fazem porventura os seus versos lembrar os de um
outro poeta, também nascido juncto do Lima? Esse que
teve no claustro e tem na litteratura o nome de Frei
Agostinho da Cruz? (2) Foi o nosso vate um seguidor
ou imitador da poesia mystica de Santa Thereza de Je-
sus que é havida por modelar? Não! Em meu fraco jmzo,
elle\eve individualidade própria. As suas composições di-
íl) Pinheiro Chagas, Ensaios Criticos. ^
9 Teve no século o nome de Estevão Pimenta e era irmao de
Dioio Bernardes. Veja-se o livro Varias Poesias de Frei Agosmho
da Cruz, publicadas, em 1771, por José Caetano de Mesqu>ta ; o Ar-
Chico Bibliográfico da Unioersidade de Coimbra \m, V^;i. ^^^^
seguintes ; e o artigo de Sr. Dr. Mendes dos Remédios publicado no
Almanach de Ponte de Lima para 1910.
170
Vergem essencialmente das do misticismo da santa poetisa
€ das do frade arrabido, em que o amor divino, ins-
piração de ambos, toma tantas Vezes a côr do amor iiu-
mano !
Tem outra magestade, outro pensamento e outro sopro
de inspiração a poesia biblica de Luiz Caldeira !
E' no numero da Revisla Popular, correspondente a
5 de fevereiro de 1851— quando contava vinte e quatro
annos — que, sob aquelle titulo de Flores da Bíblia, em
um prologo, a que dá o nome de Introducção, escripto
parte em elegante prosa e parte em verso, expõe o pen-
samento do seu teníamen grandioso.
Impõe-se-me o dever de pôr aqui uns excerptos d'essa
prosa e d'esses versos.
Expõe n'aquella a ideia do seu poético emprehendi-
mento pela forma seguinte :
A Bíblia, o mais admirável de todos os livros que existem no
mundo, é um poema, mas um poema magnifico como o espirito que
inspirou os seus differentes cantos, e magestoio como o assumpto
que trata.
Singelo e tocante no livro de Ruth ; austero e profundo em
Job ; pomposo, magnifico e sublime, nos cânticos ; terrível e amea-
çador, no propheta /saias, aquelle livro sublime ora comove, ora
rasga o coração do homem ; e arrebata-o sempre da esphera em que
se agita, ás regiões superiores conhecidas unicamente por Deus e
por suas angélicas creações.
La Harpe, Fenelon, Bossuet, Diderot, J. J. Rousseau, e muitos
outros escriptores de reconhecido merecimento, disseram, sobre as
bellezas poéticas dos livros santos, tudo que era possível dizer-se :
nada mais poderei portanto accrescentar a este respeito a não repe-
tir as palavras d'aquelles auctores.
Os cânticos de Moysés são excessivamente superiores a tudo
que escreveu Homero ; e este mesmo poeta é quasi nada, se a par
171
das suas obras se colloca a niagestade dMsaias a pintar as n-.agnifi-
cencias de Deus.
Querer fazer da Bíblia um poema seria fazer uma coisa que já
está feita ; colher porém parte d'essas flores de que estão semeados
os livros santos, sujeita-las ao metro e linguagem nacional, é a em-
preza que me propuz ; e esta empreza é tanto mais difficil quanto é
grande o risco de depreciar com uma noVa forma as bellezas d'essas
composições dos escriptore- sagrados.
Vejam agora os leitores o começo da Introducção em
verso :
Passae aos olhos meus, sombras sagradas,
Magestosoí heroes dos Livros Santos,
Augustos nomes, imniortaes imagens
Do povo do Senhor ! Os tempos correm,
Da mào divina os séculos s'escoam,
Apagam-se as Nações, somem-se Impérios.
E de entre as ruínas de esq.iecidos povos
Vos.sa gloria immortal scientila sempre.
Seguem-se mais cento e quarenta e dois Versos, eguaes
a estes na elevação e espontaneidade garreteana.
É na poesia bíblica que o poeta conquistou o seu maior
quinhão de gloria.
São tão desconhecidas as suas producçòes que o me-
lhor culto que pode render-se á sua memoria litteraria é
torná-las conhecidas.
Por isso para aqui transcrevemos as estrophes sublimes
da Jerusalém. Vão todas porque não sabemos fazer es-
colha, ou a quaes dar preferencia. Não nos atrevemos a
mutilá-las.
172
Jerusalém
Como assim solitária está assentada uma cidade
cheia de povo : chegou a ser uma como viuva a senhora
das gentes.
Jeremias.
Quem tivera a lyra d'ouro
Dos prophetas de Sião !
Quem vira as terras da Syria^
Por onde corre o Jordão !
Quem vira os campos despidos,
Os muros encanecidos
Da velha Jerusalém,
Que nas partes do Oriente
Brilha ainda á luz fulgente
Do astro de Bethelem.
Teu nome é grave poema,
O sacro-santa cidade.
Escripto em letras de sangue
Nos fastos da humanidade.
Um brado teu no Oriente
Revolveu todo o Occidente,
Dobrou a cerviz do mar :
Abalou fortes impérios,
Fez em vastos cemitérios
Tuas arêas tornar.
Quem não tem curvado a fronte.
Sob as arcadas sombrias.
Ouvindo o órgão chorando
Co o pranto de Jeremias ?
Quem não ouviu pelas naves
Passar. os cantos suaves
Dos poetas da Judêa ?
Quem entre aquella harmonia
Não bebe o fel d'agonia
Da cidade que prantêa ? !
175
Jerusalém, a senhora,
A rainha d'Israel !
Aquella pátria soberba
Cantada por Daniel !
Que recordações de gloria !
Quantas paginas d'historia
N'este nome de Sião !
Quem não pensou um instante
N'aquelie drama gigante
De Christo, da Redempção? !
Magos poetas da Syria,
Inspirados pelos céus,
Lyras sagradas da Biblia
Chorando a ira de Deus,
Vossa passagem no mundo
Foi um gemido profundo,
Um grito d'escraVidão ;
E vossas sombras sagradas
Choram inda debruçadas
Sobre as aguas do Jordão.
Oh ! se eu escutar podéra
Do deserto a brisa ardente,
Dos rios de Babilónia
Sobre a languida corrente !
Se beijar pudera os traços,
A senda de vossos passos
Nas terras do captiveiro ;
Se o ecco de vossas magoas
Ouvira gemer nas aguas,
E nas folhas do salgueiro !
Não posso ; a mão do destino
Prendeu-me em terra distante ;
Do vosso inspirado engenho
Sigo a estrella scintillante;
E escuto a voz divina
Das harpas da Palestina,
Dos psalmos do rei cantor ;
E colho as flores caldas,
As lagrimas desparzidas
Sobre a terra do Senhor.
_ m
Deixo vagar os meus olhos
Sobre as paginas da historia.
E pelas trevas do tempo
Vejo brilhar vossa gloria;
Vejo, nas remotas eras,
Passar as sombras austeras
Dos velhos reis de Judá,
Cujos túmulos desertos
Fixam, já entre abertos,
O valle de Josaphat.
Os tempos fogem debalde
P'ra ti, ó Jerusalém,
PVa ti, cidade guardada
Pelo Golgotha e Belém !
PVa ti, que ostentas d'um lado
Esse berço consagrado
D'uma crença sem egual,
E do outro a sepultura,
Que tragou a raça impura
DMmperio quasi immortal !
Que importam chagas abertas
Pelo ferro, e a escravidão,
PVa ti, a eterna cidade
De David, e Salomão?
Vês Babylonia deserta,
Sua memoria coberta
Do lodo das tradições;
E a estrella dos teus magos.
Por cima de teus estragos.
Brilha aos olhos das nações.
Teus patriarchas dormiam.
Em sua eterna mansão,
Escutando a voz das aguas
Da torrente do Cedrão,
Junto do valle sagrado,
E pelos céus destinado
PVa julgar a humanidade ;
D'esse valle de mysterios,
Que tem de vêr os impérios
Entre o mundo e a eternidade !
170^
E veio o ferro acordal-os
De Nabuchodonozor,
Instrumento dissoluto
Das justiças do Senhor :
E suas cinzas dispersas
Foram na terra submersas
Com o teu templo sem par :
O ouro de teus altares
Gasto nos impios folgares
Do devasso Balthazar.
Chorae, prophetas sagrados,
Chorae, filhos de Sião,
Escravos de Babylonia,
Da mãe da devassidão !
Vossas tribus perseguidas,
Vagam tristes, e perdidas
Nos desertos de Judá ;
Chorae, porque o vosso pranto
Vae erguer o denso manto
Das ira.s de Jehovah.
Eis emfim, eis d'Izaias
A prophecia de pé !
Curvae, ó reis, o joelho,
Que outro rei nascido é :
Outro rei, que a um sopro escasso
Dispersa os astros no espaço,
E povoa a immensidade !
Outro rei, muito diverso,
Que tem aos pés o universo,
E na mão a eternidade !
Jerusalém, foi immenso
Qual teu nome o crime teu :
Que o diga, no mundo errante
O resto do povo hebreu ;
Que o diga a cruz do martyrio.
Que em teu nefando delirio
Viste do monte Sião ;
Que o diga Israel inteira,
Vergando em terra estrangeira
Co'o peso da execração.
176
Quem pode pintar agora
As tuas tribulações,
Ora captiva, por terra,
Ora orgulho das nações?
Ora vendo o sol d'Oriente
Deslumbrar do mundo a gente,
Mostrando-lhe a cruz divina,
Ora no lodo arrastada
Pela torrente abrazada
Da tormenta de Medina.
Bradaste, e todo o Occidente
A teu brado estremeceu I
E o turbilhão das cruzadas
Os impérios revolveu !
\'êdes as arêas ardentes.
Testemunhas indifferentes
D'essa guerra colossal ;
Os feitos de Godofredo,
De Balduino e Tancredo,
Heroes do Tasso immortal.
Agora triste, esquecida.
Pobre filha d'lsrael.
Vês teu templo profanado
Pela planta do infiel !
A Voz chorosa do vento
E para ti como um lamento
Na harpa cie Jeremias :
És cidade de tristezas.
Passou nas tuas grandezas
O sopro das prophecias.
Mas tu não podes morrer.
Não podes, santa cidade;
Tu vives àó do passado.
De lembranças, de saudade
Pôde o tempo fugitivo
Esmagar império altivo,
Consumir as gerações ;
Mas não roubar á memoria
Todo esse livro d'historia.
Guardado nas tradições.
J77
Tu vives de cada pedra,
Que marca um passo de Deus,
Da estrella que aos ires reis magos
Dirige os passos dos céus;
Vives de pas-adas magoas,
Do gemer das pobres aguas
Da fonte de Siloé;
K d'angelica poesia,
Da vaga melancolia
Da Virgem de Nazaretli.
Tu vives de teus prophetas,
De Jerichó, do Jordão,
Da Judôa, do Mar-morto,
Da gloria de Salomão ;
Vives da vida do mundo,
D'esse mysterio profundo
Da vida do Redemptor !
Tens ainda régio manto,
Por throno o sepulchro santo,
Por sceptro a cruz do Senhor !
Que dizem os leitores da sublimidade d'esses Versos?
Não ousamos fazer comparações, nem insistir nas que
ficam feitas !
Não podemos, nào as sabemos fazer !
Por um lado, a raridade d'este género de poesia e,
por outro, a pobrêsa do nosso saber !
Não alcançamos iêr os versos do brasileiro Pereira
Caldas (1), nem os de João Pinto Delgado, cuja persona-
(1) Padre António Pereira de Sousa Caldas, poeta basileiro, for-
mado em leis pela Universidade de Coimbra, que chegou a ser des-
pachado juiz de fora de Barcellos, e depois se consagrou ao estado
ecclesiastico. Nasceu no Rio de Janeiro em 24 de junho de 1/62 e
falleceu em 2 de março de 1814. (Vid. cit. Diccionario Bibliographico,
de Innocencio, tomo 1.°).
12
178
lidade só conhecemos pela Memoria do íallecido erudito
escriptor Souza Viterbo (1).
Mas pelas apreciações, que lhes são feitas, julgamos
terem ambos ficado muito áquem do poeta contemporâneo.
A leitura dos primeiros annos da nossa mocidade trouxe-
nos á memoria o proemêto, que se encontra nas Premières
Méditations, de Lamartine : intitulado — La Poesie Sa-
créc', dedicado, com uma nota, a Mr. de Genoude.
Relendo agora os bellos versos do grande poeta francês,
não sentimos empalidecer a admiração pelos carmes subli-
mes do poeta português !
Diz a ultima estrophe do poemeto de Lamartine :
Silence, ô lyre ! et vous, silence,
Prophètes, voix de l'avenir !
Tout l'univers se tait d'avance
Devant Celui qui doit venir.
Fermez-vous, lèvres inspirées ;
Reposez-vous, harpes sacrées,
Jusqu'au jour oíi, sur les liauts lieux,
Une voix au monde inconnue
Fera retentir dans la nue:
Paix á la terre et gloíre aux cieux!
V
Exige capítulos especiaes, n'este trabalho, o que vae
dizer-se.
Para que a sorte do poeta lhe não fosse — em tudo e
(1) João Pinto Delgado, judeu portuguez nascido em Silves e
fallecido em 1590. (Vid. cit. Diccionario Bibliographico, tomo 4.° e 10."
e a citada Memoria de Souza de Viterbo).
179
sempre — fatal e adversa; para que o seu nome não desap-
parecesse ficando para sempre sepultado nas escuras tre-
vas de um perpetuo olvido — de que não podiam redimi-lo
as poucas linhas de Lopes de Mendonça, — quiz a fortuna,
como que arrependida, que, volvidos annos após a sua
morte, um escriptor illustre lhe consagrasse algumas pagi-
nas, brilhantes como todas aqueilas em que elle pôs a elo-
quência e o encanto do seu fulgurante e prodigioso talento!
Foi Pinheiro Chagas.
Foi este insigne litterato, este brilhante e infatigável
polígrafo — que também foi um poeta - quem lhe sagrou
a memoria como a de um predilecto das musas e eleito
da inspiração ! Foi quem lhe assignalou o tumulo, depon-
do-lhe sobre este a aureola de vate sublime!
Colocando-o ao lado de Soares de Passos, o imortal
auctor do Firmamento e da ode a Camões — tão prema-
turamente morto também — e de Lobato Pires, outro pre-
dilecto de talento e de desventura (1), intitulam-se Três
Poetas as paginas, a que nos referimos, apparecidas pri-
meiro no Aichivo Pittoresco e transferidas depois para o
livro, que tem por titulo — Ensaios Criticos (1886).
Julgamos de toda a vantagem, para quem lêr, substi-
tuir a nossa descolorida prosa pela prosa elegantissima de
Pinheiro Chagas e versos de Luiz Caldeira, porque será
substituir chumbo ou pinchebéque por oiro sobre marfim.
Começa assim Pinheiro Chagas:
Corrêa Caldeira apenas chegou a balbuciar a linguagem sublime,
que, estamos bem certos, elle faiaria depois com immensa superiori-
dade.
.... As poucas poesias, que elle deixou, ou talvez as poucas que
eu conheço d'elle, dá-r;os direito de pensar que, se tivesse vida, e
podesse desprender livremente o seu génio, havia de occupar um
dos mais elevados logares na litteratura contemporânea, como tenta-
remos mostrar nas paginas que seguem.
(1) Sobre o talento e desventuras deste infeliz poeta pode lêr-se
um artigo de Bulhão Pato no Atmanacli de Lembranças ^dLVSL 1885.
180
Depois, no capitulo especial que lhe consagra, diz :
Não se revelou completamente o poeta ; só três ou quatro poesias
formam o verdadeiro pecúlio litterario ; mas que imaginação, que ar-
dor, que verdadeiro enthusiasmo transluzem. bastantes vezes incor-
rectamente, n'um pequeno legado que deixou á posteridade.
Como n'elle se sente, não o litterato, que adoptou a especiali-
dade da poesia, mas o poeta, o verdadeiro poeta, que chora, que
geme, que delira, e que lança ao publico essas paginas soltas, em que
se revela o desalinho da inspiração, a que a lima não succedeu ; por-
que parecia que o poeta presentia o seu prematuro emudecer, e
tinha pressa de aproveitar todas as caricias da musa, e de sorver até
á ultima gota, no cálix dourado da poesia, esse licor inebriante dos
sublimes delírios.
Leiam alguns dos fraguementos das Flores da Bíblia, livro que
elle nunca chegou a publicar.
Vejam o Mar Morto.
Pelo elevado Valor, que o brilhante escriptor dá a esta
poesia de Mar Morto, aqui a vamos publicar, pondo em
notas as apreciações que elle faz.
O Mar Morto
Na terra gretada e nua (1)
Pesa um ceu abrasador ;
Áridos montes d'areia.
Tisnados pelo calor :
(1) Como o poeta se possuiu bem da grandeza biblica do quadro,
€ como encontrou na sua palheta não só as cores mais explendidas,
mas também as mais próprias para o pintar.
A voz do poeta abafa-se n'um religioso terror : as paizagens não
as descreve só, mostra-as taes quaes ellas devem ser.
Veja-se a descripção do principio:
Na terra gretada c nua
Transcreve toda a primeira decima.
181
Tudo immovel, mudo, absorto.
Tudo fulminado e morto,
Nesse valle de terror :
O mesmo vento se cala :
Só o silencio aqui falia
Das vinganças do Senhor I
Ao longe, o sulco azulado
Do poético Jordão,
Que vem trazer ao Mar-morío
As lagrimas de Sião :
E sob os céus, que scintillam,
Da Arábia as serras desfilam
Até que perder-se vão
Co os pardos morros d'areia
Das montanhas da Judeia,
Vigias da Solidão! (1)
Xa terra immovel s'estende.
Como liquido metal,
Do Mar-morto a face immensa
Adormecida no vai.
Mar-morto 1 — lagoa impura I
Mudo abysmo, em que murmura
Uma agonia immortal I
Mar de fúnebres lembranças.
De suspiros, de vinganças.
De Sodoma. a sensual !
Xo mudo espelho das aguas
As margens pintar-se vem,
Co'a face nua e queimada
Das serranias d'alem ;
Com a terrível paisagem,
Que dos raios a passagem,
Xa fronte marcada tem ;
Com a imagem devastada
D'essa terra fulminada
Que tanto pranto contem !
(1) Depois de transcrever esta decima. Pinheiro Chagas diz:
"Este quadro é perfeito. A descripção como que nos opprime. Invo-
luntariamente procuramos respirar, como se realmente nos rodeasse
a atmosphera abafadiça das plagas do lago Asphaltite.
__182
E que silencio profundo
N'esse espectáculo sem par !
Que terror povoa ainda
A superfície do mar !
Nem uma vaga murmura,
Nessa vasta sepultura
De mysterio e de pesar,
Aonde as aguas serenas
Vem, de quando em quando, apenas,
Nas margens rumorejar.
Não tem a terra uma planta.
Em que gema a viração,
Um fio d'agua corrente.
Um florinha em botão I
O céu, vaporoso e ardente!
Nem uma ave innocente,
Que povoe a solidão!
Alguma águia pesada,
Que bate o vôo cançada,
Para as montanhas de Hebrãol
Contudo, aqui foi Sodoma,
Além Gomorra existiu ;
Entre os encantos e as galas
Todo um povo aqui dormiu !
Havia fontes, frescura;
E fofa branda verdura
Essas encostas vestiu !
Agora, luto somente.
Porque a mão do Omnipotente,
De sobre a terra as baniu !
Oh! Deus, que justiça a tua!
Que assustadora lição !
Um povo todo esmagado,
Geração por geração !
Que pranto, que áó profundo,
D'aquellas aguas no fundo
Ainda bradando estão !
Como se lê neste espaço,
A passagem do teu braço.
Teu grito de maldição !
185
Agora o sol fulgurante
Surge num céu de rubim,
Em que lentamente passam
Vapores côr de marfim ;
Como que débil e exangue,
O seu raio côr de sangue
Tinge as nuvens de carmim,
E os píncaros incendeia
Das alturas da Judeia,
E das terras de Siddim.
Mas quando a voz da tormenta
Começa ao longe a bramir,
E um denso manto sombrio
Vem de luto o céu Vestir ;
Quando a louca tempestade,
Nos echos da soledade,
Vem desgrenhada rugir;
E que as rajadas do vento.
Chorando no firmamento,
A terra vem saccudir;
Então o valle desperta
Do seu somno secular;
Do lago os fundos abysmos
Se rasgam de par em par ;
Densos turbilhões de areia.
Que a luz do raio incendeia:
Giram rápidos no ar,
E correm sobre o deserto
Entre o fúnebre concerto
Dos furacões e do mar I
Vagas turvas, espumantes,
Fervendo em alvo cachão.
Fogem batidas dos ventos,
E, de baldão em baldão,
Vão rebentar furiosas
Nas praias betuminosas.
Do lago da maldição.
Cuspindo, nas penedias,
As espumas alvadias,
Rasgadas pelo tufão !
_ 184
No poente, côr de sangue,
Bruxulêa o temporal,
Aonde as azas de fogo
Sacode o génio do tnal !
Ronca o trovão nas montanhas ;
E, das tremulas entranhas
Do mar, do seio do vai,
Illusão, delirio ou sonho,
Sobe como um grito medonho.
Um gemido sepulchral !
Como que as torpes cidades,
Que as vagas em si contém.,
Estremecem nos abysmos,
E be lamentam além ;
Essas irmãs deshonestas.
Que adormeceram nas festas
Aos pés de Jerusalém;
E um anjo, co'a ponta daza
Foi desperta-las em braza.
Num céu em braza também ! (1)
Abrahào debalde implora !
Não pôde o Senhor mover !
Nem dez justos, que buscara.
Nem só dez, pôde escolher!
E Sodoma adormecida.
Profana, torpe, esquecida.
No seu nefando prazer.
Foi ainda, ébria e devassa,
Bradar por sua desgraça,
E o próprio Loth offender!
(!) Depois de transcrever esta decima e as quatro anteriores.
Pinheiro Chagas escreve :
'Ha um verdadeiro delirio n'esta descripção; o génio do poeta
corre desgrenhado, como o génio da tempestade, e o espirito do lei-
tor, arrastado na carreira vertiginosa, quasi que sente, dentro em si,
o temporal medonho, e pára, afinal, pávido e extático, a contemplar
o quadro sublime, que doudeja furioso dentro de si. A inspiração
apoderou-:-e do poeta, arrancou-o do mundo prosaico e transpor-
tou-© ás espheras da sublimidade, como o carro de fogo tansportou
outrora o propheta do lodo da terra aos âmbitos do empyrio !
Vê-se que, ainda que quizesse, não podia parar. . .
185
Assim, a terra despida
Inspira tristeza e dó;
O mar espelhento e mudo,
Pensativo, triste e só I
Como que a sombra invisível
Das iras do Deus terrivel
D'Israei e de Jacob,
Inda nos ares troveja.
Em quanto ao longe bafeja
Os valles de Jericó !
Inda um mysterio insondável
Ha nesse mar sem egual,
Que desdobra amargas aguas
Por suas margens de sal ;
E as condemnadas cidades,
Nas verdes profundidades
Dos abysmos de crystal,
Surgem, ás vezes, sombrias.
Petrificadas múmias.
De um corpo monumental I
Até os mesmos vapores
Do lago de perdição,
Fétidos, levam ao longe
A febre, a desolação !
E os fructos. que apparecem.
Que isolados esmorecem
No meio da solidão.
Só tem, no seio abrasado,
Um pó, subtil e tisnado.
De denegrido carvão !
O coração arquejando.
Treme de assombro e pavor,
Ante essa terra deserta,
Tisnada pelo calor !
Tudo immovel, mudo, absorto.
Tudo fulminado e morto
Nesse valle de terror !
Tudo tomado de espanto
Pelo sopro sacrosanto
Da cólera do Senhor I
186
Nas duas poesias bíblicas, que ficam transcriptas,
todos poderão admirar a pujança do seu estro, remontan-
do-se até Deus e aos primitivos tempos da humanidade!
Parece-me encontrar n'essas duas composições o mes-
mo divino sopro do Le Feii da Ciei, de Victor Hugo (1).
V
Mas o poeta ficou sempre olhando para as bandas do
oriente e com o seu pensamento como que preso e exclu-
sivamente absorvido na antiguidade biblica?
Deixou de beber em outras fontes da inspiração?
Julgou a sua musa somenos e indigno d'ella qualquer
outro assumpto?
Não!
Luiz Correia Caldeira commungava n'aquelles cânones
da arte e de universal bom gosto, legislados por Victor
Hugo, e que o génio immenso d'esse simi-deus litterario
tão admiravelmente executou e impôz ao mundo das le-
tras!
E' no prologo das Orientaes, que elle os expôz e for-
mulou :
L'auteur de ce recueil n'est pas de ceux qui reconnais-
sent à la critique le droit de questionner le poete sur
sa fantaisie, et de lui demander pourquoi il a choisi tel
sujet, broyé telle couleur, cueilli à tel arbre, puisé à telle
source. L'ouvrage est-il bon ou est-il mau Vais? Voilà tout
le domaine de la critique. Du reste, ni louanges ni repro-
(1) Les Orientales.
187
ches pour les couleurs employées, mais seulement pour la
façon dont elles sont employées. A voir les choses d'un
peu haut, il n'y a en poésie ni bons ni mauvais sujets, mais
de bons et de mauvais poetes. D'ailleurs, tout est sujet;
tout releve de Tart; tout a droit de cite en poésie. Ne nous
enquerons donc pas du motif qui nous a fait prendre ce
sujet gaí, horrible ou gracieux, éclatant ou sombre, étrange
on simple, plutôt que cet autre. Examinons comment vous
avez travailié, non sur quoi et pourquoi.
Hors de là, la critique n'a pas de raison à demander, le
poete pas de compte à rendre.
No mesmo volume da Revista Estrangeira, em que
Correia Caldeira publicou a Jerusalém e o Mar Morto,
apparece a Melancolia, bella expressão do seu lyrismo.
N'essa poesia ha versos, como este:
Tu és a Vaga profunda.
Que sobre a praia suspira,
Harmonia gemebunda
Das cordas da eterna lyra,
És a lua, que suspensa
Corre na abobada extensa,
Como uma pérola imensa
N'uma concha de saphíra!
És o som de brônzeo sino
Que bate ao longe trindades ;
És a estrella de ouro fino;
O murmurar das cidades;
O castello abandonado.
Esquecido, derrocado,
Como o espectro do passado
Chorando antigas saudades.
188
Apparece, em differentes números, o largo poemeto, que
tem por titulo Uma Paixão— Romance em versos e em
Cartas (pag. 205 a 206, pag. 240 a 241 e pag. 301 a 303).
Não tem assignatura. Mas, pela contextura e esponta-
neidade do verso solto — em *que era verdadeiro discípulo
de Garrett — e pela repetição de phrases suas, empregadas
em outros trechos poéticos; e por ser publicado em jornal
litterario de que era redactor, pode afiançar-se pertencer-
Ihe e ser o seu auctor. (1)
Sem assignatura foram publicados na mesma Revista
os dous quadros biblicos, em prosa, que têm por assumpto
um Eva e o outro Agar, acompanhados de duas bellas
gravuras, e tem de considerar-se tão seus como se esti-
vessem assignados com o seu nome.
Ainda ali apparece a poesia dedicada á memoria de Gar-
rett, que Pinheiro Chagas diz estar abaixo do seu talento.
Mas mostra como elle tinha esse seu mestre no cora-
ção e no pensamento.
Afora os versos de poesia biblica aquelles a que o
auctor dos Ensaias Criticos dá maior valor é á poesia inti-
tulada a Voz do Oceano.
Seria defraudar a memoria de Luiz Corrêa Caldeira
(1) Tenho para mim de que nenhuma duvida pode haver de que
os versos d'esse poemeto são do redactor da revista. O anonymato
tem fácil explicação. Traduz talvez um sentimento de pudor!
Não quiz confundir a sua religiosidade de marido inseparável do
seu nome, com a sua phantasia de poeta. Não conheci pessoalmente
Luiz Caldeira, mas conheci o irmão; e, pelas austeros e meticulosos
escrúpulos d'este, descubro os d'aquelle.
189
não traslasdar para aqui o que d^essa composição diz o
brilhante escriptor e critico auctorisadissimo, que é tam-
bém o poeta do Poema da Mocidade.
Vejamos — exclama- a obra prima do seu talento, a poesia em
verso solto intitulado a Vos do Oceano, em que se encontram qua-
dros que Garrett intercalaria com orgulho no principio de quinto
canto do Camões. Não achem ousada a comparação. Leiam e julguem.
Oiçam o principio, e admirem a gradação lenta e artística, que
prepara tão bem o effeiío dos dous últimos versos:
Vento das noites, que a meus pés revolves
As folhas amarellas do arvoredo ;
Lúgubres sons da livida floresta ;
Aguas do rio, que fugis lá abaixo.
Beijando as margens tristes já sem flores,
E reflectindo nos céus em que não brilha
Uma estrelinha só; vozes sem nome,
Que murmuraes nas regiões do espaço ;
Deixae que o grito immenso do Oceano
No silencio geral se escute apenas.
Que descripçòes se seguem a este bonito exórdio ! Como o poeta
soube escutar as vozes dos mares, e como soube traduzir as impres-
sões que ellas despertaram no seu peito! Corrêa Caldeira sentiu
com um fogo indisivel, e o quadro, que pinta na imaginação, repro-
du-lo na tela do poemeto com uma verdade e com um vigor admirá-
veis! Vede o mar em noite de bonança:
Vêde-o beijar as rochas carcomidas
Por essas praias, que o luar inunda:
Como uma virgem, tremula de pejo,
E que o amor, mau grado seu. arrasta,
A vaga no areal passa gemendo ; '
A fraga cinge em fugitivo abraço,
E foge vagarosa, desparsindo
Argênteo pranto sobre limos verdes.
O pensador succede ao contemplador. O poeta debruçando-se so-
bre o abysmo do Oceano, pergunta a si mesmo que mysterios se escon-
derão sob aquellas aguas. Lá no fundo tenebroso e nas insondáveis
entranhas desse leão espumante, esconde-se um mundo hórrido!
190
Alli chimeras mil passam medonhas !
Fabulosos jardins alli florecem
Sobre um solo de pérolas e conchas;
Alli, das maravilhas, escondidas
Aos olhos dos mortaes, são testemunhas
Entes sem nome que talvez olharam
Das creaçòes as obras primitivas,
E que se arrastam no despojo immenso
Cesquecidas nações, de mortos séculos.
Alli ainda os continentes jazem
D'um mundo que ha-de vir; alli se encerram
Povos e gerações talvez inteiras!
E nos segredos da grandeza eterna
Suas ondas o mar rola bramindo !
Vejamos ainda a descripçào que se segue, e lastimemos mais uma
vêz a sorte fatal que prostrou um génio que se poderia elevar a ta-
manha altura !
O mar, ha pouco tranquilo e bonançoso, desperta finalmente á
voz da tempestade. O génio da procella corre desgrenhado por sobre
as ondas, e esses liquidos corseis, de crinas espumosas, empinam-se
furiosos ao sentirem o látego da tormenta ! A descripçào do poeta é
inexcedivel. Ha um trecho de prosa com que o podemos comparar.
É verdade que esse trecho é a obra prima de um dos primeiros pro-
sadores franceses. É a descripçào que se lê no Capitaine Paul de
Alexandre Dumas.
Se me não tivesse já alongado tanto em citações, transcreveria
essa admirável pagina de prosa. Não resisto, contudo, á tentação de
citar o final do quadro.
Pela extensão das praias se levantam,
Em pé nos mares, as imóveis penhas.
Á luz fugaz do scintilante raio
Suas frontes rugosas relampejam ;
A tormenta sacode em torno delias
Alvo sudário d'humidos vapores;
E, ao Vê-las assim, quedas, tranquillas.
Na confusão da natureza inteira,
Quem poderá affirmar que não festejam.
Mudos espectros, sob um veu de espuma,
Da morte os anjos, que passando bradam.
Suas azas de fogo sacudindo
Nas solidões do furibundo Oceano !
191
Creia o leitor que o poeta, que escreveu versos como estes, é
quasi desconhecido na sua pátria ! e que, para se poderem ler os seus
escriptos, é preciso folhear intrepidamente os periódicos litterarios
da épocha em que viveu.
Portugal é tão abundante em poetas desta força que, um de me-
nos, segundo parece, não faz falta na inimensa lista !
Refere-se ainda Pinheiro Chagas elogiosamente á poe-^
sia A Minha Sina.
Aprecia largamente a traducção do Oceano Ab,v, de
Victor Hugo.
Apesar — diz — de ficar a uma immensa distancia do poeta fran-
cez, comprehendeu perfeitamente a ideia da poesia, e conservou-lhe
o tom de infinita tristesa.
Lendo o original e lendo a traducção, parece-nos que escutámos
um canto delicioso e plangente e que ouvimos depois o echo longin-
quo que lhe repete as notas, enfraquecidas sim, mas egualmente sen-
tidas, egualmente melancholicas.
Compara em seguida algumas das estrofes de Victor
Hugo com a traducção, e faz a sua critica notando-lhe as
bellesas e os defeitos.
VI
Aqui encerro este trabalho, que nem sei que nome
possa dar-lhe.
Não é um estudo da obra do poeta e muito menos uma
critica delia.
192
Não é um panegírico, porque não dispomos das tintas
e cores litterarias, nem da académica auctoridade, que
seria preciso imprimir-lhe.
E' apenas um feixe de noticias e informações sobre
um poeta iliustre, mas quasi desconhecido!
Quizemos chamar a attenção de algum desvelado cul-
tor das letras, de coração dedicado e penna iliustre, que
A ponte antes de mntilada e tal como era quando o poeta nasceu
Tirada de uma velha gravura de 1780, que se encontra nos Estrangeiros no Lima
com elementos e faculdades que nos faltam, reunindo
em volume todas as admiráveis composições do desde-
nhado vate, lhe eleve o monumento litterario a que tem
direito.
Sempre nos doeu o olvido que tem pesado sobre o
seu nome! Até na pequena terra, de que é filho tão il-
iustre!
Quiz pagar-lhe o culto de admiração e de amor que,
em meu coração, sempre tem existido pela sua persona-
lidade litterariamente tào alta e pessoalmente tão nobre
193
e tão pura; e (porque não dizê-Io?. . .) em que entra tam-
bém a lembrança daquella, cujas mãos acariciaram o poe-
ta, quando menino, e as quaes eu tive a infelicidade de
não poder t)eijar e molhar com lagrimas quando ficaram
para sempre arrefecidas !
13
NOTA 1."
O pae do poeta
No Dicionário biográfico de Portugal se encontram os seguintes
traços da vida de losé Marques Caldeira :
Nasceu em Coimbra a 6 de janeiro de 1786 e falleceu em Runa a
11 de fevereiro de 1855.
Fora destinado por seus pães á carreira das letras, mas os acon-
tecimentos de 1808, em que o estrangeiro invadio a pátria. Vieram
afasta-lo dos estudos. Assentando praça no batalhão académico, en-
trou nos sangrentos combates da Roliça e do Vimeiro.
Passando depois ao exercito regular, aiistoií-se no batalhão de
caçadores n." 6, assistindo ás batalhas do Bussaco, de Salamanca e
de Fuentes de Honor, na qual ficou gravemente ferido.
Acabada a guerra peninsular, foi despachado alferes para caça-
dores n.° 12 em janeiro de 1818 e promovido a tenente em junho de
1821.
Professando ideias liberaes, entrou nos combates da Cruz de
Morouçus e da Ponte do Vouga em 26 e 28 de junho de 1828, mere-
cendo os elogios e recomendação do major Francisco Xavier da Silva
Pereira, depois Conde das Antas. Emigrou por Qaliiza, concorrendo
muito para que o seu batalhão entrasse em Hespanha bem discipli-
nado, embarcando depois para Inglaterra e de lá para a liha Terceira,
onde foi requisitado peio comandante do batalhão académico, João
Pedro Soares Luna, para instructor desse corpo.
Fêz .parte da expedição, que desembarcou no Mindelo, destin-
guindo-se logo na sortida a Villa do Conde. Destinguiu-se depois em
outras occasiões, principalmente no ataque ao sitio do Pasteleiro, no
dia 5 de julho, em que ficou gravemente ferido. Recebeu então pelo
se:i valor a cruz da Torre e Espada. Também se distinguiu no com-
bate de 25 de julho de 1853, em que, defendendo o posto que lhe fora
destinado, á direita do reducto de Campanhã, mereceu os elogios dos
seus superiores. Levantado o cerco do Porto, continuou a tomar
parte activa nas operações, commandando a 6." companhia de caça-
dores n." 12, prestando n'essa qualidade grandes serviços na batalha
de Almoster. Foi elle que tomou a bandeira do novo regimento
miguelista.
196
Na batalha da Asseiceira foi commandante das avançadas e o
primeiro a romper fogo, desalojando o inimigo das suas posições e
perseguindo-o até que cahiu gravemente ferido.
A 4 de setembro de 1854 foi nomeado commandante do corpo de
inválidos de Runa, desempenhando este cargo até 1849, em que, pela
morte do brigadeiro Palha, lhe pertenceu o governo interino deste
estabelecimento. Passou ao commando effectivo quando se refor-
mou, em 1851, no posto de brigadeiro.
Por penhorante confiança da veneranda senhora, que é a viuva
illustre do Conselheiro António Correia Caldeira, me foram confia-
dos documentos honrosissimos da vida militar do pae de seu marido,
e entre esses o conceito que das suas qualidades militares, moraes e
intellectuaes formavam os marchaes Duque da Terceira, Duque de
Saldanha e Conde das Antas, documentos esses que são dignos da
publicidade. Desviar-nos-ia, porém, do nosso assumpto, occuparmo-
nos desses documentos. Só aproveitamos os que esclarecem as notas
transcriptas.
Delles se vê que, antes de ser nomeado alferes para o batalhão
de caçadores x\.° 12, era já n'elle sargento-ajudante, e foi depois alfe-
res-ajudante e tenente-ajudante.
Dahi proveio a sua longa residência em Ponte de Lima.
Sobre esse batalhão, esclarecendo quanto fica dito, é digno de
ler-se um interessante artigo, que se intitula — O batalhão de Ponte
de Lima — Caçadores n.° /P — publicado no Almanach de Ponte de
Lima para 1910 pelo joven, brioso e illustrado tenente José de Maga-
lhães Barros de Abreu Coutinho.
197
NOTA 2.*
Nascimento do poeta. — Casa em que nasceu.—
Edade em que sahiu da terra natal. — Ingrati-
dão.— Um alvitre em honra de sua memoria.
Ainda por captlvante obsequio do Dr. José Alberto dos Reis,
distincto professor e illustre reitor da Universidade de Coimbra,
podemos aqui pnblicar, extrahida dos archivos d'esta, uma copia da
certidão de baptismo de Luiz Corrêa Caldeira,
É a seguinte:
CERTIDÃO
O Padre Manoel José Gomes, coadjutor nesta Fregfiiezia de Santa Mari-
nha d'Arcuzello, Conceliio de Ponte de Lima, etc.
Certifico que revendo o livro dos Baptismos d"esta mesma Freguezia, a
folhas 183 se acha o assento do theor seguinte: Luiz, filho legitimo de José
Marques Caldeira, Tenente do Batalhão numero doze, e de Dona Anna Efi»
genia Corrêa, ambos da Villa de Ponte de Lima ; Neto paterno de José Mar-
ques Caldeira e de Dona Joaquina Tereza de Macedo, da Cidade de Coimbra,
e Materno de José Rodrigues Lima e de Dona Marianna Tereza, da dita
Villa. Nasceu no dia 9 do mez de Janeiro de 1827, e foi baptisado solemne-
mente com imposição dos Santos Óleos, por mim, o Vigário João Alves de
Mello, no dia 13 do dito mez, e foram Padrinhos o Reverendíssimo Frei Luiz
dos Sarafins, Monge Benedictino, e madrinha Dona Joanna Ritta do Carmo
Saraiva, e por sua procuração tocou o Illustrissimo Gaspar Pereira Ferraz
Sarmento, da mesma Villa. E para constar lavrei o presente assento era ut
supra. O Vigário, João Alves de Mello. — Nada mais se continha no dito que
aqui fielmente copiei e ao qual me reporto. Santa Aíarinha d'Arcozello, 18 de
Junho de 1844. Em ausência do Parocho, o Coadjutor, Padre Manoel José
Gomes.
RECONHECIMENTO
Reconheço a lettra e assignatura supra ser do próprio. Ponte de Lima
era ut supra. Em testemunho de verdade (logar do signal Publico) O Tabel-
lião, António Rocha Paris.
Causa reparo que, estando Luiz Corrêa Caldeira matriculado no
L" anno das faculdades de mathemaíica e philosopliia, no anno de
198
1843 a 1844, o tivesse sido com uma certidão passada em 18 de Junho
d'este ultimo anno.
Haveria permissão para junctar mais tarde, depois da matricula,
esse documento? Haveria uma posterior substituição por erro da
anterior?
Não me é permittido agora deslindar melhor este caso.
Está pelo documento, que fica transcripto, authenticamente veri-
ficado que o poeta nasceu na margem direita, e assim com visiveis
indicações de ter nascido na casa das tias.
Mas qual casa era essa? Conheci ainda a Senhora D. Marcelina
Saraiva morando na casa do Largo da Alegria, que faz esquina para
a velha estrada, tendo n'ella fallecido no dia 6 de fevereiro de 1866
na provecta edade de 95 annos.
Penso que também ahi haveria fallecido a Senhora D. Joanna.
Evidentemente não foi n'essa casa que nasceu o poeta.
Dizia-me a tradição que as duas senhoras tinham morado na casa
do mesmo Largo, fronteira aquella, e que é hoje habit"ada pelo Sr. José
Maria de Abreu de Lima e sua di.-tincta famiha; e também me dizia
terem residido na casa de Faldejães, que foi de João Luiz Salgado
Achioli e Vasconcellos.
Em qual d'e]las residiriam, ao tempo do nascin:ento do poeta?
Eis o ponto a investigar.
O meu respeitável e illustrado amigo, Monsenhor Pereira Lima,
digno Prior da freguezia de Nossa Senhora dos Anjos da Villa de
Ponte de Lima, — com o obsequioso intuito de auxiliar-me — entre-
gando-se a pacientes investigações, nos antigos livros da sua paro-
chia, chegou a esclarecer este ponto por forma a não deixar duvidas.
Já depois de impresso o que fica escripto no texto, descobriu no
livro 4.°, folhas 8, a reproducção, promovida pelos pães do neophito,
do assento de baptismo da freguezia de Arcozêllo, com a declaração
de que nasceu casualmente n'esta freguezia e dizendo-se que a ma-
drinha D. Joanna Rita do Carmo Saraiva era moradora no logar de
Faldejães.
Fica assim apurado, sem sombra de duvida, que o poeta nasceu
na casa histórica, de que se occupa Lima Bezerra, nos Estrangeiros
no Lima (paginas 302 a 304), e da qual começa dizendo:
Esta casa, com seu delicioso jardim, pomares, hortas, pinhal, lago e vei-
gas, tanto enobrece esta freguezia. . .
Bello ninho para o nascimento de um poeta!
Vista deslumbrante a da ampla e formosa varanda, formada por
199
elegantes columnas de pedra ! Como que tendo aos pés a larga veiga
verdejante a mirar-se no Lima, que a namora e beija, na estação cal-
mosa; e, soffrego e ciumento, a abraça e invade no inverno!
Casa em que nasceu, em 1628, António Pereira Rego, auctor do
celebre livro Instrucçani da Cavallaria de Brida, escriptor, poeta e
valoroso soldado da independência nacional, que mereceu seroheroe
e protogonista de um poemeto de Jerónimo da Motta, Abbade de
Mujães.
Diz o poeta :
Donde o Lima a ponte morde
Com dentes de cristal fino
António Pereira Rego
Nasceu; e desde menino
Em vez de cana pueril
Montou os brutos altivos.
De nobre sangue gerado,
Ede acções heróicas filho,
Não sei qual seja mais nobre,
O herdado ou o adquirido.
E passados uns desaseis annos desde o nascimento de Luiz Cal-
deira, também n'essa casa (que havia sido comprada por seu pae)
nascia um querido companheiro dos meus primeiros annos, que desde
logo revelou as brilhantes aptidões litterarias e scientificas de que
era dotado, Lourenço Malheiro, engenheiro de minas, fallecido em
1890, quando acabava de entrar no parlamento e a fortuna parecia
sorrir-lhe e que ia levanta-lo ás eminências para que os seus com-
provados talentos o recommendavam!
Infeliz !
*
Terminada a guerra, era bem natural que a Sr.^ D. Anna Efi-
genia quizesse ir reunir-se a seu marido. E tanto mais isso se im-
punha ao seu amor, que elle soffria ainda muito do grave ferimento,
recebido na batalha da Asseiceira, em que um estilhaço de metralha
lhe fracturou e dilacerou o braço direito, ficando por muito tempo
privado do movimento d'esse braço, como consta do attestado do
Cirurgião-Mór de Infantaria Ligeira, Marcellino Miguel Gomes (1).
Ferimento este que por certo determinou a sua collocação em Runa.
Partiu pois para Lisboa a Sr."" D. Anna Efigenia com o seu filho
mais novo.
António, como já dissemos no esboço deste, ficou sempre ligado
ás tias.
(1) Documento em poder da familia.
200
Tinha oito annos incompletos o futuro poeta das Flores da Bibíía
quando saliiti de Ponte de Lima com sua uiãe.
É o que mostra o seguinte e interessante documento, que é sagra-
damente guardado por sua familia:
*^ri-
SIGNA ES.
liade. ài <^^annos
Ahurc ^Ue*^^^^oS«^
Rosto ^f^^-e'^^-yv^
Cahéllo -.
Sobrolhoi f^Oí-fiV^
Olhos
Hariz 1
J_ E N D o-s E apresentado hoje nesta Prefeitura
^^^'^^^^
/^<;^^^'3ry-^ O
se lhe concede permisaio de residir nesta Capital,
Tendo em sua companhia .^^g-g-^^ji. ^^."^ .<í^s<s^
-ry
■^.^^^
,<^^,^íí*-&-^
Declarou íp rnorar para ^:»^^;^*-.<^>^cs'í^4</<^
>^-;C — do<:^VT^estncto a cujo Prove-
^y dor se apresentará dentro em 24 horas.
E para que possa ser admiltido em qualquer
casa de hospeda o-em , cu particular se lhe passou o
presente, que deverá reformar, acabado o prazo do
tempo porque Ihehe concedido, sob pena de pagar
4S 800 réÍ3 de raulcta para a Casa Pia , e para o Of-
ficial do justiça que for intima-loy ,
Lisboa QZH ^^íâ^f^Z^.^^íry^£^à,%i^^^^^f^i^^^r>i,Q J^
Jx yy ,^n Qyi^ecrelano ueral
Deveria terminar aqui esta nota que já nâo é curta. Mas outras
considerações me estão imperiosamente dominando o espirito.
Não posso furtar-me a faze-las. Não posso esquivar-me a dizer
201
que os representantes do município de Ponte de Lima teem uma di-
vida em aberto para com a memoria desse mallogrado mancebo, que,
não obstante ter fallecido aos trinta e dois annos, projecta rever-
berações de gloria sobre a terra do seu berço !
Tem-na sempre tido muito grande para com D. Francisco de
S. Luiz!
Sim ; porque não pode julgar-se solvida para com a sua memoria
tão illustre em pôrem-lhe o nome (sem a mais singela lapide desi-
gnando a casa em que se suppòe nasceu) em uma via publica, que
não é a principal praça, nem o principal passeio, nem a principal
avenida, como seria de honra para terra que o fosse! Mais para a
terra do que para elle !
O seu nome é o de um benemérito da pátria !
É o de um Vulto que tem um largo logar na historia ecclesias-
tica da Egreja portugueza, na historia litteraria e na historia poli-
tica do nosso paiz.
Foi um grande sábio e um grande patriota !
Não é só o filho mais illustre de Ponte de Lima, mas um dos
filhos mais illustres de Portugal ! É um dos seus varões illustres !
E porque assim hão de pensar todos os que conhecerem a sua
nobre e gloriosa vida, atrevo-me a propor o alvitre de um bem
pequeno monumento ! Bem simples, bem modesto e de bem fácil
execução !
Para elle e também para o sobrinho. Para o poeta tão, illustre,
tão esquecido e tratado com tão absoluto desdém !
Para fazer executar esse singelo monumento basta que haja, em
Ponte de Lima, uma camará, não digo patriótica porque todas o são,
mas uma camará que, occupando-se menos das politicas do presente,
se occupe mais da politica do futuro, isto é, da educação litteraria e
civica das futuras gerações.
Essa vereação, se chegar a havê-la, deverá votar uma verba, que
não arruinará o município, para fazer uma edição, popular e barata,
de um pequeno livro destinado a servir de premio aos alumnos das
escolas e para andar nas mãos de todos, porque a todos convém
lê-lo.
É o Elogio Académico de D. Francisco de S. Luiz por José Maria
Latino Coelho, edição de 1873, com as notas, e não a edição posterior
da Academia (1878) sem ellas.
É o monumento litterario de um sábio levantado por outro sábio!
Ficariam conhecendo as maiores bellezas a que se presta a
nossa lingua e que lhe podem ser dadas! Con>.eceria;,i também as
virtudes moraes e as virtudes civicas de um grande sábio e de um
grande portuguez !
Já se vê que, para tal edição, seria preciso haver prévio contra-
cto, fácil de obter, com a Empresa Litteraria Fluminense, que tem
hoje a propriedade do livro.
202
Mas deveria este conter uma segunda parte. N'ella seriam trans-
criptas as brilhantes paginas de Pinheiro Chagas, consagradas a Luiz
Corrêa Caldeira e ainda algumas das mais sublimes poesias do malo-
grado poeta.
Seria um livro de consagração e de preciosos e úteis ensina-
n'.entos !
Lições de historia, lições de civismo, lições de litteratura !
203
NOTA 3.
Pessoa da mais alta competência litteraria nos informou
que o distincto escriptor portuense, o Sr. José Pereira de
Sampaio (Bruno) se havia occupado, em um dos seus livros,
do nosso poeta. Procurei debalde. Resolvi-me por isso a
escrever ao erudito homem de letras, perguntando-lh'o.
Teve elle a generosa benevolência de honrar-me com
uma carta, que aqui se publica, porque contém o seu con-
ceito auctorisadissimo, honrandu a memoria litteraria do
illustre poeta.
Diz assim •
«Porto, 1 de junho de 1915.
«lUustrissimo Excellentissimo Senhor.
«Nào me recordo de passagem de livro meu publicado onde tra-
ctasse do poeta Luiz Corrêa Caldeira, cujo alto merecimento aliás
muitoconsidero.
«Devia ter sido em qualquer artigo da Vo^ Publico, no tempo em
que entremeava alli artigos políticos com artigos litterarios. Mas
quando? Por agora, enfermo e cançado, não me sinto com força e
disposição para fazer a busca. Fal-a-hei, porém, por isso mesmo que
tenciono dar á estampa o meu proniettido livro acerca dos modernos
poetas portuguezes, entre os quaes deve avultar no juizo publico
Corrêa Caldeira, hoje tão injustamente esquecido.
«É o que me occorre responder á honrosa carta de V. Ex."*, e a
V. Ek." agradecendo, muito penhorado, a benevolência das suas ex-
pressões para mim, respeitosamente, me subscrevo
De V. Ex.^
Mt.o Alt. o Ven.»"" e Cr.''» Obg.^i-^
José Pereik.\ de S.^mpaio.
«Casa de V. Ex."
«Bomjardim, 414.
204
Infelizmente a persistente enfermidade do distinctis-
simo escriptor não permittiu que aqui fosse indicado o
n.° e anno do jornal, onde poderia lêr-se a sua apreciaçrlo
litteraria.
D. Amélia Janny
I
Amélia Janny foi uma nobre mulher e uma inspirada
poetisa.
O vento dos preconceitos sociaes açoitou-lhe o berço!
206
Mas ella era como estas plantas, que os ventos não de-
sarreigam, nem quebram; e antes parece que mais as
fazem prender á terra e adquirir maior vigor.
A natureza não a priviligiou com dotes de formosura,
mas não lhe negou os da sympathia; e era alta, elegante,
gentil!
Aos setenta annos, sem curvar o peito, caminhava
erecta e direita, como caminhava antes dos vinte, em que
a conheci !
E o seu aprumo moral era como o physico! Tinha uma
nobre altivez de sentimentos, que lhe provinha da su-
perioridade do seu espirito e da consciência do seu
Valor.
Foi-lhe escudo no caminho da vida! No perigoso meio,
em que foi creada, ficou sempre intangivel a sua honra de
mulher e imaculado o seu nome de senhora!
Pelo muro moral, que, com maior ou menor razão,
existia entre os estudantes e as famílias de Coimbra,
nunca lhe falei nos dias da mocidade. Nunca procurei
falar-lhe, posto por vezes estivesse bem próximo d'ella.
Mas sempre a acompanhei com muita sympathia, que pro-
vinha do seu talento e do mysterioso romance do seu nas-
cimento, que eu conhecia!
Éramos da mesma geração. Tínhamos quasi a mesma
edade.
Quando ella fêz o enterro da sua mocidade, enterrou.
sem o saber, também a minha !
E que lindo enterro lhes fez ! Ora vejam :
Camará Ardente
No luxuoso salão de purpura forrado,
Avista-se uma urna em pedestal doirado.
Sobre ella ondeia e treme a chamma de mil lumes
Respiram-se no ar suavíssimos perfumes ;
207
E sobre o pavimento, em profusão de cores,
Alasíram-se festões de peregrinas flores.
Em desalinho, solta a farta e longa trança,
Suspira ajoelhada e moribunda a Esperança
E defronte, gentil e bello como a aurora,
Na urna debruçado, o Amor soluça e chora.
E quando esmorecia o sôm da résa
Sahida a meia voz dos lábios da Tristeza
E se iam apagando os últimos clarões
Dos cirios funeraes e das mortas illusões;
Então, com mão febril, fechei o athaude
Onde ficava morta a núnha Juventude !
É bello e viril !
Uma das paixões, que a acompanhou em todos os dias.
da sua vida, foi o amor pela sua terra!
Amou Coimbra, como só se ama uma mãe ! As offen-
sas feitas a Coimbra, doiam-lhe como feitas a ella pró-
pria !
D'essa sensibilidade do seu affecto se encontraram
provas ainda depois da sua morte !
Fez testamento. Legava os seus haveres (que eram
modestos, mas sufficientes para lhe garantir uma honesta
independência e a pôr a coberto das mais exigentes neces-
sidades) a uma parenta, que sempre protegeu. Sabendo
porém que essa parenta estava em communhão politica,
com os que ella chamava os inimigos de Coimbra, deu
um traço no testamento e declarou que o inutilisava !
D'ahi resultou um letigio, que está pendendo no tribu-
nal de Coimbra.
208
O amor por Coimbra foi um dos elos da cadeia da
nossa amizade.
Logo nas nossas primeiras conversações, coniieceu
ser eu um de aqueles para quem Coimbra era a terra
de encanto da poesia de João de Lemos; e que fizera
meus os versos do poeta:
Sou quasi teu filho: amei-te
Da vida no alvorecer.
De Minerva o sacro leite
Por tuas mãos vim beber !
Foi aqui que me sorria
O mundo, a vida, a poesia.
Sou quasi teu filho, sou !
Este commum sentir deu-nos umas relações quasi fra-
ternaes !
Começaram pessoalmente bem tarde. Só nos últimos
annos.
E como começaram ? Por forma bem simples :
Uns bellos rapazes, que me são queridos, sollicitaram
a minha collaboração no Almanach de Ponte de Uma
para 1910. Não soube resistir-lhes. Escrevi um artigo de
homenagem litteraria a Amélia Janny, que, nos annos
anteriores, apparecera como collaboradora d'essa publi-
cação.
Determinou o artigo, por um lado, a admiração pelo
seu talento; e, por outro, os laços de sangue, alli des-
conhecidos, que ligavam a poetisa á formosa terra do
Lima.
Sahiu sem assignatura, e só com duas iniciaes.
209
II
Eis o artigo :
«A distincta senhora e iliustre poetisa do Mondego
tem direito a entrar na galeria de figuras iliustres, que
aqui se expõe annoalmente á consideração e respeito de
todos os amigos desta terra.
«Não é pela collaboração, com que tem honrado estes
pequenos livros. Não !
«Um titulo melhor, mais sagrado, mais intimo a impõe
á nossa homenagem !
«É o serem elles — estes livros — como que um registo
de tudo quanto gloriosamente pertence a esta querida
terra do Lima; de tudo que com ella se prende e rela-
ciona ; de tudo que a honra !
«Nascida juncto daquelle formoso rio, tão irmão deste
nosso pela belleza das margens e pela limpidez cristalina
das aguas, a senhora D. Amélia Janny tem sangue limiense
nas Veias! . . .
«São-lhe aqui devidas todas as honras, como a pessoa,
que também é nossa/. . .
«Mas como prestar-lh'as?
«Tendo de escrever acerca da iliustre poetisa e de
pessoas, que pelo sangue lhe foram conjunctas, e aqui
nasceram, como pode fazel-o a minha penna desprimorosa
e — ha tantos annos! — entregue a assumptos alheios a
cousas litterarias e até muito em divorcio com ellas?!
«Como é que, desacostumado e desfavorecido, eu
posso ter a ousadia de escrever de Amélia Janny, que é
uma sacerdotisa do bello; e que, tendo em si o fogo
sagrado da poesia, se eleva, nas azas do seu génio, a
alturas, onde a não posso seguir? !. . .
14
210
«Como?. . .
«Só o saberei fazer; só poderei desempenhar-me do
imprudente e pesado encargo, deixando falar o meu cora-
ção, a tradição da minha família e as minhas recordações
pessoaes!
«Só assim!... Desculpem-me que as eVoque; e que
por ellas me dirija ! . . .
«A senhora D. Amélia Janny provém de uma família,
que tem os mais illustres pergaminhos lítterarios, de que
pôde orgulhar-se esta villa ! De uma familia, em que os
dotes privíligiados da intelligencia e do talento foram patri-
mónio commum de todos, cujos nomes andam ainda na
memoria dos vivos !
«O sábio D. Francisco de S. Luiz — Cardeal Saraiva;
António Correia Caldeira, eloquente parlamentar e distin-
ctissimo homem publico; o poeta Luiz Corrêa Caldeira,
têm os seus nomes inscriptos nas folhas de ouro da histo-
ria, da litteratura e da politica do nosso paiz !
«Frei Luiz Saraiva, irmão do Cardeal, foi também
homem muito intelligente e instruído !
É o que sempre ouvi; e, interessantíssimo para a
épocha, delle !i um largo manuscripto em poder de pes-
soa, que muito me pertenceu pelo sangue e pela afini-
dade.
«As duas irmãs de ambos. D. Joanna e D. Marcelina,
possuíram distinctas prendas de senhoras, e uma cultura
intelectual, que era rara, n'esse tempo, em pessoas do
seu sexo, que nunca sahiram daqui, como creio não sahi-
ram ! . . .
A senhora D. Amélia Janny — como é bem sabido —
nasceu de um romance de amor de António Corrêa Cal-
deira, que, na Verdura dos annos, foi um gentil, esbelto e
amoroso rapaz.
Tendo-o eu conhecido mais tarde — muito mais tarde
211
— e com elle pessoalmente tratado, posso dar testemunho
da grandíssima bondade do seu coração; da inexcedivel
lealdade do seu caracter; e, portuguez de antiga tempera,
de ser dotado de escrúpulos de honra e de uma austeri-
dade de principios e de proceder, levados ao extremo do
maior rigor!
<A senhora D. Amélia Janny é herdeira directa dos
talentos litterarios da sua familia!
De seu tio, o malogrado poeta das Flores da Bíblia
— tão cedo roubado pela morte ás palmas da gloria que
o esperavam! — herdou o dom privilegiado da poesia!
«Mal pensava o infeliz poeta que á creança que, sen-
tada em seus joelhos, elle acariciava e beijava, estava
insuflando e transmittindo a musa, continuadora da sua
inspiração !
<0 poemeto— .-I Guerra — (1870) tem versos, que
são da sobrinha e parecem do tio ! Elle se honraria muito
de assiana-los!
«Nunca tive a honra de falar á distincta poetisa!
-iíMas sempre a li. Por vezes a applaudi !
<No histórico sarau litterario, presidido por A. F. de
Castilho, realisado no desapparecido e saudoso Thcairo
Académico, em maio de 1862, as minhas mãos não foram
as que menos enthusiasticamente a aplaudiram !
Nas minhas palmas ia admiração pelo génio poético,
que a bafejava, e a minha sympathia pela familia, de que
procedia !
Que saudades !
«Que lembranças dessa noite litterariamente celebre!
«O poeta dos Ciúmes do Bardo recitou a lenda de
Nossa Senhora da Nazareth, a Carta á Imperatriz do
Brazil, o Janota, e não sei que mais.
A sua recitação era vagarosamente cadenciada e mo-
nótona !
212
« Theofilo Braga recitou uns formosos versos — como
elle nunca mais os fez — da Visão dos Tempos.
^Nào lhes deu relevo, que fizesse impressão!
^Guerra Junqueira, quasi uma creança, apparecia,
pela primeira vez, perante a academia reunida; e recitou
uns Versos que mal se ouviram.
« Anthero de Quental, esse adorável rapaz de 20 annos,
com a fronte aureolada de cabellos de ouro, entrou no
palco — que era a tribuna dos poetas — com passo firme
e o ar de independência desdenhosa, que predizia o futuro
Calvino; o futuro auctor do Bom Senso e Bom Gosto,
Vista de Coimbra. — Do lado da casa onde morava a poetisa
onde, mais tarde, a golpes profundos e brilhantíssimos,
havia de deixar, para sempre, mal-ferida a auctoridade,
respeitável e respeitada, do pontífice litterario daépocha!
<'Não recitou. Leu, sentado a uma mesa, alguns dos
Versos, que depois publicou nas Odes Modernas.
«Dos outros poetas não ficou registo na minha memoria !
«Appareceu afinal, sympathica e timida, pela mão de
Castilho, a senhora D. Amélia Janny.
«A harmonia dos seus versos (que aqui não reproduzo
para reproduzir outros), a sua recitação, a suavidade da
sua voz encantaram a irrequieta assembleia, que a pre-
215
meou com palmas e homenagens de respeito, bem raro
nos que a compunham !
«Dessa saudosa festa h'tteraria pôde Castilho, referin-
do-se depois a ella, escrever, com justiça, o seguinte:
<Como que symbolisando a musa do Mondego, uma
«gentil poetisa, veio, nova Sapho, merecer n'este certame
«coroa de louros e murtha !
•^Ditosa filha de Coimbra! com os teus donosos vinte
«annos em flor; com a tua voz suaVe e timida, como o
«aroma exhalado da tua alma !
«Amélia Janny! perdoa-me, se hoje diante do maior
«publico, te renovo os meus applausos» (1).
«Esta a prosa do insigne poeta e grande mestre da
nossa lingua !
«Mas como prestar homenagem á personalidade litte-
raria e illustre de Amélia Janny, sem lembrarem logo os
formosíssimos versos, que João de Deus lhe consagrou,
escrevendo-os no seu álbum?
«Que pode haver de mais sublime? De maior glorifi-
cação para ella?
«Para aqui vou transcrever esses versos, não do volume
de lyricas do divino poeta, coordenadas pelo snr. Theo-
filo Braga, onde os encontro com variantes, com que não
posso conformar-me (2)!
«Não ! Prefiro ir buscal-os ao meu saudoso guarda-
joias do poeta ... um velho caderno com as folhas ama-
relecidas e soltas, como as folhas das arvores por cima
das quaes o outono passou !
(1) Conversação Preambular do poema D.Jayme ou .4 Domina-
ção de Castella por Thomaz Ribeiro, 1." edição, i862.
(2) Poesias ly ricas completas coordenadas sob as vistas do
auctor, por Theophilo Braga, pag. 156 a pag. 159. Faça quem quizer
a comparação ; e, nas estrophes omittidas, ainda são maiores as va-
riantes.
N. B. — Publicam-se agora integralmente todos os versos.
214
«Para ali foram copeados do original, que não vem
para aqui dizer como — ha tantos annos — esteve nas mi-
nhas mãos ! . . .
A Amélia Janny
Oh Janny ! teus ais me exaltam ;
Partem d'alma e n'alma echôam ;
Filhos de alma á alma voam,
Sim Janny !
E se as lagrimas te esmaltam,
Te aljofáram, te matizam,
Pelas faces me deslizam,
Como a ti.
Mas tu, flor ! brotaste agora I
Quando o sol mal te inda aponta,
Porque choras como á conta
Do porvir?
Se ella, a flor, sorri á aurora.
Tua irmã na primavera,
E ave e homem — anio e fera —
Vês sorrir?
Pomba, eu sei ! ha em toda a alma
Mola occulta : por mais cedo
Que lhe toque incauto dedo,
Mal nos vae !
Outra Oreb a sede acalma,
Mas de pranto amargo e duro,
Que é da nuvem do futuro
Que elle cae !
Tu, Janny, nas azas tuas,
Do teu génio, tens anhelos.
Que pediam sonhos bellos
E de amor !
Sonhas inda? tu fluctuas.
Já nas aguas do diluvio,
Viva imagem, sopro, effluvio
Do Senhor !
215
Que vês tu? Sobre a mais alta
Das montanhas d'este globo.
Que vês tu? N'um throno o roubo
Que é o rei.
Digno rei ! que mais exalta
Mais eleva os que o adoram,
Quanto mais ódio liie imploram
Povo e lei.
Rei é Deus ... se é escravo o homem
Rei fez elle o homem todo.
Cada qual pode a seu modo
Bem viver.
Pois se as feras se não comem
Uma á outra; havia aquelle
Que Deus fez á imagem d'elle
Tal fazer?
Se o fez, fel-o porque o sangue
É manjar de régio lábio . . .
Deus é justo, Deus é sábio.
Não quer tal !
Manda Deus que o boi se cangue
Mate e coma, porque esse
Tal qual nasce, á terra desce
Tal e qual!
Deus é livre: imagem sua
Livre a alma que perscruta:
Livre o braço que executa
Não servil !
Ante o crime só recua,
Ante o sangue . . . petrifica!
Mas se um dedo o rei lhe indica
Mata o vil!
Oh, se Itália, Itália ainda
Presta ao mundo um novo móbil,
Se ainda á vida esta alma ignóbil
Restituo!
Desce! desce éra bem vinda!
Quer manná inebriante.
Quer espada flamejante.
Vem, se és tu!
216
Bella és sempre! De Deus filha,
Saes ao pae na formosura !
Bella és sempre, sempre pura.
Como a luz!
Tu, auctor da maravilha
D'este mundo, ajuda-o n'isto!
— Garibaldi! ou novo Christol . . .
Gloria ... ou Cruz!
Geme, pomba ! . . . Quem não ha-de ,
Chora, rosa! chora dhalia.
Dos jardins d'esta outra Itália,
Portugal;
Mas se um dia a liberdade
Passa enxuta o mar vermelho.
Tu, dos anjos casto espelho,
Cala o mal . . .
«A obra poética de Amélia Janny anda espalhada por
tão grande numero de jornaes litterarios e outras publica-
ções d'esse género, que impossivel me é dar uma relação
completa de todos!
«Podem encontrar-se versos seus no Cysne do Mon-
dego, Prelúdios Litterarios, Estreia Litteraria, Pano-
rama Photographico de Portugal, Portugal Pittoresco
— jornaes litterarios de Coimbra — ; na Illustração Uni-
versal, A Mulher, Semana de Lisboa, Republicas —
jornaes litterarios de Lisboa; Almanach de Lembranças
Luso-Brasileiro, Almanach das Senhoras, em annos
seguidos (Lisboa), A Borboleta (Braga), A Alvorada
(Famalicão), A Guerra (folheto avulso), A Imprensa Por-
tugueza aos Povos de Andaluzia — numero único — Al-
manachs do Commercio do Lima, e muitas outras publi-
cações.
«A musa de Amélia Janny nunca envelhece! Como
Garrett, ella fará versos sentidos e bellos até morrer!
«De tão rico e opulento thesouro, querendo trazer
217
para aqui uma das suas jóias, eu só poderia ter difficul-
dades e hesitações na escolha! Não tenho!
«Transcrevo, só devo transcrever, aquella que a auctora
por certo mais ama; a que lhe é mais saudosa e mais que-
rida !
«Todos que temos sentido no peito o mais santo e
mais puro dos affectos, faisca divina, — o amor por nos-
sas mães; todos que se enlevam n'esse sentimento, mais
que nenhum outro, reciproco e leal, todos que fizeram
d'elle um perenne culto de saudade, que lhes é como que
religião; — todos — hão-de reconhecer que esta poesia de
Amélia Janny deveria lêr-se e ouvir-se, de joelhos, como
uma piedosa oração! (1)
«Vejam:
Aos annos de minha Mãe
A ti, que debruçada no meu berço,
Por noites de amargura e de agonia,
Velaste, coração em dôr submerso,
Abrazada na febre em que eu ardia;
A ti, que me ensinaste, entre mil beijos,
A louvar o Senhor, em cada aurora,
Que encerraste as esperanças e os desejos
Em Vêr-me alegre e forte d'hora em hora ;
A ti, que da af feição fazendo escudo,
Affrontaste o rigor de atroz destino,
Que ao deixares, por mim, familia e tudo
O teu seio de mãe soltava um hymno;
A ti, ó minha Mãe! martyr obscura.
Que percorreste a via dolorosa,
Forte do teu amor, com mão segura,
A amparar-me, a sorrir-me, carinhosa;
(1) Tem nota no fim.
218
A ti, que eu vejo sempre, se a doença
Me entristece, me abate e curva a fronte,
Junto de mim, qual brilha, em noite densa.
Uma estrella surgindo no horisonte;
Livro, em cujas paginas eu leio
Um poema de amor e de ternura.
Voz — como outra não ha — , seguro esteio,
Reprehensão, que sorri; perdão, que dura;
Olhar em que se espelha o affecto immenso.
Onde vão reflectir-se as minhas deres,
Abrigo sem egual, luz do que eu penso.
Mystica urna de immurchaveis flores;
A ti, no dia dos teus annos, dera
A alegria, que em prantos consumiste.
Os folguedos da tua primavera,
Em vêz da tua vida amarga e triste !
«Depois da harmonia d'estes versos, em que se sente o
carpir meiancholico das rolas e os trillos suaves dos rouxi-
noes do Mondego e do Lima, quaesquer palavras nossas se-
riam. . . o pio do mocho!
Esse era o artigo pubhcado no annuario de Ponte de
Lima. Só alli podia e devia ser publicado. Só o auctor se
atreveria a publica-lo alli.
Quantas razões havia !
É que o talento da distincta senhora era o corolário
de uma genial permissa, que, em pleno século 18, no dia
219
26 de janeiro de 1766, surge á luz e depois se manifesta
existir occulta n'aquella villa!
Era o fructo de uma arvore, cuja raiz fora levada d'alli !
Era a demonstração, evidentissima, da força — ao
mesmo tempo querida e tremenda — de uma lei, escripta
pela natureza no próprio sangue de cada sêr, ora em cara-
cteres dourados e brilhantes, ora em traços negros e horrí-
veis ; e que se chama a lei da hereditariedade I
São bem dourados de talento e distinção os caracteres
com que essa lei se lê, em pessoas da familia, que têm
a mesma origem limiense !
Que força de divina luz nos glóbulos sanguíneos da
obscura familia, a que pertenceu algum dos progenitores
do homem illustre, ao qual, em meados do século 18, seus
pães deram o nome de Francisco Justiniano Saraiva!
Depois de apparecer n"este, appareceu em quasi todas
as pessoas, que teem a mesma origem, e em successivas
e prolongadas gerações! (1)
Comparando o appellido da mãe dos Caldeiras. D. Anna
Efigenia Corrêa com o da mãe do Cardeal Saraiva, D. Ma-
ria Corrêa de Sá, vê-se que é d'essa plebéa familia Corrêa,
que promana uma tão grande nobreza e fidalguia intellec-
tuaes !
O artigo do annuario limiense sahiu, como fica dito,
sem assignatura, mas não foi difficil á poetisa saber quem
d'elle era o auctor.
(1) Já vae na 5.^ geração !
Um juvenil advogado, o Sr. Caldeira Coelho, neto do Conse-
lheiro Corrêa Caldeira, recentemente formado, mal tomou a palavra
nos tibunaes criminaes, revelou dotes de distincto orador forense.
E tal é a força da hereditariedade, n'esta familia, que entre a mãe
do esperançoso advogado, a Senhora D. Maria Thereza Deslandes
Caldeira, e D. Amélia Janny — que nunca se encontraram — havia
não só inteira similhança physica, mas até de gestos e de caligraphia.
220
Tive entào a honra de receber a seguinte carta:
111.'"" e Ex.'"o Senhor
Nunca me senti tào pequenina e tão grande!
Pequenina em relação ao meu valor; mas, erguida a uma tão
grande altura na sua proza elegante e rendilhada, subo tanto que até
se me perturba a vista !
Não tento agradecer a riquíssima moldura em que V. Ex.' metteu
o meu pequeno nome.
Não o saberia fazer ; mas não posso f urtar-me ao desejo de dizer
a V. Ex." quanto ambiciono conhecê-lo e apertar a sua mão, que tem
de ser, por força, mão amiga !
De modo que vou augmentar a minha divida, fazendo-lhe um pe-
dido : é o de, na sua passagem para P. . . avisar-me para eu ir á Esta-
ção cumprimenta-lo.
É pedir muito?
A sua generosidade é capaz de dispensar esta fineza á
De V. Ex.-^
Veneradora e amiga
Amélia Ja.x.xy
Seria indelicado desprimor obtemperar a este pedido?
Com um vellio amigo, antigo companlieiro dos bancos
escolares, que desde logo revelou, no inicio dos nossos
estudos, possuir o cérebro de um homem de sciencia e o
nobre coração de um velho portuguez, o Dr. Chaves e
Castro, eu tinha um compromisso: o de ir estar com elle
alguns dias e irmos juntos passear na sua bella proprie-
dade, beijada pelas aguas do Mondego e do Ceira, a qual
não conhecia. Esse compromisso me levou a Coimbra.
Por essa occasião fiz a minha visita á poetisa. Não foi
preciso que algum guia me fosse mostrar a casa. Era
ainda a mesma em que já morava nos meus tempos de
estudante, próximo daquella, onde, no quarto de Alberto
Sampaio, pela primeira vez, falei a Anthero com aquella
familiaridade escolástica, que dispensava cerimoniosa apre-
sentação.
221
Durante os dias, que estive em Coimbra, a visitei nessa
sua casinha da Couraça de Lisboa, onde tudo era simples
e singelo, mas disposto com ordem, elegância e bom gosto.
Durante as nossas conversações, por vezes, a sua porta
se abria para receber a Visita de senhoras, de professo-
res e outras pessoas distinctas de Coimbra, que iam ievar-
Ihe homenagens de estima e consideração.
Tantos acontecimentos tinhamos visto passar, em
outro tempo, por diante de nós; tantas pessoas nos eram
conhecidas, e a respeito das quaes completávamos reci-
procas informações, que parecia continuarmos conversa-
ções que já haviamos tido no passado!
Era interessantíssimo o seu dizer, cheio de observação
e espirito.
E nunca faltava o assumpto ! Mulher intelligentissima,
dotada de rara memoria, durante meio século, esteve,
naquella sua casinha da formosa encosta, a vêr e registar
todos os acontecimentos, conhecendo mais ou menos,
todos os homens distinctos das diversas gerações acadé-
micas, que, n'esse largo periodo, passaram por Coimbra !
Tinha uma singular atracção aquelle ninho da ave
canora! Ninho de poesia, de virtude e de bondade! Onde
a caridade recebia culto por diversas formas e aparecia
nas suas variadas manifestações (1).
E que deslumbrante panorama o desse formoso ninho !
Debruçado sobre o Mondego, vendo correr as suas
aguas e ouvindo os rouxinoes na margem ! Abaixo a ponte.
Em frente, o ridente bairro de Santa Clara, coroado pelo
histórico convento com o culto e a lenda poética da
Rainha Santa ! A' esquerda, lá ao longe, a formosa estan-
cia da Lapa dos Esteios, ou Lapa dos Poetas! Mais á
quem, os sítios, a que anda ligada a trágica morte da
linda Ignês, as Lagrimas e a Fonte dos Amores! Sitios
a que nem falta a poesia no nome, mas onde falta agora,
(1) Vejam-se as correspondências de Coimbra para o Diário de
Noticias de 20 e 21 de março de 1914.
222
— creio — o copado cedro dos versos da Victoria Linda ^
que muitas vezes me vieram á memoria pensando na morte
de uma outra Victoria Linda, que é a ultima figura deste
livro !
Foi ahi, que, durante mais de meio século, a poetisa
esteve entoando cânticos a tudo quanto é bello e bom; a
tudo quanto é nobre e grande! Esteve, durante esse largo
período, compondo versos com a mesma natural facilidade
despretenciosa, com que qualquer outra senhora cuida das
suas flores ou das suas avesinhas.
V
A poesia — disse alguém — é a musica das almas!
Se nem todos amam os versos e a poesia é porque
nem todos têem a alma afinada para perceber as bellesas
e harmonia dessa divina musica!
Instinctivamente a percebeu Amélia Janny. Ninguém lh'a
ensinou. Advinhou-a bem cedo, quando, ainda como
creança, brincava! Não tinha quinze annos!
Foi n'essa edade que. em uma tarde de chuva, esten-
dendo da sua janela a mão para aparar algumas gotas de
agua, fez uma pequena quadra, que ficou na memoria das
pessoas da familia, não tendo nunca sido publicada:
O chuva! cahi, cahi !
Cahi-me na minha mão:
Assim pudera a virtude
Cahir-me no coração.
Desde esse momento sentio, dentro do peito, a chamma
sagrada!
225
Fez depois versos, que rasgou; e, aos 16 annos, appa-
recem os seus primeiros versos publicados. Foram-no
por António Lúcio Tavares Crespo, seu parente por afi-
nidade, em um jornal de Leiria. O L/z, e depois reprodu-
zidos por Augusto César da Silva Mattos no Cysne do
Mondego, de que era redactor.
Silva Mattos foi grande amigo e admirador de Amélia
Vista de uma parte do Terreiro da Universidade e de uma parte da Via Latina
Janny. Juiz exemplar, apezar de poeta, e bom poeta.
apezar de juiz, é um dos que muito tem mostrado quanta
verdade ha nos versos do quinhentista:
Não fazem mal as musas aos douctores
Antes mais lustre a suas lettras dão!
Li agora esses primeiros Versos de Ameh'a Janny, que
se encontram no n,*^ 11 do Cysne de Mondego, de 11 de
Maio de 1857. São uma longa elegia á morte de uma
amiga.
224
Entre elles e os que agora ahi se lêem que largos
estádios percorridos!
Era a águia, ainda implume, que tentava o vôo. De-
pois, ganiiando azas, ergue-se á maior altura para cantar
Camões e Victor Hugo, sem que lhe offusquem a vista
e a ceguem os raios deslumbrantes do Sol d'essas immen-
sas glorias!
A elegia do Cysne marca apenas uma data. Nunca
mais deixou de poetar.
Em todas as festas e solemnidades nacionaes, em
todas as festas de caridade, em saraus litterarios, em
recitas commemorativas, e sempre nos benefícios a favor
da Sociedade Philantropico- Académica , apparecem Ver-
sos de Amélia Janny e, muitas vezes, apparecia ella a
recita-los.
No Theatro Académico, no Theatro de D. Luiz, no
Salão da Associação dos Artistas — onde recitou a sua
bella poesia Progresso — ella por vezes se fez ouvir e
colheu farto quinhão de applausos.
Quando alguma celebridade artística passava por Coim-
bra, não deixava de a saudar com os seus Versos. Acho
muito bellos os que dedicou a Celestina Paladini!
Não se limitava a cantar os Íntimos e ternos senti-
mentos, que aninhava no coração.
Lançava a vista para mais largos horizontes! Deixa-
va-se arrastar pelos altos ideaes, que lhe illuminavam a
mente e lhe ardiam no coração.
Por Vezes, pedia a benção a Calliope; e ella, uma
fraca e modestíssima mulher, calçava o cothurno da mu-
sa épica para entoar cânticos á Pátria e aos grandes
nomes da sua historia!
É d'esse género a bella poesia por ella recitada, em
_^25
1880, no Theatro Académico, por occasião das festas
•camoneanas, na recita organisada pelos estudantes d'essa
•épocha. Admirem-na:
A Camões
Nós vêmol-o surgir, heróico, austero, grande,
Envolto n'essa luz que só o génio tem,
E ao contemplal-o assim, o coração se expande,
E rende-se ao poder que d'esse vulto vem.
Três séculos depois, mais viva, mais intensa
Resplende e maravilha a gloria de Camões,
Herança collosal d'uma grandeza immensa.
Que cada geração transmitte ás gerações.
No seu poema enorme, em cantos magestosos,
Desdobra-se o valor do povo portuguez,
Deslumbra, ao descrever em versos assombrosos,
O fero Adamastor e a desditosa Ignez.
Soffreu como ninguém, luctou como um gigante.
Um malfadado amor.. . rasgou-lhe o coração,
E pôde, ao naufragar, exhausto, agonisante,
Salvar o seu paiz, erguendo uma só mão!
£ que essa mão continha a historia nunca lida
Dos brios nacionaes, dos feitos d'além mar.
D'essas victorias mil d'uma nação, erguida
Ao máximo explendor que é dado conquistar.
E, salvo o seu poema, a morte era o repouso.
Era a alvorada amiga, era a suprema luz.
Era a ventura, emfim, o ambicionado goso.
De quem, sem murmurar, levara a sua cruz!
-Previu, prophetisou a queda vergonhosa
Da pátria, a quem legara os cantos divinaes,
E ao expirar, talvez de fome, luminosa
A gloria lhe cingia as vestes immortaes!
15
226
De El-Rei D. Sebastião nos ímpetos vehementes»
Da próxima mina o passo adivinhou,
E de Alcacerquivir nos areaes ardentes,
Prestigio, cVoa, rei, poder — tudo rolou. ..
Do muito que foi nosso é pouco o que hoje resta,.
Do Velho leão do mar, do ousado Portugal,
Apenas um tropheu o seu poder attesta:
— Um livro -esse padrão do épico immortal!
Que se a destruição passa como Ashavero,
Levando a decadência ao seio das nações,
O génio as faz viver. A Grécia teve Homero,
A Itália teve Dante, e os Luzos tem Camões.
Nos lances mais cruéis, nas magnas da existência.
Na terra e mar gravou em bronze o seu valor,
E teve na afflicção, no exilio, na indigência,
A força de viver, a fé que esmaga a dor.
A inveja quiz pousar-lhe um veu sobre a memoria,
A ingratidão teceu-lhe o fúnebre lençol,
E elle resurgiu nas paginas da historia,
Qual dentre nuvens sae mais fulgurante o Sol.
Nem todos podem ser o que elle foi —Portento — !
Mas vós podeis seguil-o. — Avante, mocidade !
No vosso coração erguei-lhe um monumento,
E amae, como elle, o estudo, a pátria e a liberdade!
Eu, que a ouvi recitar e a applaudi, n'esse Theatro,
quando ella tinha vinte e um annos, lendo agora esses
versos, parece-me estar ainda a ouvil-a!
Outros tem, de egual, acendrado patriotismo!
227
V
A obra poética de Amélia Janny é enormíssima. Enchia
volumes.
Tendo de transcrever para aqui versos da illustre poe-
tisa, teniio grandes difficuldades na preferencia. Tantos
são os que se me offerecem.
Começarei por dar publicidade a uns, ainda inéditos,
que ella me mandou em carta de 15 de agosto de 1910:
Três Cantos
Ó dias luminosos, sempre em festa,
Quando somos creanças, a folgar,
Cantando o hymno de que a lettra é esta :
Gosar, gosar!
O loura adolescência, ó sonho lindo,
Que nos povoa o somno e o despertar,
Em doce melodia repetindo:
Amar, amar!
O sombra da illusão, que foi ventura,
Fumo que o vento dissipou no ar!
De que sf3 resta o psalmo d'amargura:
Chorar, chorar !
Entre tantissimas composições da distinctissima poe-
tisa, eu quero honrar-me em trazer para aqui a que ella
consagrou á que chama a sua confidente e amiga:
228
A Poesia
Poesia! eu te amo, confidente e amiga,
Com quem minha alma se entrelaça e chora!
Tu, que és nas trevas de veladas noites,
A estrella d'alva precedendo a aurora.
No teu regaço descançando a fronte,
Sorri-me a crença de um melhor Viver;
Olvido tudo que me opprime; e góso
Com teus afagos divinal prazer.
Fogem-me as débeis affeições da terra,
Que a aragem fria da traição balança;
E ao vê-las todas resvalar no abysmo,
Sinto com ellas fenecer a esperança.
Então surgindo luminosa e bella,
Deixando em ondas fluctuar o veu.
Tu Vens n'um beijo, que me enxuga o pranto,
Roubar-me á terra, recordar-me o ceu I
Ruge a calumnia a tripudiar maldicta,
Por sobre as rosas do sentir mais puro
Curvada ao peso de um soffrer cruento
A paz d'esta alma nas soidões procuro.
Mas tu despontas magestosa e altiva,
E a um leve aceno da nevada mão,
O desalento desparece; e eu fito
A lisa estrada que diviso então.
Da consciência no pallido espelho
Revejo as scenas de um viver formoso.
Sem que uma culpa lhe ensombrasse o brilho.
Ou negra mancha lhe empanasse o góso.
E tu, sorrindo, graciosa e linda.
Dos negros olhos na divina luz,
Dás-me a ventura que me nega o mundo,
Ergues ditosa quem vergava á Cruz !
229
Poesia! eu te amo! por caladas noutes,
Quando entre folhas se adormece a aragem,
E a lua passa no cristal do rio
Em longos beijos reflectindo a imagem ;
Quando exhaurida me descae a fronte
E no futuro, desolada, scismo,
Sem que uma esperança me illumine a vida,
Sem ter a força de encarar o abysmo ;
É então que as azas, desprendendo rápidas,
Fendendo o espaço, qual subtil vapor.
Vens dar-me a fé, que se extinguira em lagrimas,
E a doce crença que murchava em flor.
Visão querida, que anciosa invoco,
Se um dia perco teu materno abrigo,
N'essa hora, solta dos terrenos laços,
Livre, minha alma voará comtigo!
Não OUSO fazer a apreciação d'estes formosos versos!
Ahi os tem o leitor.
Aprecie e admire-os!
VI
Como documento do Vigor do seu estro e do seu poder
descriptivo com as finas cores da sua pallieta, ha uma
poesia que desejo appareça n'este livro, já porque é pouco
conhecida e merece sê-lo, já porque é uma das que lhe
era mais querida.
250
O Medico
Nas horas de remanso iriadas de ventura,
Quando a alegria solta os cantos seductores,
Quando nos foge o tempo e tudo nos murmura
A canção do prazer, e a vida é aroma e flores,
Ninguém o vê, ninguém se lembra que elle existe,
— Heroe sublime e bom, de si próprio esquecido,
Entrando, como a luz, na casa pobre e triste,
A tudo o que padece attento sempre o ouvido.
Passa sem elle a festa, o baile deslumbrante,
O banquete ruidoso, a dança estonteadora
Aonde a mocidade, inquieta e palpitante.
Vive secMos d'amor no espaço d'uma hora !
Quem pensa n'elle então, no martyr ignorado,
Que consome, a estudar, as longas noites frias.
Em lucta permanente, em duello despiedado,
A combater com a morte em lentas agonias? !
Onde a tristeza e a dôr, o desespero e as lagrimas.
Se juntam n'um concerto estranho e procelloso;
Quando a mãe desgrenhada abraça o filho pallido
Em que a doença estampa o sello pavoroso ;
Sempre que a humanidade o seu auxilio implora;
Da noite a escuridão, os temporaes, a neve,
O conchego do lar, a familia que o adora,
— Nada o detém; caminha a passo firme e breve.
E medico: pertence aos seios que soluçam.
Ás mãos que para elle estendem supplicantes
Os que, loucos de dôr, de dôr apenas pulsam,
E lhe pedem a vida, em gritos lancinantes!
Entrou? entrou com elle a esperança radiosa,
Interrogam-lhe o olhar, esperam a sentença;
Faz-se o silencio em torno ao leito onde repousa
Alguém que geme e soffre o horror d'atroz doença.
251
«Doutor! brada-lhe um pae, a minha filha é nova,
«Formosa e boa, e é mãe — não deve inda morrer.
<'E-lhe esta casa um céu, é fria e negra a cova. . .
« — Tudo pôde alcançar a sciencia quando quer. . ,
Pôde roubar á morte a victima que chora?
Trocar, no d'alegria, o pranto d'aff lição?
Terá de a ver morrer, impassível, embora
Lhe estremeça d'angustia e magua o coração ?
Que de vezes, meu Deus, domina triumphante
A doença que enlucta e esmaga uma familia,
E bemdiz o trabalho, a lida fatigante,
Os dias d'anciedade, as noites de vigilia;
Mas quantas, quantas mais, debalde pensa e estuda,
Tentando penetrar na noite da incerteza,
È interroga a sciencia implacável, muda.
Ante o poder da morte arrebatando a presa !
Austero no dever, altivo no seu posto,
Acceita a ingratidão ~ a moeda mais vulgar —
Benévolo, sereno, a placidez no rosto.
Na consciência a paz, sempre o perdão no olhar !
Fatiga-se na lucta, alvejam-lhe os cabellos,
Invade-lhe a existência uma tristeza infinda. . .
Sumiram-se, d'ha muito, os seus ideaes mais bellos,
Mas, se tudo mentiu, a sciencia resta ainda.
Mais tarde, quando passa o velho sábio, o medico.
As creanças, a rir, querem beijar-lhe a mão. . .
E quando, emfim, termina o nobre sacerdócio,
A sua historia fica em mais d'um coração ! . . .
Ainda uma pequenina composição para contraste. Re-
commenda-se pela singelesa e espontaneidade.
252
N'um dia de annos
Três de março — alegre data,
Que entre perfumes se espera,
Porque do cinto a desata
A deusa da primavera.
E a primavera da vida.
Que nos cinge em seus fulgores
É tão ditosa e florida
Como a quadra dos amores.
Que o destino, em seus arcanos.,.
N'um abraço deixou presa
A festa dos vossos annos,
Á festa da natureza.
VI
Ella, que, em toda a sua vida, amou tanto o seií
Mondego, teve, ao fim d'ella, preitos de admiração para
outro rio.
Amou tâmbem o Lima.
Nas visitas, que lhe fiz em Coimbra, manifestou-me
Vehementes desejos de conhecer Ponte de Lima. Dahi
um convite e a acceitação d'elle para o futuro mês de se-
tembro.
Não pôde ir, por causa do compromisso tomado parai
a assistência a um casamento, cuja data não podia ser alte-
rada, nos dias em que se realizam as festas annuaes-
d'aquella villa. Teve de ir dias antes.
233
A carta, que precedeu essa visita, contêm, em poucas
palavras, com tanta sinceridade e modéstia, o resumo da
sua vida. que quero reproduzi-la, omittida apenas a parte
em que é exageradamente amável e honrosa para mim.
«Coimbra, 5-9-910.
'Ex.""' amigo
Agradeço, comovida, toda a amizade de que a sua carta, rece-
bida hontem, vem cheia.
A mim. pobre creatura, creada modestamente, trabalhando muito,
a exemplo de minha mãe; quasi sempre sem creada, por varias razões;
singelamente vestida: frequentando pouco a sociedade.- que eu via
com maus olhos, — impressiona-me immenso o que V. Ex.^mediz!
« •• diz-me que não tem commodidades, nem pessoal para me
receber I
Não me torne a dizer isto, pois não? Não são as festas, embora
muito pomposas, como diz o jornal que V. Ex.'' fêz a fineza de man-
dar-me, que ahi me levam. Tenho a aspiração de conhecer esse Lima,
qufe me não será Lethes, porque ficará sempre como a mais linda mi-
ragem na minha saudade; os esplendores d'essa natureza; a graça
d'essa terra amada por quantos a conhecem.
<;0 seu espirito, meu amigo, é a mais inquieta e matizada borbo-
leta. Não; as suas azas nasceram comsigo, como as das aves. Não
tem o sol- •-, mas achei-lhe uma graça infinita pela sua inesperada
amabilidade !
Deve sentir um grande prazer n'esse descanso de poucos dias,
que essa verificação de tristes poderes lhe vae roubar, sem proveito
para ninguém.
«Deixe passar a minha ignorância, sem reparo; mas acceite, sem
sacrifício, a amizade e admiração com que o recorda a
Amélia Jax.vy.»
Durante os dias que alli esteve, conquistou a admiração
e as sympathias de toda a gente que d'ella se approximou :
grandes e pequenos, alguns bons rapazes das escolas su-
periores e algumas pessoas distinctas da terra, e, entre
estas, a Senhora Condessa e Conde de Bertiandos, que
muito expressivamente lhe manifestaram a sua sympathia..
234
Demos um pequeno passeio, acompanhando o rio até
á Ponte da Barca, pela margem esquerda, e, depois de
alguma demora em Arcos de Vai de Vez, admirando os
formosos panoramas que enquadram aquella villa, regres-
samos pela margem direita, não se cançando de admirar
as bellezas do rio, fazendo repetidamente parar o trem !
Ficou com saudosas impressões. Em carta, que pre-
cedeu apenas doze dias a sua morte, mandou-me os ver-
sos, que vão lêr-se, que deviam ter sido publicados na
Limiana, e não foram por virtude da suspensão tempo-
rária d'esta interessante revista litteraria regional.
Intitulam-se :
Ponte de Lima
(Aos seus filhos)
Não, não posso esquecer o mago encanto
D'essa terra graciosa e sonhadora,
Onde as horas e o tempo correm tanto,
Onde tudo nos prende e a vida inf lora ;
Dos montes que se elevam como altares
Onde, perto do céu, Deus nos escuta
A narração dos prantos e pesares
Da Vida, na tremenda e eterna lucta !
Do Lima preguiçoso e disfarçado,
Mudando de caminho, a cada instante,
Nas curvas serpentinas resguardado
Por margens lindas, d'arvoredo ondeante;
Dos Palácios as paginas gloriosas
Da sua, tão authentica, nobreza,
Mantida, sempre, nas acções briosas.
Dos seus filhos no porte e na firmeza.
Bem gravada no intimo do peito,
Bem presa na memoria do meu ser
Tenho a data em que a vi ! Com que respeito
Invoco d'essa tarde o esmorecer 1 . . .
255
Ponte romana, enegrecida e linda,
Banhada de luar e de poesia.
Quando te atravessei, iembro-me ainda
Como, nervoso, o coração batia !
Passavam auras perfumadas, leves,
E, na paz d'essa noite constelada,
Parecia-nie ouvir as notas breves.
Os maviosos sons d'uma Balada !
Foi, talvez, devaneio, essa harmonia,
Ephemero prazer diluido em pranto.
Um ecco do passado • • a fantasia
Bordando um sonho que eu amara tanto !
VIII
Eram muitas as pessoas que lhe pediam para coUigir
em livro os seus versos.
Muito especialmente a instigavam a isso o Dr. Guima-
rães Pedrosa, o abalisado professor, com cuja amisade
muito se honrava, João de Paiva e eu.
Dizia-me que era preciso uma grande selecção, e que
se sentia sem forças para a fazer.
Chegou-me a dizer que tinha começado esse trabalho e
que teria por auxiliar a Senhora Marqueza de Pomares ; e
não podia tê-la melhor, porque a nobre e distinctissima se-
nhora, além de amiga dedicada de Amélia Janny, é também
uma distincta poetisa.
Em 1915 veiu a Lisboa e aqui esteve trez mezes, hos-
peda da Senhora D. Emilia Midosi, a respeitabilissima
236
senhora que é viuva "de Henrique Midosi, e que professava
pela poetisa a mais carinhosa affeição.
Foi aqui que compôz o soneto dedicado a D. Constança
da Gama.
Indo para Coimbra escreveu os versos a Ponte de Lima
e outros ao Tribunal de Haya. São aquelles e estes os
seus últimos versos.
Ella que, em 1870, tinha fulminado a carnificina d'esse
anno, escrevendo o seu brilhante poemeto A Guerra, parece
que adivinhava que os campos de uma grande parte da
Europa iam converter-se em mares de sangue! Saudou
por isso a conferencia de Haya. Pensou até em ir de
perto saudar os sacerdotes da Paz !
Chegou a fazer as malas para ir á Hollanda na com-
panhia de duas senhoras, sobrinhas de João de Paiva.
Não pôde ir! Cahia de cama, e nunca mais se levan-
taria delia! No dia 19 de marco de 1914, falleceu !
Foi uma pobre mulher cheia de uma enorme riqueza
moral e intellecíual !
Teve no peito um thesouro de nobres affectos e no
espirito os mais elevados ideaes !
Viveu sempre com a mente ás musas dada!
Foi uma alma gentil !
NOTA 1.
Silva Mattos, o distincto amigo, distincto magistrado e distincto
poeta, depois de ler o artigo do annuario limiense (não escrevo ponte-
limense por uma razão chorographica e porque, dizia Castilho, que
havia palavras que lhe faziam o effeito de lhe estarem a picar o
ouvido com lasquinhas de corno) ' devolveu-m'o com os seguintes
versos:
De Joelhos
(Ao meu amigo P. O.)-
D'alma lúcidos espelhos
Um a um seus versos dão.
Devem lêr-se de joelhos
Com fervor, com devoção.
Que amor, que ternura brilha
No sentir que elies contêm!
Distilam da alma da filha
Enlevos d'amôr da mãe.
Desde que os li, meu intento
Foi seguir os teus conselhos.
Versos de tal sentimento
Devem lêr se de joelhos!
(1) Em puro latim: Llniia, Limiae, o rio Lima; e por isso tem uma immediata e
-egitima filiação o meu limiense.
238
NOTA 2.
Por occasiào do fallecimento de Amélia Janny, em diversos jor-
naes foram publicados artigos prestando homenagem ao talento e ás
virtudes da illustre poetisa.
D'esses artigos quero transcrever aqui, supprindo assim, quanto
possível, as defficiencias do meu escripto, o que foi publicado na
Capital, na secção que se intitula— 5erões Femininos, devido á
penna elegante da distincta senhora, que, sob o pseudonymo de
Roxane, esconde o seu nome illustre, mas não o seu fino talento; e
que todos sabem ser a Senhora D. Amélia Caldas Xavier.
Eis o artigo:
«Quando hontem os jornaes, no cumprimento da sua missão impe-
riosa, me trouxeram a fria noticia da morte de Amélia Janny, senti
dentro da minha alma o travo amargo d'uma surpreza dolorosa,
impressionando tristemente o meu espirito.
«Tinha-me habituado desde creança á sympathia d'este nome
feminino, subscrevendo sempre versos de extraordinário brilho poé-
tico e grande mérito litterario.
«O anno passado, pelo verão, encontrámo-nos, a poetisa e eu, no
hospitaleiro e nobre salão da sr."" D. Maria Amália Vaz de Carvalho,
em Santa Catharina, e o conhecimento pessoal da illustre poetisa
deu-me o prazer que geralmente sente quem sabe admirar ao des-
cobrir as delicadezas d'uma fina alma de mulher, cheia de emotivi-
dade, e as scintillaçôes luminosas d'um espirito gentil, cultivado e
vivo, da mais interessante vivacidade. A partir d'esse dia. trocaram-se
as nossas visitas durante a sua curta permanência em Lisboa — n'esta
Lisboa que não tinha para a poetisa os encantos do seu suggestivo
Mondego, que tanto enternecera a sua alma, inspirando-lhe lindos
versos de requintado sabor romântico e de incontestáveis bellezas.
«D'uma d'essas visitas a que alludo, ficou-me a inapagavel recor-
dação d'algumas poesias que me disse, na mais singella despretensão
litteraria e, o que é mais interessante, a d'uns magníficos sonetos,
compostos ultimamente para um concurso de sonetos de amor, aberto
não ha muito tempo ainda, por uma revista de Lisboa e que me deram
a extranha impressão de serem versos dos mais radiosos vinte annos . . -
tal era a frescura, a vida, a expontaneidade do sentimento, a graça
das imagens e os tons quentes do seu extraordinário colorido.
<Tinha 73 annos a illustre senhora, a delicada e fina poetiza, que
259
eu ha pouco ainda ouvi com tanto interesse e tão sincera ternura, e
que ao ler agora a inesperada noticia da sua niorte tantas saudades
senti que me deixara. . . Mais um belio espirito que se apaga, uma
commovida alma de mulher que desapparece . . .
«A poetisa do Mondego, como em Coimbra lhe chamavam, deixa,
com os seus versos dispersos em varias publicações, muitas tristezas
e saudades dispersas pelas almas dos que a conheceram e affectuosa-
mente a admiraram.»
ROXANE.
Joaquim Champalimaud e Vasco Leão
õa(1)
O anno de 1895 tem sido fatal para a Relação do Porto !
Pouco tempo ha que a morte lhe roubou um dos seus
mais distinctos juizes, o sr. Joaquim d' Araújo Cabral Mon-
tez de Champalimaud!
A leiva do cemitério, revolvida pela enxada do coveiro
para abrir a sepultura d'este magistrado illustre, mal come-
çava a solidificar-se, e já uma outra sepultura se abre para
abrigar os restos mortaes d'um seu digno companheiro de
tribunal, o sr. João Vasco Ferreira Leão!
Caracteres de indole differente, a ambos irmanava a
mesma paixão da justiça, o mesmo amor de illustrar e
enriquecer o espirito para o cumprimento do dever.
^Erudimini qui jiidicatis terram:», diz o psalmo: e
ambos elles eram zelosos observantes d'este preceito, im-
posto a todos os julgadores pelas lettras sagradas.
Champalimaud foi admirável exemplo de amor pelo
trabalho e de escrupuloso desempenho da profissão, que
tanto se empenhava em honrar!
Era para vêr e admirar como aquelle homem, desde
tantos annos torturado pela doença, débil e sem forças,
que mal podia subir as escadas do tribunal, onde entrava
(1) Artigo publicado no n.° 519 da Revista dos Tribunaes, de
15 de setembro de 1895.
Os perfis dos juizes Poças Falcão e Dias de Oliveira foram
publicados no livro — No Campo da Justiça.
16
242
sempre cançado e offegante, pouco depois tomava parte
vigorosa nas questões que se discutiam, e se esforçava
pelo acerto das decisões, pugnando com ardor pelo que
julgava justo e legal até ficar extenuado e sem fala!
Cavalheiro de primorosa educação e distincto porte,
gentilissimo nas relações pessoaes, era intractavel quando
defendia a justiça, ou julgava que esta era offendida; e,
ao mesmo tempo, a lucta não lhe obscurecia a perspicácia
e clareza do entendimento, pois que para logo se tornava
dócil e se rendia á opinião que combatia, se lograssem
convencê-lo que era esta a mais legal.
Chegado que fosse a este estado do espirito — diga-se
em honra da sua immaculada memoria — não raro inutili-
sava os trabalhos, que trazia preparados, para perfilhar os
alheios!
Nenhuma razão pessoal, nenhum sentimento de vai-
dade sobrelevavam ao amor da justiça que o dominava!
O julgamento em conferencia (a que tanto teem que-
rido jungir-nos, como forma única de julgar collectiva-
mente, uns pretendidos innovadores que a si próprios
puzeram borla e capêllo em organisação judiciaria) perde-
ria muitos dos seus gravíssimos defeitos com juizes como
J. Champalimaud!
As paginas dos seus autos attestam a somma de cuida-
dos e de illustração jurídica que punha nas suas decisões
este tão enfermo e tão zeloso magistrado; mas era princi-
palmente no viver intimo do tribunal que mais sobresahiam
as suas qualidades e distinctas virtudes, a sua educação
de legista, e a alta e perfeita comprehensão, que possuia
dos seus deveres de julgador.
Havia n'elle aquella «perpetua e constante vontade> do
<ísiium ciiique tribuere^, que os romanos consideravam
attributo da justiça, e que o é por excellencia do verda-
deiro magistrado!
O grande pendor, em que perennemente estava, para
diminuir penalidades, mostra que o juiz que, nas comarcas
em que serviu, passou sempre por austero e ríspido, era
uma nobre alma!
243
Vasco Leão tinha a religião da honra e o culto do dever.
Amava a justiça e a liberdade. . . sim . . . elle amou tam-
bém a liberdade!
Nascido em 1830, o seu berço foi molhado pelas lagri-
mas que o despotismo fez chorar a sua mãe!
Era por isso natural adversário de todos os que que-
rem felicitar-nos com instituições do passado.
Tendo concluído — como Joaquim Champalimaud, de
quem foi condiscípulo, e a quem tão de perto havia de
acompanhar na morte — o seu curso universitário em 1855,
foi em 1856 nomeado delegado do procurador régio para
a comarca da Ilha do Pico, sendo algum tempo depois
transferido para a da Ilha do Fayal.
Desde logo se revelaram as aptidões do magistrado;
e o seu brioso proceder de homem e de funccionario por
tal forma alli se assignalou, que, passados mais de trinta
annos, d'elle existia ainda honrada nomeada n'aquellas
terras do archipelago açoriano!
Eleito deputado por Guimarães, sua terra natal, nas
legislaturas de 1871 a 1874 e de 1875 a 1879, e par do
reino pelo districto de Bragança em 1887, preoccupa-
ram-no quasi exclusivamente no parlamento os assumptos
judiciaes e os da classe, sendo, pelo seu amor e assidui-
dade no trabalho, escolhido, durante todo aquelle periodo,
para secretario da commissão de legislação da camará elec-
tiva, tomando, em tal qualidade, constante e activa parte
nos trabalhos de revisão e discussão do projecto do Código
do Processo Civil e redigindo as numerosas actas das ses-
sões da commissão.
Dá testemunho da elevação do seu espirito e da bon-
dade da sua alma um projecto de lei sobre o ensino dos
surdos-mudos, que por elle foi apresentado ao parlamento.
Apaixonado por tudo que considerava nobre e digno;
tenaz na defeza das opiniões que julgava de interesse da
244
justiça ou do paiz, por vezes descia á estacada da im-
prensa a combater em prol d'elias.
Era um paladino do justo. Tinha a organisação d'um
combatente !
Em Vez da penna tomaria a espada e arriscaria a vida
se por tal forma fosse preciso defender o direito, a justiça,
a liberdade!
Com os seus escriptos por vezes honrou esta Regista,
e os artigos aqui publicados em 1887 e 1889 sobre o pro-
jecto de organisação judiciaria, que estava então affecto
ao parlamento, mostram quanto amor lhe merecia tudo
quanto tendesse a melhorar a administração da justiça e a
elevar a magistratura, que devotadamente amava!
Dedicado, leal, cavalheiroso, era um nobre compa-
nheiro de um Valor inapreciável!
Prostrado no leito, ferido mortalmente pela doença
que tão prestes ia arrebata-lo, reanimavam-no ainda os
assumptos da profissão e do tribunal, e a illusão de que
breve voltaria aos trabalhos d'elle!
Nobre e consoladora illusão, digna da sua honrosa
Vida de magistrado!
Bem mereceram da justiça!
Nas paginas d'este jornal, dirigido por magistrados, e
destinado, sem distincção de classes, a todos os homens
do foro, a todos os homens da lei, queremos pôr este
memento, em homenagem a dois dignos soldados d'ella !
E, imitando as palavras do poeta que melhor soube
definir a saudade, e com que elle terminou o elogio aca-
démico de um varão illustre, diremos: — Seja leve a terra
da pátria aos que dignamente a serviram e honraram !
n memoriam
Na sentida morte de Sofia de Abreu de Magalhães
Pereira Coutinho (1)
Répoiídez, a-t-on vu son ombre,
S"évanouir dans la nuit sombre.
Ou fuir vers le jour immortel ?
La vit-on monter ou descendre ?
Oú déposerons-nous sa cendre?
Est-ce à la tombe ? est-ce à Tautel ?
-Ne pleurez pas,-prions — les saints Tont réclamée;
Prions: adorez-la, vous qui Tavez aimée !
V. Huoo, Odes.
Desappareceu! . . . Tinha desanove annos! Era bon-
dosa como uma santa e bella como uma flor ! Simples e
modesta como a violeta ! Pura como as flores de laran-
(1) Não é uma figura do passado !
E' de hontem, é de hoje e será de amanhã !
Vive ainda pela nossa saudade !
Faz aqui a sua apparição como figura celestial, estendendo as
246
jeira, que só lhe poderam ornar a grinalda do noivado
místico e sacrosanto da eterna Gloria ! . . .
Abandonando a linguagem das cousas materiaes e ter-
renas, porque não hei-de empregar a linguagem do que,
por santo e sublime, é superior á nossa estreita e pobre
comprehensão.
Porquê? Procurando alar o pensamento ás regiões
onde subiu esse ser querido, direi aos que a amaram :
Sim!... Desappareceu! ! . . . Os anjos teem sempre
uma breve passagem na terra ! Pertencem ao ceu !
«Botão de rosa murcho á luz da aurora>... o vento
da morte a levou !
Rose
Close
La brise
La prise !
Bella, gentil e timida como uma alvéola !
Tinha a fina delicadeza das aves ribeirinhas e o ar triste,
que ellas manifestam ao verem-se fora da sua região !
O anjo sentia a nostalgia do ceu ! Adormeceu ! . . .
Depois. . . bateu as azas. . . fugiu!
Acodem á lembrança aquelles versos do Prémier
Regret, de Lamartine, e que são talvez, na traducção de
Bulhão Pato, os que melhor correspondem ao pensamento
do grande poeta francez :
Como de noite a avesinha,
Menos formosa do que ella,
Esconde ríaza singela,
O colo para dormir :
No veu da sua tristeza
Escondeu-se por instantes,
E adormeceu . ■ . mas antes
Meu Deus, da noite cahir!
suas imaculadas azas de anjo por sobre o pobre livro e o pobre
auctor !
Teve esse escripto publicidade na Nação e foi reproduzido no
Jornal de Vianna, na Aurora do Lima e no Commercio do Lima.
247
Nascida junto do formoso rio, na ridente Villa de Ponte
de Lima, foi lá que se finou !
Filha estremecida dos excellentissimos senhores José
de Abreu Pereira Coutinho e D. Maria Augusta de Maga-
lhães Barros de Araújo Queiroz, a innocente menina, pelo
fino perfil da sua belleza, pelo encanto da sua ingenuida-
de, pela attracção da sua timidez e da sua sympathia, era
o enlevo querido dos seus pães, de sua familia, de todos
que a viam e amavam !
A sua vida foi um sonho lindo! Passou como passa o
aroma da flor !
Dava-lhe a bondade uma especial e rara distincção!
A-^
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^M^m
Uma vista da villa em dia de mercado
Ao cimo avista-se a Capella das Pereiras, perto da qual a adorável menina nasceu
e onde costumava ir á missa
Via-se-lhe na meiguice do rosto a belesa da alma como
se vê a chamma atravez do cristal !
Foi a mais doce das creaturas ! Nunca soube oppôr a
sua Vontade á vontade dos que mais a amavam ! Passou
pelo mundo obedecendo e sorrindo!
Querida Sofiinha! Adorável creança! Pomba innocente!
Anjo querido !
Os olhos, que te viram crescer, enviam-te uma lagrima,
que vae misturar-se ás lagrimas dos teus desolados pães
248
c das tuas formosas irmansinhas, mais risonhas e alegres
do que tu . . . e agora santamente entristecidas !
A mão, que muitas vezes te acariciou, colhe hoje —
trémula — , no campo triste da morte, um goivo para des-
folhar na tua sepultura!
A bocca, que te beijou, diz-te pela bocca do grande
lyrico :
Anjo ! quem do ceu vos trouxe
E vos perdeu ?
Desterro que isto não fosse
Quanto não é mais doce
Viver no ceu !
É esta a minha despedida ! Adeus.
nOTA FiriAL
Na' carta de Alberto Sampaio, a paginas 111, dá elle
auctorisação para ser publicada uma carta anterior.
Não fazer essa publicação seria menospreso pela honra
que aquella auctorisação envolve.
Seria uma falta de respeitosa delicadeza para a me-
moria virtuosa e querida de um dos homens de maior
Valor moral e intellectual d"este paiz, cujo nome não é,
infelizmente, tão conhecido como devia e merecia sê-lo!
Não! Fallecido em 1 de Dezembro de 1908, a morte
só fez augmentar ainda mais o respeito e admiração, que
me mereceu em vida!
Refere-se a carta a uns escriptos sobre o caso acadé-
mico da Rolinada, onde appareceram alguns dos nossos
companheiros d'essa épocha, que, com outros, de novo
apparecem n'este livro.
Por todas essas razões se usa da auctorisação. A carta
será publicada.
Sei que haverá quem diga que esta publicação obe-
dece a um pensamento de Vaidade.
Talvez! Reconheço-o. É que um documento, que tra-
duz a amizade e consideração de um homem, tão illustre
e tão virtuoso, é para envaidecer aquelle que o possue e
a quem foi dirigido!
E acrescenta-se:
Quem, em sua vida, deu algumas demonstrações de
não obedecer ás suggestões da vaidade e de ter o desdém
por honrarias, tem auctoridade para reclamar esta.
Não prescinde d'ella.
250
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f-«t-^í^,^ Co-u ^Z-e-^-t-^ dtrt^\ ^^yu^ 4^'
251
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252
4-
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iriDicE
Pela ordem dos escriptos
Pags.
Uma explicação v
-Á memoria de Amélia Coutinho Filgueiras Osório vii
O ultimo Marquez de Ponte de Lima la 16
Linha descendente de Pedro Alvaros Cabral 17» 19
Serviços de D. Leonel de Lima 20 » 23
Freguezias, cujos parochos eram apresentados pelos
Marqueses 24 » 25
Decreto de 13 de agosto, que extinguio os privilégios ... 26 » 28
António Corrêa Caldeira 29 » 46
Certidão de baptismo e considerações sobre a falta de
respeito pelas leis do bom gosto 47» 49
João de Deus 51 » 71
Francisco Guimarães Fonseca 73 » 74
O Echo do Lima 75 » 76
António de Magalhães Barros 75 » 76
Anthero de Quental 77 » 112
Rodrigo Velloso 113 » 114
Júlio Pereira de Carvalho e Costa 115
Refutação de um artigo do In Memorian 116 >^ 120
Fernando Rocha 121 » 126
José Luciano de Castro 127 » 151
Lamartine e a Imprensa em 1848 153 » 154
Á Memoria de D. Anna dos Prazeres Calheiros de Ma-
galhães 155 » 160
Luiz Corrêa Caldeira 161 » 193
José Marques Caldeira 195 » 196
Casa onde nasceu o poeta, edade em que sahiu da terra
natal e um alvitre em honra da sua memoria 197 » 202
Uma carta de José Pereira de Sampaio (Bruno) 203
254
Pags.
Amélia Janny ~ 205
Artigo em honra da sua memoria por D. Amélia CaMas
^^^'■e»" 238 » 239
Joaquim Champalimaud e Vasco Leão 241 » 244
Sofia de Abreu Coutinho 245 » 248
Alberto Sampaio e uma carta sua (nota final) 249 » 252
riDiCE ono/nnsTico
A
Pags.
Acácio de Carvalho Fontes 75
Affonso de Albuquerque 2
Agostinho da Cruz (Frei) 169
Agostinho de Moraes Pinto Almeida 135
Alberto Sampaio 80, 81 e 108
Alberto Telles 76 e 83
Alexandre da Conceição 84
Alexandre Herculano 55 e 58
Alexandre de Seabra 149
Alves Matheus 76
Amélia Janny 45 e 89
André Ponte de Quental da Camará 77
Anna Ephigenia Corrêa (D.) 29, 47, 197 e 200
Anna Guilhermina Maia (D.) 78
Anna de Lima (D.) 11
Anselmo de Andrade 83
Anthero José da Maia e Silva 78
António Alves da Fonseca 131
António de Araújo de Azevedo Pereira Pinto 157
António de Azevedo Castello Branco 85, 84, 1 16 e 117
António Bernardino Cerqueira Lobo 91
António Feijó 43 e 164
António Francisco Barata 35
António Luiz de Seabra 36
António de Magalhães Barros 75
António de Magalhães Barros (filho) 167
António Nobre 164
António Pereira Rego 1 99
António Rodrigues Sampaio 55
256
fags.
Aristides Motta 108
Arthur Fernando Rocha 125
Augusto César Barjona de Freitas 130
Augusto Lima 164
Augusto Ribeiro 134
Barbosa Leão 1 46
Bartholomeu de Quental (Frei) 78
Basílio Alberto 53 e 94
Basílio José Ferreira 54
Bernardino Pinheiro 1 48
Bernardo de Albuquerque e Amaral 54, 56 e -95
Bernardo de Sá Nogueira . 6
Blacons 14
Bocage 77
Bulhão Pato (?) ,164 e 179 246
c
Champfleury 1
Châtelet 14
Chaves e Castro 220
Caldeira Coelho (António Corrêa) 219
Caldeira (José Marques) 29 e 1 95
Camará Leme (José Alfredo) 65
Camíllo Castello Branco 131
Camões 87, 163, 179 e 224
Cândido de Figueiredo 164
Cardeal Saraiva 45
Carlos Bento 36
Carlos Ramiro Coutinho 131, 137 e 139
Casal Ribeiro 36
Castilho (António Feliciano) 55, 58, 163 e 168
Castilho e Mello 148
•Castro Freire 164
Celestina Paladini 224
Conde de Almoster 139
•Conde das Antas 131, 137 e 139
Conde da Barca 1 57
•Condessa e Conde de Bertiandos 235
257
Pags.
Conde de Santa Maria 62
Conde de Thomar 138
Conde de Villa-Flôr 5
Couto Monteiro 1 64
Cruz Coutinho ' 146
Cunha Ri vara 35
Cunha Souto Maior 36
Custodio Duarte 94
Custodio José Vieira 138 e 144
D
Dante 87
Delfim M. Oliveira Maia 144
Delgado (João Pinto) 177
Diogo Bernardes 168
Domingos Ribeiro Vieira 124
Duque de Ávila 36 e 57
» » Loulé 106
» » Ragusa 5
» >> Saldanha • 53, 159 e 196
» da Terceira 57, 41 e 106
» de Welingtoii 3
E
Eça de Queiroz 83, 106 e 117
Eduardo de Andrade 81
Eduardo David e Cunha 91
Elias Garcia 6
Emilia Midosi, (D.) 255
Eugénio de Castro 164
Fausto de Queiroz Quedes (Visconde de Valmôr) 56
Fernando de Quental 77 e 81
Fernando, (Rei) (D.) 158
Fernando Rocha 83e 119
Fernão Alvares Cabral 17
17
258
Pags.
Fernão Annes de Lima 11
Ferrão (Francisco António F. da Silva) 9
Fialho Machado 92 e 94
Filippe de Quental 80, 85, e 139
Filomeno da Camará 85 e 116
Florido Telles de Vasconcellos 85
Fonseca Pinto (António Joaquim) 63
Fontes Pereira de Mello 36 e 76
Francisco de Castro Matoso Corte-Real 130
Francisco Joaquim de Castro Pereira Corte-Real 156
Francisco Machado de Faria e Maia 85
Francisco de Paula Mendes 147
Francisco Pereira Sanches de Castro 6
Francisco Roberto de Magalhães Barros 76
Frei Francisco de S. Luiz 22, 198, 199 e 210
Frederico Philemon 60, 81 , 87 e 105
Gama Machado 1
Garrett 56, 51 , 129, 159, 160, 165 e 189
Gaspar Pereira Ferraz Sarmento 197
Gaspar de Queiroz Botelho 142
Germano Vieira Meyrelles 81 , 82 e 108
Gomes Coelho (Júlio Diniz) 148
Gonçalves Crespo 164
Gonçalves Dias 165 e 164
Guerra Junqueiro 165 e 212
Guilherme Vasconcellos Abreu 85 e 97
Guimarães Fonseca 62, 65, 73 e 85
Guimarães Pedrosa 255
H
Helena de Vasconcellos e Souza (D.) (Marqueza de Castello
Melhor) 11
Henrique da Gama Barros 1 52
Henrique de Macedo 91
Henriques Sêcco (Dr. António Luiz) 159
Hohenzollern 10
Homero 68
Humberto (Príncipe) 118
259
Pags.
Jayme Cardoso de Gouveia Corte-Real 62
Joanna Cabral de Vasconcellos (D.) 18
Joanna Saraiva (D.) 31, 48, 197 e 198
João de Barros 2
João de Barros Mimoso 1 30
João Bento de iMedeiros 47
João Cândido Furtado d'Antas 133
João de Deus 100, 133 e 213
João Fernandes de Lima Vasconcellos Brito Nogueira 18
João Gomes Cabral 17
João (Infante) (D.) 55
João de Lemos 163, 164 e 208
João de Lima (Vide errata) (D.) 11
João Lobo de Moura 83
João Machado de Faria e Maia 63, 93, 116 a 120
João de Paiva 235
João Penha 164
João de Sousa Vilhena 60 e 85
Joaquim António de Aguiar 41
Joaquim Maria da Silva 137
Joaquim Martins de Carvalho 120 e 135
Joaquim de Vasconcellos 78
José Affonso Botelho 132
Jerónimo da Motta (abbade de Mujães) 199
José Alberto dos Reis (Dr.) 47 e 197
José de Azevedo e Meneses 78
José Bernardino de Abreu Gouveia 85
José Caldas 76
José da Cunha Sampaio 60, 80, 82, 91 , 1 18 e 250
José Dias Ferreira 75
José Ernesto de Carvalho e Rego 53
José Estevão 36 e 115
José Falcão 83,89,91 e 100
José Freire de Serpa 164
José Leite Monteiro 8 J
José Luciano de Castro 35
José de Magalhães Barros 196
José Maria de Abreu de Lima 199
José Maria Andrade Ferreira 38
José Mimoso de Barros Alpoim 130
José Moreira da Fonseca 1 44
260
Pags.
José Pereira de Sampaio ( Bruno) 203
José Ribeiro Perry 131
José de Sá Coutinho 91 e 145
José Teixeira de Queiroz 130
Júlio Mardel 17
JuIio Pereira de Carvalho e Costa 109, 110 e 115
Lamartine iii, 157, 153 e 245
Latino Coelho ". 38 e 201
Leonel de Lima (D.) 3 e 21
Levy Maria Jordão 55
Lima Bezerra 198
Lopes de Mendonça 164
Lourenço de Almeida Azevedo 68e 86
Lourenço Malheiro 199
Luiz Jardim, Conde de V^alenças 74
Luiz de Magalhães 77
Luiz Saraiva (Frei) 210
Luiz (D.) (Rei) 55
M
Manoel Duarte d'Almeida 84
Manoel Faria 31
Marcelina Saraiva (D.) 31 , 41 , 198 e 210
Marcelino de Mattos (Dr.) 144
Maria Cabral de Noronha (D.) 18
Maria Xavier de Lima Hohenloe (D.) 18
Manoel Alves da Silva 108
Manoel de Arriaga 85 e 89
Manoela Rey 147
Maria Amália Vaz de Carvalho (D.) 238
Maria José Deslandes Caldeira (D.) 45 e 196
Maria da Silva Baptista Rocha (D.) 124
Maria Theresa Deslandes Caldeira (D.) 219
Marianna Povoas (D.) 70
Marianno Machado de Faria e Maia 83, 91 e 92
Marqueza de Alorna 33
» de Pomares 235
261
Pags.
Marquez de Chaves 4
» de Fronteira , 33
» de Loulé 41
Michelet 96
Miguel (D.) 136
Mendes Leal 36 e 55
Mousinho da Silveira 9
N
Nicolau Callieiros 1 57
Noailles (Duque e Marquez de) 14
O
Oliveira (Dr. Manoel de) 20 e 26
Oliveira Martins 77 e 96
Oliveira Valle 122
Osório de Vasconcellos (Alberto) 6
Palmella (Duque de) 7
Passos Manoel 56
Pedro Alvares Cabral 2 e 17
Pedro 5." (D.) 55
Pereira Caldas 177
Pereira Lima (Monsenhor) 198
Petrarcha 87
Pinheiro Chagas 46, 169, 179 e 184
Pinho Leal 11
Pizarro (Joaquim de Sousa Quevedo) 6
Q
Queiroz Ribeiro 164
262
R
Pags.
Rachel Xazareth (D.) 69
Ramalho Ortigão 48 e 147
Raymundo Capella 83
Rebello da Silva (Luiz Augusto) 55, 36 e 55
Ricardo Guimarães (Visconde de Benalcanfôr) 165
Rodrigues Cordeiro 132, 163, 164 e 166
Rodrigo da Fonseca Magalhães 36, 38 e 39
Rodrigo Velloso 13, 57, 60 e 98
Roque Barcia 52
Sá da Bandeira 6 e 137
Sá de Miranda 1 63
Santa Thereza dfe Jesus 169
Santos e Silva 136, 137 e 139
Santos Valente 83 e 1 05
Sebastião de Almeida e Brito 143
Serra e Moura 1 38
Silva Mattos 163, 223 e 237
Silva Tullio 55
Simão de Novaes (Frei) 78
Simões (actor) 94
Soares Luna 195
Soares de Passos 133, 141, 163 e 179
Souza Martins 97
Tavares Crespo 223
Tavares Ferreira (José Maria) 138
Telles de Vasconcellos 132
Teixeira de Vasconcellos 147
Theophilo Braga 61, 65, 67, 83, 163 e 212
Thomaz José Xavier de Lima de Vasconcellos de Brito No-
gueira Telles da Silva (D.) 2 e 19
Thomaz de Lima Vasconcellos Brito Nogueira (D.) 18
265
Pags.
Thomaz Ribeiro 76 e 165
Thomaz Xavier de Lima Nogueira Telles da Silva 19
Tolentino 32
Torres e Almeida 131 e 140
V
Venâncio Jacintho Deslandes Caldeira 45
Vicente Ferrer 36
Victorino da Conceição Rebello (D.) 62
Victor Hugo 100, 105, 115, 186, 191, 224 e 245
Victoria Linda 222
Vieira (Padre António) 78
Vieira de Castro 53,54,56,98, 116 e 118
Virieu 14
Visconde de Faria e Maia 78
ERRATAS
A paginas 11, linha 8, onde sele: -D. José Xavier de Lima , deve lêr-se: <^D.João
Xavier de Lima .
A pagina 43, linha 9, onde se lê: nada melhoraram», deve lêr-se: ^màA melhoram^ .
A paginas 47, linha 13 e a paginas 48, linha l.a, onde sele: «Ruado Carrerido», deve
lêr-se: «Rua do Carracido ^ .
A paginas 105, nota, onde se lê: «Function du Poete, deve lêr-se: ■'Fonction du
Poetei.
A paginas 168, linha 13 (legenda da gravura), onde se lê: Campo do Arnêdo»,deve
lêr-se: «Campo do Arnado*.
■■''m^^m
CT Pinto Osório, Augusto Carlos
1372 Cardoso
P$5 Figuras do passado por Pedro
Eurico
\
PLEASE DO NOT REMOVE
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